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Infância discriminada

- Tania Regina Pinto

Criança observando fogos no réveillon de Copacabana, em 2018 (Foto: Lucas Landau)

O desafio da proteção contra o racismo durante a infância.

Criança preta não é só criança, e toda criança sabe disso – o racismo é apreendido e reproduzido de forma assustadora. Nossas crianças negras ainda são preteridas, rejeitadas, isoladas, humilhadas, achincalhadas e sentem desejo de morte, tamanha a dor que têm de suportar, sem entender.

A criança preta, vítima desde sempre, leva essa cicatriz para a vida – quando sobrevive -, um trauma que se instala, invade sem pedir licença e que, talvez, anos de terapia possam curar.

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A empresária e influenciadora digital Ana Paula Xongani descreve – em  um trecho do vídeo Tenho Pressa – a cena vivida por sua filha, de então 4 anos, rejeitada por um grupo de meninas brancas no parquinho do condomínio onde morava, na capital paulista:

Mesmo antes de dizer ‘olá’, todas correm. Ela se aproxima e todas as outras se agrupam. Ela chama e ninguém responde. A isolam, a excluem, a machucam…

E a criança preta já sabe que será sempre assim e se adapta, se adequa, como a filha de Ana Paula contou: “É sempre assim, mãe. Mas eu não me importo. Gosto de brincar sozinha”.

Tem muita coisa linda na maternidade, mas tem muitas dores também. Ser mãe de uma menina preta me trouxe muitos medos, muitos desafios e muita força (…) Meu coração parte!”, confessa, em lágrimas, a youtuber.

Solidão

“Quando engravidei, fiquei muito aliviada de saber que dentro do meu ventre tinha um homem. Porque eu tinha certeza que ele estaria livre de passar por situações vivenciadas por nós mulheres. Mas ele está livre? Errado! Porque o meu filho é um menino negro e liberdade não é um direito que ele vai poder usufruir” – este, o início da fala da atriz Taís Araújo, no TEDx São Paulo, Como criar crianças doces num país ácido.

E ela explica: “Se ele andar pelas ruas descalço, sem camisa, saindo da aula de futebol, corre o risco de ser apontado como infrator, mesmo com seis anos de idade. Adolescente, ele não vai ter a liberdade de ir para a sua escola, pegar uma condução com sua mochila, seu boné ou capuz, seu andar adolescente, sem correr o risco de levar uma investida violenta da polícia”.

Por que isso?

“Porque no Brasil, a cor do meu filho faz com que as pessoas mudem de calçada, escondam suas bolsas e blindem seus carros”, responde a atriz. “A vida de meu filho só não vai ser mais difícil do que a da minha filha”.

E são as meninas mesmo, hoje mais velhas, as que mais comentam quantas vezes foram deixadas de lado, quantas vezes ouviram “não brinque com ela, ela é preta”, quantas vezes ficaram horas no banheiro querendo “limpar” a cor da própria pele, depois de ouvirem “preta suja”…

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Adultas, elas narram essa ferida que insiste em não cicatrizar, ao denunciarem a solidão da mulher preta. Isso porque a dor da sua criança permanece e soma-se à dor por saber que seus filhos e filhas vão passar pelo mesmo sofrimento.

Como seria bom se a criança negra pudesse ser apenas criança…

O tempo todo temos que buscar ar, respirar fundo, transformar toda a nossa raiva, toda a nossa indignação, toda a nossa mágoa, em resistência, força, coragem por nós e pelos nossos, o que inclui as crianças que não saíram do nosso ventre mas têm a cor da nossa pele.

Mães negras passam a vida a rezar para que seus filhos e filhas aguentem firmes, sobrevivam, se reinventem, sejam sobre-humanos. Por isso, crescemos ouvindo que temos de ser duas, três vezes, melhores em tudo. Não é tranquilo, não é confortável, o fardo pesa.

Viva à diferença

Ensinar as crianças a não perceber a diferença de cor, de raça, de cabelo, de história, não é o melhor caminho para se criar crianças sem preconceito, crianças antirracistas.

Não perceber as diferenças é tornar o outro invisível. Não somos iguais: as pessoas têm tons de pele, traços, altura, peso, corpo, cabelo, pés, mãos, dedos, tudo diferente e a diferença é uma riqueza. Aí, o aprendizado, um viva à diferença!

Diversidade
Imagem: Angelina Bambina/Getty Images

Depois de repetir tantas vezes a mesma palavra. Pensei em procurar sinônimos.  Qual a minha surpresa? Os verbetes que a internet oferece para substituir a palavra diferença são: desarmonia, desconformidade, desequilíbrio, desigualdade, desinteligência! Isso é burro demais. É racismo.

Então, me permito ser repetitiva no uso do substantivo:

Valorizar a diferença na infância é cultivar igualdades.

Nossos pontos de vista se ampliam quando conseguimos internalizar este valor.

Pessoas de alturas diferentes olham em uma mesma direção e enxergam coisas distintas. Da soma dos olhares, uma ideia enriquecida do todo, os detalhes. E este é só um exemplo dos mais básicos, mas que vale para tudo.

