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“É preto ou negro?” – É Letramento racial.

– Tania Regina Pinto

Já parou para pensar no impacto das palavras que usamos no dia a dia? O Letramento Racial nos convida a uma profunda reflexão sobre como a linguagem pode perpetuar o racismo e a desigualdade. Neste artigo, vamos mergulhar na ideia de que mudar nosso vocabulário e nossas atitudes pode ser um passo crucial para desconstruir preconceitos e construir uma sociedade mais justa para todos. Vamos juntos nessa jornada de aprendizado e transformação?

A cor da pele não pode ser quesito único para nada, nunca! É preciso ampliar o olhar para quem somos. Um caminho é parar de querer me identificar pela cor da minha pele ou objetificar a minha existência.

Me chame pelo meu nome. Abstenha-se do racismo recreativo. Nada de piadas de mau gosto, de comentários que desqualificam. Cuide da atitude, revisite suas crenças – tente desconstruí-las, atenção à palavra, invista na qualidade do diálogo.

“A língua, por mais poética que possa ser, tem também uma dimensão política de criar, fixar e perpetuar relações de poder e de violência, pois cada palavra que usamos define o lugar de uma identidade”, ensina a teórica Grada Kilomba no livro “Memórias da Plantação (Cobogó Editora).

Por meio de suas terminologias, a língua informa-nos constantemente de quem é normal e de quem pode representar a verdadeira condição humana.

Diálogos, alias, só são possíveis entre seres humanos.

É disso que se trata quando se pensa em Letramento Racial, uma ideia desenvolvida pela antropóloga afro-americana France Winddance Twine libertadora.

Me chame pelo meu nome

É fundamental um trabalho de desconstrução linguística. Expressões como “mestiço”, “mestiça”, “mulata”, “mulato”, “cabrita”,”cabrito”, “escravo”, “escrava” devem ser banidas porque são estratégias explícitas de desumanização do povo negro, ancoradas na linguagem colonial ou na nomenclatura animal, ligados às políticas de controle da reprodução e proibição do “cruzamento de raças”, apesar de terem sido romantizados à época.

As palavras “mestiço”, “mestiça”, tem sua origem na reprodução canina, para definir o cruzamento de duas raças diferentes, que dá origem a uma cadela ou cão considerado impuro e inferior.

“Mulato” e “mulata” se refere ao cruzamento entre um cavalo e uma mula, duas espécies de animais diferentes, que dá origem a um terceiro animal, também considerado impuro e inferior.

“Cabrita” e “cabrito” são expressões utilizadas para definir as pessoas de pele mais clara, quase próximas da branquitude, sublinhando porém a sua negritude e definindo-as como animais.

Quanto à substituição da palavra “escravo” pelo termo “escravizado”, no masculino e no feminino, Grada Kilomba indica a substituição de uma expressão de desumanização “natural” das pessoas por um processo político ativo de resgate dessa humanidade.

E não há nada mais urgente do que um vocabulário no qual todos nos reconheçamos na condição humana.

Letramento Racial é uma estratégia para responder individualmente às tensões raciais, lado a lado com respostas coletivas, por meio de políticas públicas; uma proposta que, para dar certo, envolve negros, brancos, amarelos, vermelhos, a humanidade enfim. A meta é desconstruir o racismo, a partir da reeducação.

Como nos reeducamos quando vivemos em uma sociedade na qual o quesito cor impede a igualdade de oportunidades?

É preciso ampliar o olhar para nossas atitudes, palavras, sentimentos, crenças, comportamentos, de modo a barrarmos tal dinâmica. A cor da pele não pode ser quesito único para nada, nunca.

Preconceito de cada dia

Por que não estranhamos a ausência de negros como espectadores nos espaços culturais? Por que não questionamos a falta de pessoas negras no nosso local de trabalho ou consideramos normal que só ocupem cargos de menor remuneração? Por que a competência de um médico negro é questionável?

Médico negro
Arte: Candido Vinícius sobre foto de Thirdman/Pexels

Não são poucas as pessoas negras que têm sua disposição para o trabalho, sua higiene e sua honestidade postas em xeque, apesar de, em muitos lares e no mercado de trabalho em geral, serem contratadas essas mesmas pessoas para serem responsáveis pela limpeza, pelo cuidado das crianças, da alimentação, da segurança…  Por que tamanha contradição?

Um dos pilares do Letramento Racial é exatamente desenvolver a capacidade de interpretar códigos e práticas racistas que estão no nosso dia a dia.

E as perguntas acima propõem esta reflexão. Muita coisa a gente nem imagina por que faz, fala, acredita… Precisamos começar a pensar no nosso discurso, nos responder estas questões.

