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Anastácia, sem mordaça

– Tania Regina Pinto

Você já ouviu falar de Anastácia, a mulher com olhos azuis e mordaça de ferro, símbolo de resistência e dor? Sua história, envolta em mistério e controvérsia, nos leva a uma profunda reflexão sobre a brutalidade da escravidão e a força da resistência negra. Embora sua existência histórica seja debatida, Anastácia representa a voz silenciada de muitos que lutaram e sofreram sob o jugo da escravidão no Brasil. Vamos mergulhar na narrativa dessa figura emblemática, cuja imagem transcende a necessidade de comprovação histórica para se tornar um símbolo poderoso de luta e liberdade.

A voz que se liberta como um monumento à luta negra, de homens e mulher, por existir. Conheça a história da imagem que ilustra nossa coluna.

São muitas as versões sobre a história da jovem negra de cabelos curtos, dentes muito brancos, lábios sensuais, olhos azuis penetrantes, onde se notava sempre uma lágrima a rolar silenciosa, com uma mordaça de ferro e aço (flandres) para que ninguém mais apreciasse a sua beleza ou saciasse a sua fome e também a gargantilha de ferro dos negros fujões.

A verdade é que pouco se tem comprovado da vida desta mulher. Alguns autores colocam em dúvida até a sua existência, atribuindo a criação do mito ao desenho assinado pelo desenhista francês Étienne Victor Arago, intitulada “Castigo de Escravos”.

Castigo de Escravos, Jacques Etinne Arago, 1839
“Castigo de Escravos” (1839), Jacques Etienne Arago (Imagem: Domínio público)

Uma dessas pessoas é o monsenhor Guilherme Schubert, historiador e cônego, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro que, após dois anos de pesquisa, em 1988, chegou à conclusão que “Anastácia nunca existiu. Foi inventada”. E que a ilustração tida como seu retrato, na verdade, é um homem. Ou melhor,

“a mistura dos traços de dois homens, tomados como modelo pelo artista, que esteve no Rio por volta de 1816, para mostrar dois tipos de castigo usados na época,a máscara de flandres e a gargantilha”.

Anastácia, verdade simbólica

Se a história de Anastácia é verdadeira, não importa. Ela representa todos e todas que tiveram sua liberdade roubada e todos que vieram depois e se mantêm “herdeiros” da brutalidade e da arrogância de quem detém o poder.

A imagem pela qual se cultua Anastácia é ostentada em santinhos da Igreja Católica e vale mais que um milhão de palavras no que diz respeito à tortura imposta ao povo negro sequestrado, escravizado e assassinado no Brasil.

Anastácia, a beleza

Cobiçada pelos homens – fazendeiros e feitores, invejada pelas mulheres, amada e respeitada pelos seus irmãos na dor e pelos velhos que nela sempre encontraram a conselheira amiga, Anastácia tinha poderes de cura para os males da alma e do corpo.

Além de bonita e atraente, era culta, inteligente e tinha o dom da oratória, que utilizava para conscientizar os outros escravizados.

E esses talentos, somados, foram a causa de seu infortúnio e de sua “santificação”.

Cultuada no Brasil como santa e heroína, considerada uma das mais importantes figuras femininas da história negra, traz em todas as narrativas da sua vida um misto de luta, bravura, resistência, doçura e fé.

Anastácia, a princesa africana

Na tradição oral  – narrada em livros umbandistas e dramatizada em 1986 na rádio Nacional do Rio de Janeiro -, Anastácia, princesa africana do povo bantu, já se destacava no navio negreiro que a trouxe ao Brasil, por seu porte altivo, beleza e  juventude.

A narrativa mais detalhada, entretanto, conta que era Delminda, mãe de Anastácia, a negra formosa, da tribo bantu, que chegou ao Brasil em 1740, no navio negreiro “Madalena”, que aportou no Rio de Janeiro, com um carregamento de 112 africanos.

Anastácia Livre, obra de Yhuri Cruz.
Anastácia Livre, obra de Yhuri Cruz.

Da família real Galanga, do Congo ou de Angola, países limítrofes, Delminda, ainda no cais do porto, foi arrematada por mil réis pelo feitor Antônio Rodrigues Velho.

