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Racionais MC’s – Sobrevivendo no Inferno, primeiro álbum musical de leitura obrigatória no vestibular da Unicamp

Pioneirismo revolucionário, evangelho marginal do maior grupo de rap do Brasil, o álbum “Sobrevivendo no Inferno” faz a academia se render à periferia.

Racionais MC's
Racionais MC’s (Foto: Rui Mendes/Divulgação)

23 de maio de 2018, a Universidade Estadual de Campinas – Unicamp divulga a lista de livros obrigatórios para o vestibular de 2020. Na lista, destaque para o álbum Sobrevivendo no Inferno, do Racionais MC’s. Pioneirismo do rap nacional. É a primeira vez que um álbum musical aparece como leitura obrigatória no vestibular da Unicamp – um dos mais concorridos do país, colocando Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay, lado a lado de outros escritores negros consagrados como Machado de Assis e Carolina Maria de Jesus.

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Sobrevivendo no Inferno, lançado em dezembro de 1997 pelo selo Cosa Nostra, tem 12 faixas e ocupa a  14ª posição da lista dos “100 maiores discos da música brasileira” da Revista Rolling Stone Brasil. 

Publicado em formato de livro pela Companhia das Letras, em 2018, após a divulgação de sua obrigatoriedade no vestibular da Unicamp, registra cerca de 1,5 milhão de cópias vendidas. Este que é o quarto álbum de estúdio do Racionais MC’s é considerado um dos mais importantes álbuns do rap nacional, mas também reconhecido por estudiosos como uma verdadeira aula sobre a história recente do Brasil, bem como um retrato do negro na sociedade brasileira.

Sobrevivendo no Inferno, Racionais MC's (capa)
Capa do álbum Sobrevivendo no Inferno, Racionais MC’s (Imagem original: EAEO Records)

Sobreviver no inferno

Vale contextualização histórica: onde o negro literalmente sobrevive no inferno?

Década de 1990. Mudam paradigmas para a nossa sociedade. Com o fim da ditadura empresarial-militar, implementa-se no Brasil de maneira mais agressiva o sistema neoliberal que gera um enorme crescimento da pobreza e da violência no país.

Para a população negra acontece, ainda, uma quebra com o discurso conciliador da democracia racial e se acelera o projeto de genocídio e encarceramento da população negra. Em outras palavras, toda a repressão, que o país sofreu durante décadas de ditadura, foca nas periferias e na população negra.

Três fatos históricos colocam o país sob os holofotes internacionais por violação dos direitos humanos: o Massacre do Carandiru, em São Paulo, dia 2 de outubro de 1992, que deixa um saldo de  111 pessoas assassinadas e causa grande impacto na obra dos Racionais; a Chacina da Candelária , na cidade do Rio de Janeiro, dia 23 de julho de 1993, com 8 vítimas, e a Chacina de Vigário Geral, cerca de um mês depois,  dia 29 de agosto de 1993, na favela de Vigário Geral,na zona norte na mesma cidade do Rio de Janeiro, com 21 vítimas.

E esses são só exemplos.

Massacre do Carandiru (1993)
O Massacre do Carandiru deixou 111 mortos (Foto: Stringer/Reuters)

Tais crimes hediondos deixam seu recado para a população negra e periférica: o Estado brasileiro não está interessado em proteger a maior parte do povo mas, sim, em reprimi-lo violentamente, utilizando a Polícia Militar mais violenta do mundo como seu braço armado.Cabe a essa população se organizar para tentar sobreviver em um contexto totalmente hostil. Como aponta Thiago Torres, do canal do youtube Chavoso da USP, o rap nacional, nesse contexto, se coloca para o jovem negro e periférico como uma arma política e uma forma de denunciar as opressões praticadas pelo Estado, as desigualdades sociais, o racismo e a grande mentira que é a democracia racial.

A voz da periferia

O rap, também chamado de hip hop, surge na década de 1970 nos bairros de subúrbio do Bronx, Harlem, Brooklyn e Queens, na cidade de Nova York, Estados Unidos, com grande influência do movimento negro dos anos de 1960, sendo uma expressão artística e cultural de jovens negros e latinos. Os DJ’s Afrika Bambaataa, Keith “Cowboy” Wiggins e Grandmaster Flash são os  principais nomes do começo do movimento.