E isso não tem nada a ver com ser “politicamente correto”. A meta é banir o racismo do planeta.

Por que?

Porque em uma sociedade racista, todos perdem.

O vírus e a vacina

O racismo é como um  vírus, democrático.  Todos são contaminados:  parte não sente nada ou consegue se tratar em casa; outra parte adoece, mas consegue sobreviver, e outra parte morre.

O Letramento Racial é a possibilidade de vacina. Possibilidade por conta da abrangência, da ideia de reeducação de todos, de cura de todos.

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Só que todos, também, precisamos ser diagnosticados, de modo a diminuir o contágio, os riscos de doença e morte.

A nosso favor, o fato de que os testes estão à disposição. Basta querermos nos colocar à prova. E sem sair de casa.

Um exemplo de teste doméstico é o nosso vocabulário. Sobram palavras, expressões, já incorporadas no cotidiano, que promovem a discriminação.

Vocabulário racial

A professora Thais Silveira, em campanha social da Universidade La Salle, produziu o vídeo Tire o racismo do seu vocabulário!, em que condena expressões e palavras  como “ter um pé na cozinha”, “denegrir” e “não sou tuas negas”, entre outras, vinculadas, de forma pejorativa, ao ser negro. Mas ela não se limita a denunciar o errado, propõe alternativas respeitosas a todos.

É a correção no pensar e no agir, desconstruindo formas discriminatórias, naturalizadas na sociedade, como, por exemplo, atirar bananas em atletas negros em eventos esportivos.  

O preconceito nas redes sociais é uma crescente – quanto mais tomamos posse de nós mesmos, maior a resistência dos que têm dificuldade em perceber que somos todos iguais.

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A desqualificação virtual, a partir da cor, não tem limite, ao lado do desprezo por nossas dores, comparando-as ao choro de crianças mimadas, entre outras muitas possibilidades que a crueldade humana é capaz de inventar.

Isso tudo apesar de o racismo ser identificado, na Constituição Federal, como uma forma de violação dos direitos e liberdades individuais. E nos termos do Artigo 5º, Inciso XLII, explicitar que a sua prática “constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão”.

Primeira negra

O culto à beleza branca também tem lugar nas formas de pensar naturalizadas, com uma estratégia deliberada de ofuscar a beleza negra, seja por conta de nossos lábios grossos e carnudos; nossos cabelos crespos, que ficam lisos quando queremos ou trançados, dias a fios, em penteados estonteantes; seja o nosso tom de pele, perseguido todo verão pelos não negros; seja por nossa sensualidade natural…

Michele Obama, em seu livro Minha Vida, conta como teve de lutar para não se deixar destruir, quando seu marido decidiu candidatar-se à Presidência dos Estados Unidos.

Michelle Obama
Michelle Obama (Foto: Getty Images)

No caminho para a conquista do pioneirismo como primeira mulher negra a se tornar primeira dama dos Estados Unidos da América, matriarca da primeira família negra a morar na Casa Branca, até de racista e terrorista ela foi acusada.

Nem a largura de seus quadris ou seu visual foi deixado de lado. A dúvida, registrada na imprensa americana, sobre seu modo de vestir, de apresentar-se ao mundo, foi: “Majestoso ou Intimidante”? E em tudo estava implícita a estratégia de invalidá-la.

“Eu estava me cansando, não física, mas emocionalmente. Os golpes machucavam… Era como se existisse uma caricatura de mim (…) Minha sensação era de que nada que eu fizesse estaria certo (…) Eu era mulher, negra e forte, o que para certas pessoas só poderia traduzir-se em ‘raivosa’. Outro clichê sempre empregado para varrer para o canto as mulheres de minorias, um sinal inconsciente de que não deveriam escutar o que tínhamos a dizer…”

E ela ainda escreve: “Quantas ‘mulheres negras raivosas’ ficaram presas na lógica circular dessa expressão? (…) Eu estava esgotada pela crueldade, mas convicta de que não havia chance de eu desistir.”.

Aula rápida

Muitos de nós, negros e negras – com variados tons de pele -, reproduzimos expressões que nos desqualificam.

Isso porque racismo estrutural é como o sol, como a chuva, atinge a todos, bons e maus, descendentes de seres humanos escravizados ou não.

Conceição Evaristo, com sua escrita, nos convida a fazer diferente. Está lá, na página 111, do livro Becos da Memória:

…todos os negros escravizados de ontem, os supostamente livres de hoje, se libertam na vida de cada um de nós que consegue viver, que consegue se realizar.”

Quer dizer, nossa ancestralidade se fortalece e se renova a partir da nossa ação e, neste Sem Mordaça, o convite é para nos tornarmos visíveis a partir de quem somos. Isso implica letramento racial, reeducação.