No mundo corporativo, as reuniões de trabalho chamadas brainstorming – prefiro ‘tempestade de ideias’ – usam este princípio. Já aprendemos que várias cabeças pensam melhor. Por que então esta insistência em não querer saber do outro, por que a intolerância, por que negar a riqueza do encontro com o diverso? Racismo, claro!

Assuntos espinhosos

É preciso falar sobre racismo. É preciso identificar o racismo mesmo quando nos propomos atitudes antirracistas. E a ideia não é acusar, é conscientizar. A atualidade do debate sobre racismo estrutural tem este objetivo.

Todos temos atitudes, pensamentos, vocabulários, crenças, valores, racistas. Somos, todos, foco, público-alvo do racismo. Só conscientes desta realidade poderemos ressignificar o viver em uma sociedade plural e diversa, atuando para que ela se torne igual.

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Setembro amarelo, mês de prevenção ao suicídio, é também um tempo para falar da importância de cada vida negra. Não são poucos os negros e negras, jovens inclusive, que têm atentado contra o próprio existir, pela barra que é estar inserido em uma sociedade tão racista e desumana quanto a nossa.

Nos dois casos – racismo e suicídio -, qualquer fala, situação, de uma criança, adolescente, jovem ou adulto, não pode ser simplesmente desqualificada ou ignorada.

É preciso, sempre, entender por que uma pessoa xinga a outra usando da cor da sua pele, seus traços fenótipos, ou a ignora, ou, ainda, fala que “a vida é sem graça”, que “a vida deveria ser mais curta” ou explicita que quer morrer.

“Banho de cândida”

Me lembro de um almoço com um grupo de mulheres brancas cristãs em que uma delas contava como sua família é inclusiva – “o irmão tinha adotado um garoto negro, que vivia dizendo que queria ser branco, que ia ‘tomar banho de cândida’…”!

Quando a questionei sobre a dor deste menino, querendo saber se ele tinha contato com outras pessoas negras, se ele se reconhecia em alguém da família… Sua resposta foi uma expressão de interrogação exclamativa.

Só que é preciso entender por que uma criança negra quer ser branca… Pode não ser rejeição, mas apenas querer ser igual à família que a adotou. Ou, ainda, a percepção de que pessoas brancas moram em casas melhores que pessoas negras, ou têm profissões mais interessantes…

Ou, o pior: ele pode estar sendo vítima de discriminação pelo simples fato de existir e ter nascido com a pele escura.

Diálogo é vida. Falar de racismo não vai tornar ninguém racista, assim como conversar sobre suicídio não representa estímulo à abreviação da própria existência. Nos dois casos, o oposto é a possibilidade de acolhimento, de existência plena.

Verdade nua e crua

O Brasil tem a cor da África, da Europa, das Américas, da Ásia. Nossa diversidade é uma riqueza. Então, por que somos tão desiguais nas oportunidades? É preciso questionar-se.

A Unicef, Fundo das Nações Unidas para a Infância, na campanha Por uma infância sem racismo alerta a sociedade sobre os impactos do racismo na infância e na adolescência, propõe dez atitudes antirracistas e convida pessoas, além de organizações e governos, a arregaçarem as mangas e garantir os direitos básicos de nossos  pequenos.

O racismo é real! Existe dolorosamente para milhares de meninos e meninas indígenas e negros. E não se revela apenas no constrangimento imposto nos parquinhos infantis, muitas vezes de forma dissimulada. Tem um aspecto ainda muito mais cruel, ao bloquear o direito à vida, à educação: 

  • Uma criança indígena tem duas vezes mais chance de morrer do que uma criança branca

 

  • Crianças negras têm 25% mais chances de morrer, antes de completar um ano de idade, do que as crianças brancas

 

  • pobreza na infância atinge 32,9% das crianças brancas e 56% das crianças negras

 

  • 62% das crianças negras estão fora da escola, mesmo sendo quase 54% do total de crianças do país

Estes números são da Unicef Brasil. Se refletem no cotidiano! É assim que  crianças de todas as cores crescem e se desenvolvem com imagens distorcidas de papéis sociais, usando a lente da cor da pele, acreditando que devem ocupar lugar diferente na sociedade, na escola, na TV, nas ruas, nos livros…

Este pode ser um problema invisível para muitos, mas é real para quem sente na própria pele os seus efeitos e – acreditem – todos pagamos pela distorção, pela inconsciência.

A lente da cor

Ampliar o olhar da sociedade sobre a questão racial é fundamental para a construção de uma sociedade igualitária, onde todos tenham consciência de quem são, de seu lugar de privilégio ou não, o que inclui conhecer a formação do nosso povo, a história do país onde nascemos e vivemos…

Perguntas infantis como “Mãe, por que as empregadas são negras?”, “Por que a criança que está pedindo dinheiro no farol é negra?”… devem ser respondidas com informações da vida real, sem perder de vista – de novo – que nós existimos para além destes lugares a nós impostos. Não que sejam – como se costuma qualificar – “trabalhos menores”, mas porque temos, como todos, a capacidade da excelência em tudo que nos propomos realizar. 