E, como era “comum” à condição das mulheres escravizadas, foi violentada e vendida grávida para Joaquina Pompeu, indo viver em Minas Gerais.

Anastácia, nascida escrava no Brasil

Na condição de escravizada, Delminda deu à luz a Anastácia, que cresceu, tornando-se objeto de adoração do sinhozinho Joaquim Antônio, que a protegia e não permitia que lhe fizessem qualquer mal.

Apaixonado, Joaquim chegou a lhe oferecer dinheiro para que fizessem sexo. Mas ela, além de resistir, negar-se a deitar com ele, afirmava: 

“Nenhum homem branco será capaz de amar Anastácia!”

Cansado da recusa, movido pelo ódio – ou cego de amor -, o jovem a amaldiçoa e determina que se coloque uma mordaça de flandres para que ninguém mais aprecie a sua beleza e a gargantilha de ferro, marca dos fujões.

Dizem que as mulheres e as filhas dos senhores de escravos de Minas Gerais eram as que mais incentivavam a manutenção de tal mordaça, pois morriam de inveja e ciúme da sua beleza.

Outra versão da Anastácia brasileira sugere que, pelos seus dotes físicos, tenha sido aia de uma família nobre que, ao regressar a Portugal, a teria vendido a um rico senhor de engenho e a levado para uma fazenda perto da Corte, então no Rio de Janeiro, onde sua vida sofreu uma brutal transformação.

Anastácia, a ferros

Por se negar a ser amante de seu senhor (dizem alguns), ou para que não mais pudesse falar contra a escravidão (explicam outros), ou, ainda, por “roubar” um torrão de açúcar, quando trabalhava na lavoura, ou por todas essas razões, Anastácia foi sentenciada a espancamentos constantes, bem como a usar mordaça de ferro por toda a vida, só tirada às refeições, e a gargantilha de ferro.

mordaça de ferro e aço
Mordaça e gargantilha (Imagem: Reprodução)

Mas os castigos não surtiram o efeito pretendido, pelo menos no que diz respeito ao seu ativismo. Anastácia apurou a telepatia e, comunicando-se também através de seus olhos azuis, continuou a passar aos cativos o seu discurso por liberdade.

A história da vida de Anastácia na lavoura é contada por outros de seus divulgadores. Dizem que, certo dia, ela teve vontade de provar um torrão de açúcar e foi apontada como ladra pelo feitor. Daí o uso da mordaça.  

Nesta narrativa, soma-se o ciúme da sinhá da fazenda que, com medo de que o seu esposo se apaixonasse pela escravizada, num requinte a mais de crueldade, mandou o mesmo feitor colocar a gargantilha de ferro.

Além dos registros que falam sobre uma bela mulher que não cedeu aos apelos sexuais de seu senhor e, por isso, foi estuprada e amordaçada, outros dão conta que ela foi sacrificada pela paixão bestial de um dos filhos de um feitor, não sem antes haver resistido bravamente a tais assédios, sendo, depois, ferozmente perseguida, torturada e submetida a violência sexual.

Anastácia, a morte

Na história que culpa um feitor e uma sinhá pelos castigos, comenta-se que os dois se arrependeram e, por isso, permitiram o seu velório na capelinha da fazenda em Minas Gerais.

Seu senhor, também, com remorso, providenciou-lhe um enterro como escrava liberta com sepultamento na igreja construída pelos negros.

Há escritos que relatam, ainda, que depois de longos anos suportando os instrumentos de suplício e os espancamentos, Anastácia foi levada para o Rio de Janeiro, onde morreu, aos trinta e poucos anos de idade, devido à gangrena na boca e na garganta.

Igreja do Rosário e São Benedito
Fachada do local onde acredita-se estarem os restos mortais de Anastácia, a Igreja do Rosário e São Benedito (ou Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos) à direita da imagem. (Imagem: Reprodução)

A ideia de que os restos mortais foram sepultados na Igreja do Rosário, no mesmo Rio de Janeiro, é a mais corrente. Na Igreja, destruída por um incêndio em 1967, junto com os poucos documentos que poderiam confirmar a sua  existência, inclusive, foi encontrado, entre as cinzas, um quadro com a gravura ampliada de Anastácia, a mesma que identifica nossa coluna Sem Mordaça.