Na prática

Aqui, vamos nos obrigar registrar expressões pejorativas e o significado, para que sejam banidas do nosso vocabulário, das nossas conversas, do nosso pensar:

“Serviço de preto”

Sinônimo de tarefa malfeita, realizada de forma errada, associação racista à qualidade do nosso trabalho.

“Não sou tuas nega”

Reproduz a ideia de que mulheres negras não são dignas de respeito, passaporte para a irresponsabilidade afetiva. Referência histórica, que remete às escravas que sofriam abusos e maus-tratos dos senhores brancos.

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A coisa está preta

Há o uso do termo preto como valor negativo, associação pejorativa, de ser ruim. O mesmo acontece com “mercado negro”, que embute, ainda, um agravante histórico: a origem do termo é ligada ao mercado ilegal de escravos, que passou a vigorar no Brasil após a proibição do tráfico.

“Você não é tão negra. Você é uma morena linda”

Ensina o dicionário que morena “é mulher com cabelo preto ou castanho, geralmente de tez mais escura do que as louras”. É uma variação da raça branca. E mais: beleza não tem a ver com cor de pele.

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Verbo “denegrir”

Sinônimo de tornar negro, o verbo “denegrir” significa “deturpar, destruir, fazer mal”.

“Você é tão exótica!”

O dicionário também ensina que este adjetivo está ligado ao que não é comum. E nossa beleza é comum, afinal, somos a maioria do povo brasileiro.

Verdades embaraçosas

“Neguinho é muito folgado” – não cabe a insistência em considerar o povo preto sinônimo de vagabundagem! Nossa história inclui 350 anos de trabalhos forçados.

É de nossas ancestrais o leite que alimentou filhos não nascidos de ventres negros. É de nossos ancestrais o conhecimento medicinal que salvou vidas. É nossa a primeira escrita. Definitivamente, nossa existência não se limita entre a cozinha e a cama.

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Não temos  “a cor do pecado”, expressão que classifica a mulher negra como objeto, que retira a humanidade e hipersexualiza a população negra, sem possibilidade de gerar, escolher e trocar afeto.

Não é nossa a cor da corrupção, do ilegal, do proibido. É branca a cor dos sequestro e da escravização.

É branca a cor dos que exploraram e macularam corpos negros. Não somos nós os autores dos maiores crimes contra a humanidade.

É disso que trata o Letramento Racial, auto questionamento, reflexão, reeducação, reconstrução, mudança, ressignificar o próprio existir, resgatar-se na história.

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Linguagem e Poder: Desconstruindo o Racismo Através do Letramento Racial

O artigo aborda o conceito de Letramento Racial, destacando a importância de reconhecer e alterar o uso de linguagem que perpetua estereótipos e discriminação racial. A autora discute como termos pejorativos e expressões racistas estão enraizados na linguagem cotidiana, influenciando negativamente as percepções sobre as pessoas negras. Ela argumenta que é essencial um esforço coletivo para mudar a forma como nos expressamos, promovendo uma linguagem que respeite a dignidade de todos. O Letramento Racial é apresentado como uma ferramenta poderosa para combater o racismo, incentivando uma reeducação linguística e comportamental que reconheça a humanidade e a igualdade de todos os indivíduos.

O que é Letramento Racial? Letramento Racial é um conceito que envolve a conscientização e a mudança de linguagem e comportamentos para combater o racismo e promover a igualdade racial, reconhecendo e respeitando a diversidade humana.

Por que é importante mudar nosso vocabulário em relação à raça? Mudar o vocabulário é crucial para desfazer estereótipos raciais e evitar a perpetuação de discriminação e violência, promovendo uma sociedade mais justa e igualitária.

Quais termos são considerados problemáticos e por quê? Termos como “mestiço”, “mulato”, “cabrito” e “escravo” são problemáticos porque têm origens pejorativas, desumanizam pessoas negras e perpetuam conceitos racistas, sendo necessário substituí-los por expressões que respeitem a dignidade humana.

Como o Letramento Racial pode combater o racismo? Através da reeducação e mudança de linguagem e atitudes, o Letramento Racial promove uma compreensão mais profunda das questões raciais, incentivando práticas que respeitem a igualdade e a diversidade, e combatendo ativamente o racismo.

Qual é o papel da sociedade na promoção do Letramento Racial? A sociedade tem um papel fundamental na promoção do Letramento Racial, envolvendo-se em processos de aprendizado contínuo, questionamento de preconceitos, e adotando linguagem e comportamentos que reflitam respeito e igualdade para todas as raças.