É difícil ser negro
- Hamilton Bernardes Cardoso
O desabafo de um homem negro, militante, nos anos 1970 – auge da ditadura militar como forma de governo, de censura, tortura e aumento da perseguição e repressão a todos que queriam outro Brasil. Período em que as questões raciais se mostram urgentes, em que os debates se dividiam entre as referências norte-americanas do movimento negro e à aproximação com a África e sua luta de libertação colonial. Um tempo de ir para as ruas lutar por igualdade, equidade, entre negros, brancos, homens e mulheres.
Hoje em dia é duro ser negro. Aliás, ninguém no Brasil é negro, todo mundo é brasileiro, ao menos até a hora de ser discriminado. Dançar samba, fazer macumba, roubar, matar, ser baiano, cagar num lugar que não seja o meio, principalmente, tudo é coisa de negro (ou porque precisa ou porque é tradição ou, ainda, porque a sociedade assim definiu). Mas a gente se esforça.
Se a gente é bom e se comporta, alma branca. Se é ruim, o sanguinário Idi Amim (referência ao ditador militar, presidente de Uganda entre 1971 e 1979). A imagem negra do branco, sempre na cabeça de cabelos lisos, na cabeça de cabelo duro, na mente brasileira. A gente é sempre julgado dos dois lados, direito-esquerdo, quem tá do lado de lá e do lado de cá.
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Ser negro é difícil. A gente é colocado numa caixa, é moldado. A caixa é aberta e a gente sai (ou tiram a gente de lá de dentro). Aí, todo mundo pensa que a gente nasceu dentro da caixa. Todo mundo pensa que a gente foi feito junto com a caixa.
Respirar o vento poluído de fora da caixa não é fácil. É duro. Aí a gente descobre que tem pernas, braços, cabeça, cabelo duro, tudo preto, tudo negro. A gente arranca tudo do lugar e mistura no corpo. Merda! Todo mundo olha a gente e pensa que a gente é bicho.
Eles esperam que a gente saia do quadrado da caixa! A gente sai como pode. Uns como eles, outros quadrados e outros como eram antes de entrar. Aqueles que saem como eles querem são condecorados (condenados): medalhas de prata, medalhas de ouro, medalhas de lata. Isto para a gente descobrir que é diferente do resto, melhor. Para descobrir não, para acreditar. Tem gente que acredita e sai dando medalhada na cabeça de todo mundo. É ouro! É prata! É lata! É tudo!
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Tirar uma casquinha de quem não tem mais casca, escalpelar a cabeça da gente mesmo. Esta cabeça (pra eles) burra, inteligente (pra nós), no alto deste pescoço preto.
Destruir eles? Nem pensar. Isto seria anti-humano, a-cristão, irracional.
Igualar? Impossível. Não se pode igualar o que não é diferente nem desigual.
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É fogo! Ser quente pra mulher loura, fiel para a mulher negra, infiel para o homem negro, universal para o homem branco, mulata para o homem loiro, nega para todos os negros, exótica para o estrangeiro, fiel para o homem negro, doméstica para a mulher branca, doméstica para o homem negro, e tudo isto passivamente. Ser o que, afinal?
É duro ser negro. É difícil ser brasileiro. Brasileiro é coisa fina subdesenvolvida. Europeu de pele negra? Africano de pele branca? Exótico racional? É difícil ser negro.
É duro porque é preciso ser gente (além de ser obrigado). É duro ser gente porque gente vive e respira no meio de gente. Mas gente é… sonho pop. Gente fina é outra coisa.
É difícil ser negro. No Brasil é fácil nascer de pele preta. É fácil fazer macumba, ser rei do futebol, cantar samba ou ser quente na cama.
É fácil ir para a praia deixar a pele mais escura, deixar o cabelo duro, black power. É fácil ter uma mãe negra, ama seca ou seca mãe. O duro, o difícil, é ser negro.
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O autor
Hamilton Bernardo Cardoso escreveu este texto em 1977 – um ano antes da criação do Movimento Negro Unificado. Ele estava lá, nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, de microfone em punho, em luta por existir, em luta por existirmos, denunciando a morte por tortura de negros, a discriminação racial.
As laudas, de 20 linhas por 70 toques, em que ele escreveu este texto seguem comigo. Nos conhecemos na Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Ele, o veterano que passaria o “trote” na caloura. Era o ano de 1975.
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Na época, éramos três os estudantes de Jornalismo da instituição.
Hamilton era ativista negro de esquerda, jornalista. Escrevia para a grande imprensa, jornais alternativos, foi repórter especial de política do Diário Popular, Repórter do Povo do SBT, sempre lutando na imprensa para existir para além da cor, para além da militância.
Tornar-se negro
Hamilton enegreceu depois de moço, com toda a dificuldade que seu texto escancara, quando já vivia na cidade de São Paulo.
O teatro abriu seus olhos ao participar, como ator, da peça E agora falamos nós, escrita e montada pelo sociólogo Eduardo de Oliveira e Oliveira (1926 – 2012) e pela atriz Tereza Santos (1930 – 2012). Do exercício de interpretação, o mergulho na história de seu povo.
Ele integrava o Núcleo Negro Socialista da Liga Operária e queria sair às ruas, denunciar o mito da princesa redentora e a mentira da democracia racial. Defendia a necessidade de nos fazermos representar nas diversas instâncias de poder.
Rápida passagem
Hamilton ficou pouco tempo entre nós. No dia 1º de maio de 1988, aos 33 anos, foi atropelado, passou um ano internado. Sobraram sequelas e a interrupção abrupta da carreira como jornalista, mas não como militante negro de esquerda.
Tamanha dor o fez querer o próprio fim – foram três tentativas até que morreu em 5 de novembro de 1999. Quarenta e cinco anos depois de ter nascido em 10 de julho de 1954, em Catanduva, interior paulista, filho de Onofre e Deolinda.
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(Saudade sempre. Por Tania Regina Pinto)
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