Paixão, aventura, curiosidade e discrição – palavras que definem a carreira e a vida pessoal de Glória Maria, mulher negra, referência no jornalismo nacional e para estudantes negros e negras.
O que este artigo responde: Quem foi Glória Maria,? Como Glória Maria entrou para o jornalismo da Tv Globo? Quais são os pioneirismos de Glória Maria? Quais desafios Glória Maria enfrentou em sua carreira? Como Glória Maria superou um tumor cerebral? Qual é a importância de Glória Maria para o povo negro? Glória Maria era ativista do movimento negro? Glória Maria conheceu o mundo inteiro trabalhando como jornalista? Como Glória Maria definia a profissão de jornalista? Quais os desafios que Glória maria enfrentou por ser mulher negra? Como Glória Maria resistiu durante a Ditadura no Brasil?
São cinquenta anos de jornalismo profissional, recheado por reportagens históricas, únicas. Glória Maria Matta da Silva estreia como repórter, em 1971, na cobertura do desabamento do Elevado Paulo de Frontin, no Rio de Janeiro; cobriu a posse do presidente americano Jimmy Carter em Washington e, no Brasil, durante a ditadura militar, entrevistou chefes de estado, como o ex-presidente João Baptista Figueiredo.
E, ainda, cobriu e reportou o fim da Guerra das Malvinas, em 1982, como primeira mulher da Globo a fazer cobertura de guerra; a invasão da embaixada brasileira do Peru por um grupo terrorista (1996), os Jogos Olímpicos de Atlanta (1996) e a Copa do Mundo na França (1998).
Entrevistas com celebridades a colocaram frente a frente com o cantor britânico Mick Jagger, em 1984; com Freddie Mercury, vocalista da banda Queen, durante o Rock In Rio de 1985, com Michael Jackson, quando da gravação do clipe They don’t care about us, no Morro Dona Marta, no Rio de Janeiro, em 1996.
Sem fronteiras
A paixão pelo trabalho a levou a todos os nossos seis grandes continentes: África, Ásia, Europa, Oceania, América e Antártida, construindo uma coleção com mais de dez passaportes preenchidos, com carimbos de mais de 160 países.
O Espírito aventureiro a fez desafiar-se a ponto de pular de bungee jump a 233 metros de altura (equivalente a 88 andares), em Macau, na China, para realizar uma reportagem especial para o Globo Repórter; sobrevoar de helicóptero um vulcão, voar de asa delta, nadar com um urso polar e escalar a Cordilheira do Himalaia, na Ásia – onde fica o Monte Everest.
A curiosidade guiou seus passos e o olhar do telespectador para lugares inusitados do Brasil e mundo. Vale lembrar o Globo Repórter dedicado à Jamaica, terceira maior ilha do Caribe, de 2016. Durante o programa, a jornalista mostra a tradição do atletismo no país – é a terra do recordista Usain Bolt – e o legado musical e ideológico de Bob Marley. E vai além: participa de um ritual religioso na comunidade rastafari Bobo Ashanti (um dos grupos mais tradicionais da ilha, que se considera africano), reza e compartilha um cachimbo gigante de maconha com dois homens.
Realeza do Carnaval
“O mais extraordinário é a possibilidade que o jornalismo te dá de aprender. É uma profissão em que você tem contato direto com todo tipo de emoção.”
Assim Glória Maria define sua profissão e a carreira vivida, enraizada na Rede Globo, a emissora onde ganhou notoriedade como repórter e âncora dos noticiários Hoje, Jornal das Sete, Bom Dia Rio e RJTV.
Mas a vida de Glória Maria Matta da Silva não começa na tela da TV. Esta mulher negra vitoriosa, pioneira, vem à luz em 15 de agosto de 1949, saída do ventre de Edna Alves Matta, enquanto o alfaiate Cosme Braga da Silva, aguardava ansioso as notícias sobre seu bebê.
A infância foi no bairro Vila Isabel, na Zona Norte do Rio de Janeiro. E, na escola – estudava em colégio público – já se destacava nos concursos de redação e sabia falar inglês, francês e latim.
