Em meio às perseguições políticas, marca do período de exceção no Brasil, o povo negro celebra a eleição da sua primeira miss negra, Miss Guanabara, representando o único clube de negros do estado.

Havia uma efervescência no ar naquele primeiro semestre de 1964, no então recém-criado Estado da Guanabara. Um golpe militar acabara de ser dado, iniciando-se uma perseguição política aos contestadores do incipiente regime.
Em meio a toda celeuma, a capital, Rio de Janeiro, preparava-se para as comemorações de seu Quarto Centenário, no ano seguinte. E, neste ambiente confuso, pela primeira vez, uma negra ganha o título de Miss Guanabara, concorrendo pelo Renascença Clube.
Detalhe: o Miss Estado da Guanabara – antigo nome do Estado do Rio de Janeiro – era um concurso famoso, na época, por sempre levar candidatas fortíssimas para o Miss Brasil, candidatas brancas. Mas, em 27 de junho de 1964 foi diferente, o concurso para eleger a mais bela do país ganhou melanina, com nome e sobrenome: Vera Lucia Couto dos Santos, 18 anos, 1m68 de altura.
“Eu sabia que eu estaria representando uma raça, então, isso me deu muita força para enfrentar o que veio”, declarou a miss, certa vez, em entrevista ao Repórter Brasil, na TV Brasil.
A escolha
Vera sempre frequentou o Renascença Clube, mas não fazia parte de seus planos participar de concurso de beleza. Ela recusou por dois anos os convites e o medo de sofrer preconceito era uma das razões. Só depois que teve o apoio do pai, aceitou.
E havia a disputa interna pelo posto de representante oficial do clube.
De um lado, havia a sua beleza meiga, delicada e juvenil. De outro, o estilo mulherão de Esmeralda de Barros, a outra concorrente.
A análise é da vitoriosa:
“Ela (Esmeralda) era a favorita, pois tinha uma plástica respeitável, enorme traquejo de passarela, por já ter trabalhado em shows, mas acredito que ganhei mais na passarela do que pela questão da plasticidade. Acontece que ela entrou na base do ‘já ganhei”, ‘eu sou a tal’, ‘não tem pra mais ninguém’. Acho que o público e o júri notaram isto e foi aí que ela perdeu.”
E Vera, ao desfilar suas curvas no maiô Catalina, no Maracanãzinho, durante o concurso Miss Guanabara, se deixou ovacionar e consagrar.
O Clube de Vera
O Renascença era um clube de negros de classe média. Fundado em 1951 em resposta ao racismo e à discriminação sofrida nos clubes e agremiações tradicionais do Rio Janeiro, os quais, os negros eram proibidos de frequentar.
Ele surge para os negros de classe média do Rio de Janeiro como uma opção de esporte e lazer, como conta o historiador Daslan Melo Lima, um dos maiores estudiosos do tema:
“Entre os fundadores, médicos e comerciantes negros” .

As mulheres tinham um papel fundamental no clube, localizado no bairro de Andaraí, na zona norte da capital carioca – elas eram 19, dos 29 sócios que fundaram o lugar. Daí, inclusive, é que surge a ideia do concurso de Miss do Rena – como o clube ficou conhecido.
A olheira, que selecionava e preparava as misses, era a cabeleireira Dinah Duarte, dona de um conceituado salão de beleza no Méier. Lá, não havia escassez de mulheres bonitas.
Por isso, a conquista do título não surpreendeu nem os sócios nem os fundadores. Na época, alguns declararam que Vera Lucia foi somente “o ápice de uma linhagem de belas mulheres negras”, tradição iniciada pelo Renascença no final dos anos 1950.
A primeira candidata, a comerciária Dirce Machado, ficou em quarto lugar no Miss Guanabara. No ano anterior à eleição de Vera, em 1963, Aizita Nascimento obteve a mesma colocação, mas levantou o Maracanãzinho, onde 25 mil pessoas gritavam “queremos a mulata”. A partir daí, já podia presumir-se que uma colocação melhor viria.
É fato, entretanto, que foram necessários 14 anos para se derrubar a barreira da cor.
Fadas, Bruxas e Vilões
Após vencer o concurso Miss Renascença e Miss Estado da Guanabara, a pressão sobre Vera Lúcia se tornou maior. Um dia, em meio aos ensaios para o Miss Brasil, ela recebeu um telefonema, no qual uma pessoa que se dizia sua amiga, a aconselhou a desistir do concurso. A informação era de que um grupo de senhoras da sociedade alugaram mesas próximas à passarela somente para vaiá-la e desestabilizá-la.
Na contramão, o carnavalesco Evandro de Castro Lima, antes do desfile, declarou seu voto em Vera Lucia e teve o nome retirado da lista de jurados. No seu lugar, entrou a jornalista Pomona Politis que, segundo boatos, não gostava de negros.
Ela manteve-se firme e confiante. Conta que era a única que conseguia realizar um pivô completo – um giro de 360º no próprio corpo – durante a sua apresentação que, aliás, não contou com a presença do grupo de senhoras racistas, mas de uma única, possessa, raivosa, que gritava a plenos pulmões, perseguindo Vera entre as mesas:
“Sai daí, crioula. Teu lugar é na cozinha. Não se manca, não?”
Com isso, Vera passou direto pelos jurados e acredita que, talvez, isto tenha lhe custado alguns pontos importantes.
Após ficar em segundo lugar no concurso Miss Brasil, Vera conquista o terceiro lugar no Miss Beleza Internacional, o terceiro maior concurso de beleza do planeta da época. E esta foi a segunda melhor colocação obtida pelo país depois de sua entrada na competição, em 1960.
Ainda em 1964, Vera conquista o Miss Fotogenia.
Sem assédio
Em 1965, ano da comemoração do Quarto Centenário da cidade, desfila em carro aberto na Avenida Presidente Vargas, em evento promovido pelo empresário Abrahão Medina, pai do empresário Roberto Medina.
Sobre assédio masculino, Vera Lucia afirma não ter sofrido e explica por que:
“Primeiro porque todos os convites eram direcionados ao meu pai; segundo o de estar sempre cercada por familiares e amigos e, terceiro, o de ser representante do Renascença, um clube social negro, o que cerceava os arroubos dos conquistadores de ocasião, os mais afoitos.”