Anastácia, a gravura

A gravura original de Anastácia, do desenhista francês Étienne Victor Arago, foi publicada no livro Souvenirs d’um Aveugle – Voyage autour du monde (Lembranças de um Cego – Viagem ao redor do mundo), um grande sucesso editorial na Europa do século XIX – a palavra “cego” no título do livro é porque, depois desta viagem, a artista ficou com deficiência visual.

No livro, Arago registra que a mordaça e a gargantilha eram expedientes que evitavam que os escravos roubassem comida.

Hoje, entretanto, se sabe que as mordaças eram utilizadas, em especial, para evitar que os trabalhadores em mineração de ouro comessem as pepitas de ouro, as quais recuperavam na evacuação. 

O contato com a realidade do sistema escravocrata brasileiro por Arago, se deu porque ele foi contratado para ilustrar uma missão científica que deveria percorrer o mundo – uma prática comum antes do advento da fotografia. Mas o navio em que estava naufragou e ele acabou fazendo esta parada na Corte.

Anastácia, o chamariz

Em 1968, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro fez uma ampliação fotográfica da gravura, intitulada Castigo de Escravos, retirada do acervo do Arquivo Municipal, para uma exposição comemorativa dos 80 anos da assinatura da lei de abolição.

A exposição trouxe visibilidade à figura da escravizada e foi remontada em vários locais até ser doada ao Museu do Negro, mantido pela Irmandade de São Benedito dos Homens Pretos no prédio da Igreja do Rosário no Rio de Janeiro.

Museu do Negro Sala Yolando Guerra
Sala “Yolando Guerra”, Museu do Negro, Rio de Janeiro (Imagem: Reprodução/Guia Cultural do Centro Histórico do Rio de Janeiro)

O historiador monsenhor Schubert afirma que a imagem se tornou um chamariz para visitação do Museu do Negro e seu diretor à época, Yolando Guerra, “inventou” toda a história da escravizada, publicando artigos em revistas espíritas dizendo ter conversado com o espírito de um ex-escravo, que lhe contara quem era a mulher da fotografia.

Chamaram-na Anastácia pois não tinha documentos de identificação. Do grego, a ressuscitada.

Anastácia, a canonização

O culto à Anastácia tem três facetas: uma católica, uma umbandista – a mais forte – e uma terceira vertente, um espiritismo, criação pessoal de Nilton da Silva, diretor da Ordem Universal da Escrava Anastácia, no Rio de Janeiro, criada no mesmo 1968.

Nilton da Silva foi quem, também, em 1984, liderou movimento pela sua canonização, sem sucesso.

Em 1987, autoridades eclesiásticas proibiram que se aceitasse missas em sua homenagem, depósito de ex-votos de cera no Museu ou venda de santinhos com sua oração.

A justificativa é que não é possível abrir processo de canonização de Anastácia por não haver provas históricas de sua existência. Quer dizer, oficialmente, para a Igreja Católica, Anastácia é folclore.

Anastácia, a “santa”

A Igreja por ter dito não à canonização, mas a devoção é real”, como destacou o historiador Joel Rufino dos Santos, à época, lembrando que essa mesma “Igreja foi cúmplice da escravidão”.  

Canonizada ou não, Anastácia  e seus milagres arrebanham cerca de 30 milhões de seguidores de diversas religiões que, desde a década de 1970, enchem a sala do Museu do Negro e os santuários em sua homenagem.

Imagem de Anastácia, Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, Salvador, Bahia. (Imagem: Wikimedia Commons)
Imagem de Anastácia, Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, Salvador, Bahia. (Imagem: Wikimedia Commons)

E saindo das divisas do Rio de Janeiro, mesmo sem o aval da Igreja Católica, Anastácia é reverenciada como santa e heroína em São Paulo, Bahia, Belém do Pará e, também, em países africanos.

Anastácia, a milagreira

Segundo seus devotos, “A Santa” – como é cultuada na Umbanda -, quando viva, colocava as mãos nos doentes e os males desapareciam.

Por ironia, inclusive, o dom que possuía curou o filho do fazendeiro que a violentou e estava com uma doença pulmonar grave.

O dia 12 de maio é consagrado a ela, como data de seu nascimento e é celebrado tanto nas igrejas do Rosário e de São Benedito dos Homens Pretos, quanto nos centros espíritas e terreiros.