A vida profissional se inicia aos 16 anos: telefonista na Empresa Brasileira de Telecomunicações (Embratel). Com o salário ajudava nas despesas de casa e pagava a mensalidade do curso de jornalismo na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Eram os anos 1960.
A diversão? Samba. Glória Maria foi princesa do bloco carnavalesco Cacique de Ramos.
E desta condição de realeza do Carnaval nasce sua história com a Globo. No programa do Chacrinha, com membros do bloco, ela pediu um emprego e conseguiu. Ingressa na emissora em 1970, trabalhando como rádio-escuta, como estagiária – quer dizer, sem salário – segue estudando e como telefonista com os estudos, até ser efetivada na TV.
Pioneiríssima
Em 1971, Glória Maria se torna a primeira repórter negra da TV brasileira e o seu primeiro desafio é cobrir o desabamento do Elevado Paulo de Frontin, no Rio de Janeiro. Na época, os jornalistas não apareciam em vídeo. O que se via eram as imagens e a voz do repórter ou apresentador.
Sua matéria de estréia em vídeo acontece em 1974 e é feita no Hotel das Palmeiras, onde a Seleção Brasileira estava concentrada para os jogos da Copa do Mundo.
Glória é também a primeira repórter – e negra – a entrar ao vivo e a cores na televisão, direto da Avenida Brasil, no Rio de Janeiro, para o Jornal Nacional, e a primeira a realizar a primeira transmissão em HD da televisão brasileira, lá em 2007.
Outro pioneirismo seu é registrado em 1977, quando é escalada para cobrir a posse de Jimmy Carter, em Washington, Estados Unidos – a primeira jornalista estrangeira – e negra – a entrevistar um presidente norte-americano.
Por aqui, Glória teve de lidar não só com o general João Baptista Figueiredo e o seu preconceito – ela ainda ousou corrigir um erro de português que o militar cometeu, mas também com o ex-comandante Ernesto Geisel.
“Foi quando ele [João Figueiredo] fez aquele discurso ‘eu prendo e arrebento’, para defender a abertura (1979). Na hora, o filme (da câmera) acabou e não conseguimos gravar. Aí eu pedi: ‘Presidente, é a TV Globo, o Jornal Nacional, será que o senhor poderia repetir?’, então ele respondeu: ‘Problema seu, eu não vou repetir”.
Além disso, a jornalista recorda que onde ela chegava, o ex-presidente dizia para a segurança:
Ser jornalista nos anos de chumbo, da Ditadura Militar, que durou de 1964 a 1985, não é para qualquer um ou qualquer uma.
Fantástica!
Depois de, em 1984, antecipar, com exclusividade para o Jornal Nacional, parte do juramento olímpico do velocista Carl Lewis – então campeão mundial dos 100m rasos,
antes mesmo da solenidade de abertura dos Jogos Olímpicos de Londres, no estádio Los Angeles Memorial Coliseum, na Califórnia (EUA), é ela quem dá um salto na carreira!
Em 1986, entra para a equipe do Fantástico, seu rosto passa a ser mais conhecido e as experiências profissionais se tornam mais eletrizantes e estelares.
Madonna, Leonardo Di Caprio, Nicole Kidman, Deserto do Saara, na África, os caminhos de Jesus – de Israel ao Egito -, Lapônia, no norte da Finlândia…
Ao lado de Pedro Bial, em 1998, Glória assume o comando do programa de domingo. Anos depois, em 2003, faz uma entrevista exclusiva com o então presidente Luís Inácio Lula da Silva, após a sua posse. Já em 2006, produz quadros de destaque durante uma viagem ao lado do escritor Paulo Coelho, na Rússia.
Nos bastidores
Depois de quase dez anos de Fantástico, Glória Maria pede um tempo, se afasta das telas por dois anos, durante os quais descansa, se dedica a projetos pessoais e trabalhos voluntários na Índia e na Nigéria. Neste período, também, decide ser mãe e adota as irmãs Maria e Laura, em 2009.