Desembarcando no Brasil na década de 1980, o rap nacional tem como principal berço a Estação São Bento do Metrô, no centro da maior capital do país, São Paulo. Lá, jovens de diversas regiões periféricas da cidade se reuniam para  dançar break, fazer grafite, treinar rimas e debater política, sempre sob forte repressão policial.

Hip Hop São Bento - Nelson Triunfo
Nelson Triunfo (na foto), Thaide e DJ Hum são alguns dos nomes que frequentam a São Bento (Foto: Reprodução)

É na Estação da São Bento que os quatro membros do Racionais MC’s se conhecem, no final dos anos de 1980. Paulo Eduardo Salvador (Ice Blue) e Pedro Paulo Soares Pereira (Mano Brown) eram moradores do Capão Redondo, extremo sul de São Paulo, e se conheciam desde a infância. Já Edivaldo Pereira Alves (Edi Rock) e Kleber Geraldo Lelis Simões (KL Jay) moravam na zona norte da cidade e eram considerados experientes na cultura hip-hop.

A produção

Em 1988, o Racionais lançam os primeiros singles e participam da coletânea Consciência Black. Dois anos depois , é a vez do EP Holocausto Urbano, que vende cerca de 200 mil cópias e torna o grupo conhecido nas periferias de São Paulo. 

Estes  primeiros trabalhos – escreve o professor Acauam Silvério de Oliveira, no prefácio do livro Sobrevivendo no inferno    são marcados por um discurso bastante crítico de denúncia social, mas também por um tom de superioridade tanto em relação às pessoas de classe alta quanto da periferia.

Aos ricos, eles afirmam que eles não vivem a realidade de violência e descaso que as pessoas negras e periféricas vivem. E aos que moram na periferia, acusam de ser alienados.

Pânico na Zona Sul e Beco Sem Saída são músicas que têm esse discurso.

Mas em 1993, quando o grupo lança Raio X do Brasil – álbum considerado um marco cultural para o rap nacional, com os clássicos Fim de Semana no Parque e Homem na estrada – essa postura de superioridade começa a mudar. 

O álbum traz outras perspectivas, a visão dos membros do grupo passa a dividir lugar com a experiência de outros sujeitos periféricos, como na música Mano na Porta do Bar, e mostra que há uma grande complexidade na vivência das periferias.

Racionais MC's (Foto: Sérgio Amaral/Estadão Conteúdo)
Ice Blue, Mano Brown, Edi Rock e KL Jay no começo da carreira (Foto: Sérgio Amaral/Estadão Conteúdo)

Este novo olhar se consolida com Sobrevivendo no Inferno, como fica expresso na música Capítulo 4, versículo 3, ou ainda na composição coletiva da música Diário de um Detento, que retrata o Massacre do Carandiru e passa pela aprovação de detentos que sobreviveram ao massacre. 

“Se antes predominava a voz dos membros do grupo,

a partir do quarto álbum temos a voz da periferia em foco,

retratando diferentes perspectivas e suas contradições.”

Em oração

As igrejas evangélicas são presença nas periferias e, não por acaso,  Sobrevivendo no Inferno é como um culto evangélico. Isso na interpretação do professor Acauam Silvério, que divide o álbum em oito partes: louvor, leitura do Evangelho, pregação, testemunhos, interlúdio, mensagem central, reflexão e agradecimentos.

Na abertura, uma versão de Jorge da Capadócia, de Jorge Ben Jor, a canção serve como louvor e pedido de proteção a São Jorge – ressalte-se que a música faz referência ao catolicismo e às religiões de matriz africana, como a indicar que praticantes de outras religiões também são bem-vindos na composição do grande painel que é a periferia do Brasil.

Em seguida, inicia-se a leitura do evangelho marginal na música Gênesis, momento em que  Mano Brown afirma que as desigualdades não são algo natural e apresenta suas armas para sobreviver na periferia:

“eu tenho uma Bíblia velha, uma pistola automática,

um sentimento de revolta (…)”. 

Racionais MC's
Racionais MC’s (Foto: Divulgação)

Advertência

Após a leitura do evangelho, começa a pregação com a música Capítulo 4, versículo 3, onde há denúncia do racismo estrutural no país, com os membros do grupo expressando sua revolta contra o sistema, assim como seu espírito revolucionário e o senso de missão para mudar essa realidade.

As próximas canções, Tô Ouvindo Alguém me Chamar e Rapaz Comum, trazem o testemunho de pessoas envolvidas no crime, mas com uma mensagem contundente de que o crime não compensa. Na faixa instrumental, a representação de um velório interrompido por tiros, mostrando que na periferia não há paz nem para velar os mortos.