No “Cordel da Escrava Anastácia”, a informação é que a libertação da sofrida princesa, muito perseguida e sacrificada a ponto de cedo perder a vida, aconteceu em 13 de maio de 1888.

Anastácia, no cinema

A imagem com a mordaça de ferro, famosa no mundo inteiro, inspirou o diretor americano Jonathan Demme no seu filme “Amada”, baseado em um clássico da literatura negra norte-americana da escritora Toni Morrison, de 1999, estrelado pela apresentadora e atriz Ophray Winfrey.

“Viajei para o Brasil muitas vezes e trouxe de lá essa imagem impressionante de Anastácia, com seus olhos flamejantes, impedida de falar”, declarou Jonathan Demme a um grupo de jornalistas estrangeiros, quando promoveu o filme no Reino Unido.

E complementou: “Eu, deliberadamente, incluí aquela cena da escrava no filme para mostrar o quanto podemos ser cruéis uns com os outros. Minha intenção era induzir as pessoas a pensarem a escravidão em termos mais profundos e humanos.

No Brasil, o título do filme é “Bem-Amada”.

Anastácia livre!

Em 2019, o artista carioca Yhuri Cruz, de 29 anos, “livrou” Anastácia do peso de dois séculos de suplício, ao fazer o afresco-monumento A Voz de Anastácia, como uma viagem no tempo, uma volta ao passado para sua libertação.

A Voz de Anastácia se ergue como um monumento à voz negra, feminina, de luta pela existência.

Ao lado da obra, quando da exposição, santinhos ficaram disponíveis para serem levados, com a Oração à Anastácia Livre, para problemas de difícil solução.

A criação do carioca foi incluída nos livros didáticos das mais de 200 escolas da rede Eleva, maior rede de escolas privadas do país. 

Fontes: Jornal O Globo, de 21/3/1988, Wikipédia,  CEERT, Portal São Francisco, Umbanda, quimbanda e Candomble, Orixás e entidades da umbanda, livro “Anastácia – escrava e mártir negra”, de António Alves Teixeira, editora Eco, Folha de S. Paulo, Veja Rio

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Anastácia: A Voz Silenciada que Ecoa a Luta pela Liberdade

Anastácia é uma figura emblemática na história da resistência negra no Brasil, frequentemente retratada com uma mordaça de ferro e olhos azuis expressivos. Embora sua existência real seja objeto de debate, a imagem de Anastácia se tornou um símbolo poderoso de resistência contra a escravidão e a opressão. Historiadores e pesquisadores divergem sobre a veracidade de sua história, com alguns argumentando que ela pode ter sido uma criação baseada em ilustrações do século XIX. No entanto, para muitos, Anastácia representa todos aqueles que tiveram suas liberdades roubadas e sofreram sob a brutalidade da escravidão no Brasil. Cultuada como santa e heroína, sua história é um lembrete da luta contínua pela justiça e igualdade.

Quem é Anastácia na história e na cultura brasileira? Anastácia é considerada uma figura simbólica da resistência negra contra a escravidão no Brasil, frequentemente retratada com uma mordaça de ferro e olhos azuis, simbolizando a opressão sofrida pelos escravizados.

Existem provas históricas da existência de Anastácia? A existência histórica de Anastácia é debatida, com alguns pesquisadores questionando sua veracidade e outros considerando-a uma figura simbólica importante, independentemente de sua existência factual.

Qual é o significado da imagem de Anastácia com uma mordaça? A imagem de Anastácia com uma mordaça simboliza a brutalidade da escravidão e a supressão da voz e da liberdade dos escravizados, tornando-se um ícone de resistência e luta pela liberdade.

Como Anastácia é cultuada no Brasil? Anastácia é cultuada como uma santa e heroína em várias partes do Brasil, especialmente dentro das comunidades afro-brasileiras, umbandistas e espiritualistas, representando a luta contra a injustiça e a opressão.

Qual é o legado de Anastácia para a sociedade brasileira O legado de Anastácia para a sociedade brasileira é um poderoso lembrete da história da escravidão e da resistência negra, incentivando a reflexão sobre justiça social, igualdade e a importância da memória cultural na luta contínua pelos direitos humanos.