Fora da caixa

Os negros são mais de 50% do povo brasileiro. Estamos no dia a dia, atendendo na gerência de bancos, nos tribunais de Justiça, escritórios de contabilidade, empreendendo…

Para superar o racismo, precisamos entender, por exemplo, que é na escravidão africana nas Américas que nasce essa ideologia, defendida em bulas papais e filosofias, que olham as pessoas negras como seres inferiores.

Escravos carregando café, Jean-Baptiste Debret
Ilustração: "Escravos carregando café" (1826), Jean-Baptiste Debret

Não é possível criar crianças saudáveis, plenas, sem informação. Existe um projeto de poder deliberado de reinterpretação da história, que busca eximir-se de culpa pelo racismo, praticando o racismo implícito, escondido, disfarçado.

Precisamos oferecer às nossas crianças a verdade.

O racismo faz parte da identidade nacional brasileira e é isso que precisamos mudar, oferecendo, por exemplo, modelos inclusivos que contemplem a cor da pele, pessoas da vida real: não só a babá, mas também a pediatra, por exemplo.

Nós, negras, temos fama de ser boas com crianças – e muitos filmes mostram isso, como o Histórias Cruzadas, de 2012 -, mas não limitemos o nosso existir. Vale lembrar Estrelas Além do Tempo, de 2016, que registra os feitos de  uma equipe de cientistas da NASA, formada exclusivamente por mulheres afro-americanas, crucial para a vitória dos Estados Unidos, na época da corrida espacial.

DNA racista

Crianças não nascem discriminando e são muito sensíveis a questões do que é justo e injusto. Utilizemos o senso de justiça infantil para explicar sobre desigualdades. E vamos incluir a ideia de justiça restaurativa, que é um conceito bárbaro para se colocar as coisas no lugar.

Quando uma criança faz algo errado, podemos escolher entre corrigenda, castigo, bronca, grito ou perguntar o que ela poderia fazer para que tudo ficasse bem de novo, para reparar um malfeito, para fazer a ‘amiguinha’ racista repensar sua atitude… – já que não se pode mudar o ontem nem mesmo o segundo que passou, devemos nos reeducar e reeducar as crianças de todas as cores sempre que tivermos oportunidade.

A formação do povo brasileiro é uma história que exige reparação, que pede justiça restaurativa. Uma atitude infantil racista pede justiça restaurativa. 

Assim, tenha certeza, o seu educar será muito mais rico, pois incluirá o pensar criticamente, cada vez menos contemplado na educação formal.

Vamos resgatar o viver filosófico, o amor pela sabedoria, experimentado apenas pelo ser humano consciente de sua própria ignorância, conforme entendia Pitágoras.

No cotidiano, são muitas as injustiças… Agucemos o olhar. Nós podemos. Eu acredito que o bem exige a ação e que quem não faz nada está fazendo o mal.

Marca do medo

Até pouco tempo não havia teorizado a respeito, mas vivemos em uma sociedade que tem a marca do medo. De um lado, mães e pais negros temem pelo futuro de seus filhos e filhas. De outro, a sociedade branca teme quem não tem medo, por conta de toda a opressão que impôs ao longo de séculos.

Isso fez sentido quando assisti ao filme Sarafina! O Som da Liberdade, de 1992, que reconstrói o assassinato de crianças mortas com tiros nas costas, pela polícia, dentro de uma escola em Sowetto, na África do Sul, durante o regime do apartheid.

Elas lutavam por liberdade, liberdade para aprender a própria história.

Em discurso, para os sobreviventes, durante o enterro dos estudantes, um dos líderes do lugar respondeu a questão que me faço à exaustão, a cada notícia de bala perdida, de morte por engano, de violência por causa da inscrição no boné, de carteira no bolso confundida com arma, entre outras desculpas esfarrapadas que alimentam o noticiário:

Por que matam a nossa infância, a nossa juventude? É ódio?

– Não – esclarece o filme.

Eles temem vocês porque são jovens. Temem vocês porque são o futuro. E quanto devem temer, para atirar em crianças… Quanto poder devem ter, para temerem tanto… Vocês são poderosos porque sua geração será livre!”

Um discurso inspirador, sem dúvida. E roubo para mim as palavras do orador: “Meu coração palpita como se eu fosse jovem de novo.”

Mas não estou escrevendo que esta é a verdade. É apenas uma ideia que fez sentido em mim, que sei que a polícia tem sua origem na captura de pessoas escravizadas que fugiam e que esta mesma polícia representa o “estado de direito”?!…

Para fechar este pensar, uso mais uma vez a voz de Taís Araújo, a mãe, para responder a outro questionamento permanente em mim:

Como acabar com o racismo?

“Transformando pensamentos, falas, em ação” – propõe ela.

Ação individual gera impacto no coletivo. Pequenas ações são valiosas, são capazes de mudar o mundo e o mundo começa em nós mesmos.”

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