A falta do ar
- Tania Regina Pinto
Cena retirada do vídeo denúncia em que o ex-policial Derek Chauvin asfixia George Floyd (Imagem: Darnella Frazier)
Não conseguimos respirar desde que nos foi roubada a liberdade, há mais de 500 anos. Vamos à nossa história no Brasil.
25 de maio de 2020, Minneapolis (EUA)- “Eu não consigo respirar”, o apelo do americano George Floyd, assassinado por um joelho branco em seu pescoço, ainda ecoa em mim cada vez que fico sabendo de mais um assassinato negro por um assassino branco que, mesmo quando não tira a vida, retira vitalidade. Até quando pés, mãos e joelhos brancos serão símbolo da nossa permanente falta do ar?
Não conseguimos respirar desde que nos foi roubada a liberdade, há mais de 500 anos. Vamos à nossa história no Brasil.
Nos navios negreiros
Como respirar nos chamados navios negreiros em meio à própria sujeira, a doenças infectocontagiosas e a cadáveres insepultos que não aguentavam a travessia? O primeiro embarque registrado de africanos escravizados ocorreu em 1525 e o último em 1866.
Os negros sequestrados eram tratados como mercadoria. Embarcados à força, aprisionados em porões, mal conseguiam sentar. E permaneciam confinados em viagens de até dois meses. Todos nus, separados por sexo. Os homens acorrentados – para evitar revoltas -, enquanto as mulheres eram abusadas sexualmente pela tripulação.
Teatro de horror
Como respirar a partir da convivência permanente com a tortura, ora como “plateia” ora como protagonistas de espetáculos de horror, que incluíam o tinir dos ferros, o estalar do açoite na pele?
Como respirar com a corda no pescoço? Prática “comum” no período escravista e que valeu o Prêmio Esso de Fotografia para Luiz Morrier, depois da publicação na primeira página do Jornal do Brasil, de 30 de setembro de 1982. A foto, intitulada “Todos negros”, mostra um policial segurando uma corda com sete homens amarrados pelo pescoço.
Como respirar com esta força policial que, após a escravidão, assumiu para si o direito de torturar, humilhar e matar pessoas negras? Durante a escravidão, os senhores “protegiam” as pessoas escravizadas da polícia. Queriam eles mesmos machucar o corpo das pessoas negras que tentassem fugir – para dar exemplo. A estratégia incluía não permitir o descanso nem a cura das feridas depois de dias no pelourinho.
A cor da dor
- “Mulheres pretas têm quadris largos e, por isso, são parideiras por excelência.”
- “Negras são fortes e mais resistentes à dor.”
Estes simples argumentos, sem comprovação científica, são comuns em salas de maternidades brasileiras. Tão comuns que levaram a doutora em Saúde Pública, Maria do Carmo Leal, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a querer saber como estas falácias interferiam no nascimento de bebês nascidos de ventres supostamente livres.
A pesquisadora analisou prontuários médicos de 23.894 mulheres, coletados entre 2011 e 2012, fez o recorte de cor e raça, e o resultado de seu trabalho é que mulheres negras têm 50% mais chance de não receber anestesia para ampliar o local da passagem do bebê em partos vaginais, apesar de o corte ser bastante doloroso. Está tudo publicado no artigo “A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil”.
Como respirar?
Risco permanente
Sentindo mais dor que o necessário, as mulheres conseguem ter seus bebês, mas o fôlego volta a faltar cada vez que estes mesmos bebês crescem e põem os pés fora de casa, a cada aniversário, pois cresce também o risco de perderem a vida a qualquer momento, por nada.
Como respirar?
Como respirar com as tentativas diárias de nos invalidar? Olhando para a história de homens e mulheres que vieram antes e que passaram décadas sendo preteridos por causa da cor? Se ao descer do ônibus em uma rua pouco iluminada, posso ser violentada? Se durante uma blitz, no carro, com os amigos, posso morrer? Como respirar?