Suas conquistas abriram muitas portas. Vera viajou para a Europa, Estados Unidos, Argentina e outros pontos do mundo, aprendeu a falar inglês e francês, foi tema de música – a marcha de João Roberto Kelly, “Mulata Bossa Nova” – mas, ao contrário de suas colegas Dirce Machado, Aizita Nascimento e Esmeralda Barros, não seguiu a carreira artística.
Mas ampliou o mercado de trabalho para as mulheres negras, como lembra:
“Naquela época, grandes lojas não colocavam vendedoras negras. Depois da eleição da Miss Guanabara, começaram a fazer apologia. Quer dizer, isso foi um espaço que se abriu por causa do peso do concurso”.
Quanto à sua vida, seguiu outro rumo. Vera se casou, teve dois filhos – Cristiane e Rafael -, divorciou-se e trabalhou, durante 35 anos, na Riotur, empresa de Turismo da cidade do Rio de Janeiro, como assistente da diretoria de Operações e Eventos.
A que veio depois
Quase cinquenta anos depois de sua coração, Vera Lucia vê outra mulher negra ser alçada ao topo, como pioneira. Desta vez, a primeira negra Miss Universo – Leila Luliana da Costa Vieira Lopes Umenyiora , eleita Miss Angola e coroada Miss Universo 2011.

Foto: via Folha de São Paulo
E ela lamenta conquistas tão esporádicas do título de beleza por mulheres negras, ao mesmo tempo em que afirma que vencer estes concursos é muito bom para a nossa autoestima:
“Não quero dizer que somente negras devam vencer os concursos de Miss, mas acredito que existe beleza em todas as etnias. A Venezuela é um país que tem um grande contingente de negros, mas as misses que representam o país são sempre louras, de olhos claros, dando uma falsa impressão de uma Europa incrustada na América do Sul. Um dos meus orgulhos é o de ter mostrado uma outra face do Brasil para o mundo. Quando cheguei aos Estados Unidos para concorrer ao título de Miss Beleza Internacional, ficaram surpresos quando viram uma negra brasileira. Imagine isso, em plena época de luta pelos direitos civis dos negros americanos!”
…
Fontes: Geledés, GShow, Raça Brasil, Glamurama, Wikipédia-Vera, Wikipédia-MissUniverso
Escrito em 15 de maio de 2014. Atualizado em 30 de janeiro de 2025
Que maravilha saber!
Gostaria de utilizar foto para um vídeo educacional, sem fins lucrativos, apenas informativo. Como poderia ter autorização ou informação para dar crédito ao autor da foto,por favor?! Obrigada
Oi Evellyn! No seu caso seria suficiente compartilhar as imagens creditando a autoria das imagens da mesma forma que nós fazemos, escrevendo “Foto via Miss News” ou “Imagem: Miss News”, no momento em que a imagem aparece ou no final do vídeo, junto dos créditos.
Um abraço 🙂
Parabéns pelo qualidade do artigo sobre a Vera Lucia.
Ela foi de fato um marco na história dos concursos de beleza e ainda bem que hoje
Isto melhorou um pouco. Ainda não é o ideal, mas com vitórias como essas e de outras que se sucederam ao longo dos anos e logicamente ao empoderamento de todas elas, isto vem ajudando a se ter uma maior presença da negritude na nossa cultura. Vamos torcer que isto melhore ainda mais.
Eu era menina quando vi de perto. Estava com minha mãe em uma loja de roupas finas de cama, no Largo do Machado. Não conseguia parar de olhar para ela. Linda, sorriso maravilhoso, educada e muito suave ao se expressar.