Diário de um Detento é a pregação central do álbum, onde os Racionais MC’s retomam o Massacre do Carandiru. A música é uma parceria de Mano Brown com o ex-detento Josemir Prado e traz a rotina no presídio, além de relatar a rebelião que terminou com o massacre de 111 pessoas no presídio. 

As outras canções que também fazem parte da pregação central são: Periferia é Periferia, com  a mensagem de que todas as periferias do Brasil passam por problemas parecidos, e Qual mentira vou acreditar, que denuncia o racismo.

A reflexão final é sobre os limites do alcance da “palavra”, do evangelho marginal, com as músicas Mágico de Oz e Fórmula Mágica da Paz – elas focam na dificuldade para se manter no caminho certo, enquanto a sociedade empurra o jovem negro e periférico para o mundo das drogas e do crime.

Salve, que usa o mesmo arranjo da primeira faixa, fecha o álbum, reforçando os laços entre as diferentes periferias do país.

Sobrevivendo no Inferno, Racionais MC's (contracapa)
Contracapa do álbum Sobrevivendo no Inferno, Racionais MC’s (Imagem original: EAEO Records)

Sempre o hoje

O pioneirismo de ser leitura obrigatória de vestibular conta da atualidade do denunciado em Sobrevivendo no Inferno – o Estado brasileiro continua com seu projeto de genocídio da população negra.

O aumento da pobreza nos últimos anos, a morte das crianças negras, Emilly, Rebeca, Ágatha, João, Kauê, Miguel, o assassinato do músico Evaldo dos Santos pelo exército, com 80 tiros, a chacina de nove jovens causada pela Polícia Militar durante um baile funk em Paraisópolis, São Paulo…  Sobram fatos a provar que grande parte do povo do Brasil, pobre e preto especial, insiste em sobreviver no inferno.

Homem caracterizado com roupas da tropa de choque e asas de demônio.
Polícia caracterizada demonizada no desfile da vai-vai – em resposta, delegados criticam e deputados pedem que a escola não receba mais recursos públicos. (Imagem: Reprodução | Mariana Pekim | Folha / Uol)

Em 35 anos de carreira, os Racionais MC’s quebraram diversas barreiras ao fazer com que o rap produzido nas periferias de São Paulo chegasse a todo o país. Críticas à violência policial – reproduzidas em 2024 no enredo da escola de Samba Vai-vai, Capítulo 4, Versículo 3 – , à desigualdade social e ao racismo foram ouvidas nas rádios e na televisão por jovens, trabalhadores e até pelos que tinham poder de decisão.

Potência intelectual

Em novembro de 2023, os quatro integrantes do Racionais se tornaram os primeiros negros e os primeiros músicos a receber o título de doutores honoris causa pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp.

O parecer recomendando a concessão da honraria inclui os rappers Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay entre os “maiores intelectuais da contemporaneidade brasileira”. A distinção foi aprovada pelo conselho universitário da instituição no final de novembro.

“”Trata-se de uma unidade referenciada pela coletividade. E que em suas letras e práticas públicas devolve à coletividade um sentido de história partilhada e associativa, que busca tocar imediatamente a audiência de pobres e negros periféricos. Mas, a partir deste lugar, fala sobre e para o Brasil, mais amplo que aquela audiência”, afirma o professor Mário Medeiros, do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais e presidente da comissão de especialistas formada para avaliar a pertinência da concessão do título ao grupo.

A ideia de conceder o título surgiu em uma disciplina de graduação ministrada pela professora Jaqueline dos Santos, pesquisadora do Geledés Instituto da Mulher Negra. A organização foi fundamental na formação política do grupo. Foi lá que, no início da década de 1990, os músicos se aproximaram de temas como o feminismo negro.

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Fontes: Verbete dos Racionais MC’S da Wikipédia, Prefácio o evangelho marginal dos Racionais MC’s – Acauam Silvério de Oliveira, Playlist Sobrevivendo no inferno análise – Chavoso da USP, Evangelho segundo Racionais MC’s – Henrique Yagui Takahashi, “Sobrevivendo no Inferno” é uma aula de história, política, racismo e luta por direitos, Brasil de Fato

Escrito em abril de 2021, atualizado em fevereiro de 2024.

3 comentários em “Racionais MC’s – Sobrevivendo no Inferno, primeiro álbum musical de leitura obrigatória no vestibular da Unicamp”

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