Lembro uma vez que fui parada pela polícia na marginal Tietê, em São Paulo, por volta de 11 horas da noite. Tinha pouco mais de 20 anos, dirigia meu fusquinha azul, usava cabelo black power, bem redondinho… Ao sinal para encostar o carro, lembro que o coração disparou. Prendi o ar. Eles pediram os documentos do carro, perguntaram de onde eu vinha, para onde eu ia, olharam e olharam e olharam e, por fim, disseram: “Pode seguir. Pensamos que fosse um elemento”!?!?! Voltei a respirar por um instante, sabendo que isso aconteceria outras vezes….
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Durante três anos, eu morei em Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul. Era correspondente do jornal O Estado de S. Paulo. E, dia sim, dia sim, lá estava eu parada em uma blitz ou sendo interpelada no aeroporto. Na época, início dos anos 1990, não existiam as facilidades tecnológicas da atualidade – usávamos telex e até telefone público para passar as matérias e as fotos iam para São Paulo “por passageiro”. A gente pedia para alguém que fosse pegar o vôo para São Paulo levar o material fotográfico para mim. Um office-boy esperava no saguão do aeroporto e reconhecia o portador pela sua vestimenta.
Quer dizer, eu vivia no aeroporto pedindo ajuda aos passageiros. Os policiais sabiam, me conheciam, eu sempre apresentava a credencial do jornal, mas mesmo assim… Eu usava trancinhas soltas e meus colegas diziam que era por causa das trancinhas!
Um detalhe curioso, voltando às blitzes: durante o tempo em que vivi no Mato Grosso do Sul, por pura distração, eu fiquei sem o documento de licenciamento, o DUT (Documento Único de Transferência), que é atualizado anualmente. Só pagava o IPVA e o Seguro Obrigatório no banco. E os policiais nunca perceberam que o documento do carro estava vencido! Eu mesma só fui me dar conta quando não morava mais lá! Em outra blitz, claro.
Respirar e sorrir
Para enfrentar esta falta permanente de ar, nossa estratégia muitas vezes é respirar fundo, devagar, pausadamente. E sorrir. Sim, “o sorriso negro traz felicidade” para nós mesmos, como canta a música imortalizada na voz de Dona Ivone Lara, “Sorriso Negro”, de autoria de Adilson Barbado, Jair e Jorge Portela.
No nosso sorriso, na nossa alegria, está também a nossa força para enfrentar a barra que é viver com a falta do ar. Como diz o multiartista Jairo Pereira, no vídeo “Sorriso”, “quando o mundo pesa, o sorriso vira abrigo, vira escudo”, vence o mal.
E, talvez, por utilizarmos nosso sorriso largo, nossa alegria, como proteção, muitos duvidem da verdade de nossas dores…
“Farto de chorar”
É tempo de entendermos o sentimento da empatia e aprender a ler com empatia, a ouvir com empatia. Não com aquele pensamento de “se fosse eu…”, mas, de fato, imaginando-se no lugar do outro, com a história de vida do outro. Lembrando que a história do povo negro não começa na escravidão.
A dor genuína, legítima, é de quem é machucado ou se machuca. E isso vale para todos nós, seres humanos, independentemente de raça, cor da pele, sexo, identidade de gênero, orientação sexual, conta bancária, nível de escolaridade, estado civil, religião….
Não temos o direito de desqualificar, menosprezar, desfazer da dor de quem quer que seja. Respeito – esta a atitude que deve pautar todas as relações. O que dói em mim, pode doer só em mim. O que dói em você – e todos temos nossos ais -, pode doer só em você.
Philonise Floyd, irmão mais novo de George, fez um emocionante discurso no Congresso norte-americano (Imagem: Reprodução)
“Estou farto de chorar”, desabafou Philonise Floyd, o irmão de George Floyd, logo após ouvir sua cunhada, Roxie Washington, com a voz embargada, dizer que a filha dela não teria o pai para levá-la ao altar, para socorrê-la quando precisasse, enquanto o policial que matou o marido dela continuaria indo para casa toda a noite, ficar com a sua família.
(Um dos policiais envolvido na morte de George Floyd, poucos dias depois do assassinato, foi solto, mediante o pagamento de uma fiança no valor de R$ 3,7 milhões, arrecadados em campanha na internet.)
Todos estamos fartos de chorar. O fato, entretanto, é que as nossas feridas não cicatrizam. E não cicatrizam porque os golpes não param e machucam mesmo quando não são pessoais.
O tempo passa.
Nada muda.
Até quando?
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