De volta em 2010, assina um novo contrato como repórter especial do programa Globo Repórter.
Fora da TV, como eterna repórter, gosta de conversar bem próximo das pessoas, mas prefere manter sua vida pessoal longe dos holofotes e das redes sociais.
De sua vida amorosa, se sabe de oito anos ao lado do engenheiro austríaco Hans Bernhard e seis anos com o francês Eric Auguin. Em 2008 teve um breve caso com o estudante de psicologia Bernardo Langlott e se casou, em segredo, com o produtor musical Carlos Araújo – mas cada um viveu em seu apartamento durante os quatro anos de relacionamento.
Sua idade é outro mistério – ela diz que não revelar a idade é uma forma de não envelhecer mais cedo. E, para ajudar no rejuvenescimento, Glória se exercita regularmente, faz jejuns e toma até cinco mil cápsulas de remédios naturais por semana.
Em 2019, submeteu-se a cirurgia para retirar um tumor cerebral maligno. Passados alguns meses, declarou, em entrevista, que ainda prosseguia o tratamento do câncer. E, em janeiro de 2020, teve de ser internada devido a uma infecção pulmonar.
Vivemos um tempo de visibilidade negra nas mídias, de quase celebração – não fosse o racismo sempre presente no nosso cotidiano -, mas Glória Maria vem de outro século, em que a presença negra no telejornalismo era quase solitária e sua posição simples e direta na tela da TV era ativismo.
Maria, a glória, na primeira pessoa do singular
*Com a Redação
Em 9 de dezembro de 2021, Gloria Maria – que passou a vida querendo ser chamada só de “Maria” – aceita o convite de Mano Brown e muda de lado por 2 horas e 4 minutos, sendo a entrevistada do último programa, de nº 16, da primeira temporada do podcast Mano a Mano, algo raríssimo de acontecer na vida da jornalista:
“Entrevista é uma coisa de mão dupla. Ou você abre a sua alma ou não abre (…) Falar todo mundo fala. Abrir a alma é outra coisa.”
E, ao “abrir a alma” – na mesma semana em que teve de se submeter a exames médicos, por conta de uma suspeita, não confirmada, de outro tumor -, Glória conta um pouco de sua vida, suas verdades e do jornalismo, como acredita.
Abaixo, a reprodução, editada, de algumas de suas falas, como registro histórico da vida desta mulher negra singular, que se assume como “a melhor ou uma das melhores entrevistadoras do Brasil”:
Idade e família
“Todo mundo sabe que eu odeio data. Nada do que se fala de números na minha vida é correto… Eu invento. Eu confundi tanto os fatos que ninguém vai conseguir fazer contas. E não é porque tenho vontade de esconder a idade. É cultura familiar. Idade nunca fez parte da história da minha família porque pouquíssimos foram registrados… Eu fui criada entendendo que tempo é tempo, não é número… As pessoas não sabiam fazer conta. Quase todos eram analfabetos… Minha avó só sabia escrever números e ler para fazer jogo do bicho.”
Pioneirismos
“Eu fui praticamente a primeira a estudar, me formar. Ninguém falava vai pra escola… Eu fui matriculada e, depois disso, eu me virei, porque eu queria estudar…”
“Mas eu nunca pensei que estava sendo a primeira… Eu fui a última a aparecer no vídeo quando os jornalistas começaram a aparecer. Isso porque eu tinha medo. Era insegura. Uma coisa era aparecer só a mão. A outra coisa era ter que botar o rosto… Também não pensei. Não dava tempo para racionalizar. Tinha que fazer…”
“Temos que abrir caminho e ir em frente. Essa vaidade, esse ego, de se dar importância o tempo todo me cansa… Ou você faz história ou fala que faz história. Tem uma diferença enorme… Hoje tudo é marketing!”
“Celebrar conquistas é diferente de querer fazer história o tempo inteiro. Quando eu entrei para o Fantástico, por exemplo, comemorei muito. O Fantástico só tinha loiras. Foi uma conquista da minha família, não uma conquista minha. O que eles fizeram por mim deu certo. Eles me deram liberdade de eu ser quem eu quisesse ser.”
Racismo
“Quando comecei a apresentar o Fantástico, eu recebia cartas da redação do tipo ‘como você, uma negra, não tem vergonha de estar aí, tirando o lugar de pessoas brancas, lindas, da apresentação desse programa’… E eu ficava com aquela carta na mão, lendo dez, vinte, trinta vezes… Não é um post que você vai e apaga. Acabava o Fantástico e recebia telefonema: ‘Essa neguinha tirando o lugar de brancas!’ Sofri anos apresentando o Fantástico – os dois primeiros anos, em especial, foram muito duros…”
Ditadura
“Época terrível… Era censura em cima de censura… Ditadura nunca mais… Me espanto de hoje as pessoas pensarem na possibilidade de uma volta à ditadura. É como se a gente voltasse para o inferno… Vivemos a cultura do supérfluo, da bobagem. E, assim, sua alma não cresce, você não tem como se conhecer, vai ficar no raso. E o raso é isso: a arma, a ditadura…”
Rede Globo
“Sou uma mulher de televisão. E tenho orgulho de ter trabalhado este tempo todo em um único lugar. Não foi fácil. Superei vários obstáculos… Sempre fui respeitada como ser humano – sem família rica, sem marido poderoso… E eu era sozinha. Mas a TV Globo nunca me fez favor nenhum. A TV Globo acreditou no meu talento. Ela não me deve nada e eu não devo nada a ela. O que ela investiu em mim como profissional, eu dou de volta em audiência e em credibilidade, o bem mais precioso e raro de todos, algo que não se compra nem se fabrica, meu bem maior.”
Jornalismo
“Nós, repórteres, não somos advogados de defesa. Minha profissão não é para defender ninguém. Eu não sou promotor, também não tenho que acusar. Eu não sou juiz, eu não tenho que julgar. O que eu tenho que fazer, a minha obrigação, é mostrar para a sociedade os fatos. É colocar diante do olhar de todo mundo o que acontece . O jornalista é um fiscal da sociedade. Temos de esquecer um pouco o glamour – é difícil isso, eu sei -, a possibilidade do sucesso fácil ou do charme e lembrar que o jornalista é um prestador de serviço da sociedade. Jornalismo é arte, arte de pensar, de falar, de se autoanalisar, arte de olhar para o outro.”
Religiosidade
“Eu tenho um lado muçulmano, um lado judeu, um lado católico, estudo cabala… Gosto da essência de tudo… Toda religião tem um objetivo só, que é o exercício da fé… O problema é a disputa de poder. Eu fico o mais longe possível disso.”
Vida
“Eu tive um tumor no cérebro. Um dia, do nada, caí e descobri que tinha um tumor que ia me matar em 15 dias se eu operasse e com chance enorme de sequelas no pós cirurgia… Pouca gente acreditava que eu ia voltar a trabalhar. Eu hoje sou uma Fênix – pássaro lendário da mitologia grega que tem o poder de transformar-se em ave de fogo e renascer das cinzas. Minhas chances eram muito pequenas. Eu inchei muito, tive convulsão, minha boca ficou deformada. Foi uma tragédia… Todo mundo queria saber o segredo da saúde de Glória Maria, da juventude e, de repente, Deus disse: ‘Agora chega. Você vai conhecer o outro lado do paraíso, que é não ter saúde’. E me vi diante desse que foi o maior desafio da minha vida inteira! – dois anos para eu me recuperar, desde novembro de 2019. E eu nunca tinha tido problema de saúde nenhum. Quando voltei para apresentar o Globo Repórter, todo mundo achava que estava vendo um fantasma… Inacreditavelmente, estou aqui.”
Ouça o podcast na íntegra aqui.
…
Em 2 de fevereiro de 2023, complicações de um câncer no cérebro interromperam a jornada gloriosa de Glória Maria.
Fontes: Globo, Pure People, Wikipedia, IG, Mano a Mano
Escrito em 6 de dezembro de 2021
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