Museu virtual, de música, mas que também conta a história da luta desse artista brasileiro por liberdade – liberdade de negramente existir, cantar e gravar somente o que interessa ao seu coração.
Pioneiro da música independente, figura rara, complexa, genial, compositor marginal, expressão de vanguarda da Música Popular Brasileira, original, único, documento artístico e histórico do pais, Itamar Assumpção inicia sua jornada entre nós em 13 de setembro de 1949, na cidade de Tietê, interior de São Paulo, e termina na capital paulista em 12 de junho de 2003.
Compositor, cantor, instrumentista, arranjador e produtor musical brasileiro, se destacou na cena independente e alternativa de São Paulo nos anos 1980 e 1990.
Raiz
Pai das cantoras e compositoras Anelis Assumpção e Serena Assumpção, que morreu em 2016, é bisneto de escravizados angolanos. Cresce ouvindo batuques, do terreiro de candomblé, e samba no quintal de sua casa, em Arapongas, no Paraná, onde mora a partir dos 12 anos.
Chega a cursar até o segundo ano de Contabilidade, mas abandona os estudos para fazer teatro e se apresentar em shows.
Aprende a tocar violão sozinho e, ouvindo Jimi Hendrix, aprende a fazer arranjos. Apaixona-se pelo baixo e toca harmonias simples. Chega em São Paulo, capital, em 1973, para se dedicar à música. Aprende atonalismo, música concreta, sem tonalidade preponderante.
Maldito
O duelo verbal lhe apetece como defesa da integridade do artista e – ao observador atento assim parecia – dá-lhe prazer triturar argumentos dos que tentam dirigir o seu processo de criação.
Pela rebeldia, ousadia e audácia, artistas como ele ganharam a alcunha de “malditos”. Mas Itamar detestava tal rótulo:
“Maldito quer dizer o que? Livre?” – retrucava.
Polemista, se saía bem, talentoso que era com as palavras não só no âmbito poético. Odiava ouvir que só fazia música para intelectual:
Em uma de suas tiradas mais famosas disse:
“Se tivesse que ouvir conselho, pediria ao Hermeto Pascoal… Eu sou artista popular!” – bradava indignado.
Mas o fato é que Itamar Assumção “não cabia em uma palavra”, como conta um dos filmes-documentário sobre sua história.
Isca de Polícia
Itamar não simpatizava com a movimento negro – nunca foi “raízes africanas”. Se casou com uma mulher loira, filha de italianos, do Paraná, com quem viveu 35 anos, Elizena Brigo de Assumpção.
As questões da negritude, entretanto, perpassam sua obra. Vale lembrar os versos de Batuque:
“Houve um tempo em que a Terra gemia
E um povo tremia de tanto apanhar
Tanta chibata no lombo que muitos morriam
No mesmo lugarDeu bandeira, dançou na primeira
Dançou capoeira, dançou de bobeira
Dançou na maior, deu canseira
Sambou na poeira, tossiu na fileira
Dançou pra danaro meu pai, minha mãe, minha avó
Tanta gente tristonha que veio de lá
Minha avó já morreu, o meu pai lá se foi
Só ficou minha mãe pra rezarDeu bandeira…
Eu me lembro dos fatos
Que meu avô cantava nas noites de frio
Não chorava, porém não sorria
Mentir não mentia, fingir não fingiuDeu bandeira…
Liberdade além do horizonte
Morreu tanta gente de tanto sonhar
Quem foi? (Foi Zumbi!)Houve um tempo em que a Terra gemia
E um povo tremia de tanto apanhar
Tanta chibata no lombo que muitos morriam
No mesmo lugarDeu bandeira…”
Ou Cabelo Duro:
“Eu tenho cabelo duro
Mas não o miolo mole
Sou afro brasileiro puro
É mulata minha prole
Não vivo em cima do muro
Da canga meu som me abole
Desaforo eu não engulo…
É com ervas que me curo
Caso algum tombo me esfole
Em se tratando de apuro
Meu pai Xangô me socorre.”
O racismo estrutural, diversas vezes, o colocou à margem, como avalia sua filha, Anelis Assumpção. No comentário sobre o pai, ela comenta as constantes abordagens feitas pela polícia, que deixaram marcas profundas em sua vida.
Não por acaso, o nome da sua banda, criada em 1979, e que o acompanhou por toda a carreira foi batizada, com ferina ironia, de “Isca de Polícia” – é o que ele era, era como se sentia batendo com a sociedade racista.
Som livre
Itamar cantava do lugar do marginal, do delinquente. Mas fugia do óbvio com sua música vertiginosa, teatral, mesmo tendo de enfrentar, o tempo todo, manifestações racistas, “sutis” ou não:
“Não é por que eu sou preto que eu sei tocar pandeiro” – costumava responder quando alguém insistia em lhe oferecer o instrumento.
E frequentemente insistiam.
As gravadoras queriam que ele cantasse pontos de umbanda ou samba.
Ele disse: “Não!”
No seu tempo, em 1996, até fez um disco – independente – dedicado à obra do sambista e compositor Ataulfo Alves, que recebeu o Prêmio de Melhor do Ano da APCA – Associação Paulista dos Críticos de Arte.
Itamar era encantado pelas notas musicais e suas possibilidades… Suas canções, misturavam samba com rock e funk, entre outros ritmos estrangeiros, enquanto as letras eram impregnadas de sátira e crítica social, influenciado pelo trabalho de músicos de gêneros variados.
E ele se permitia ouvir Roberto Carlos, Clementina de Jesus, Adoniran Barbosa, Cartola, Bob Marley e Miles Davis. Sem limites nem caixinhas.
“Sua batalha era ser reconhecido como um pensador, um intelectual. Itamar era um autodidata…”, lembra a filha e guardiã de sua obra.
Ônus
Estar à margem da grande indústria, de certo modo, dá a Itamar a liberdade da experimentação e da invenção. Livre das amarras mercadológicas, que determinam como deve ser uma canção ou um disco voltados ao consumo de massa, pode criar projetos ousados.
Um deles é o lançamento simultâneo de três volumes de um só disco, Bicho de 7 cabeças, em 1993, junta com a banda Orquídeas do Brasil, composta apenas por musicistas mulheres,
Dono de uma incansável mente criativa, Itamar deixa de herança diversos escritos e rascunhos de letras e canções, reunidos e lançados pelo Itaú Cultural no volume Cadernos Inéditos.
Em tudo, ele reflete a própria condição da atuação profissional de um artista, tema das canções Vida de artista (“na vida sou passageiro, eu sou também motorista”) e Prezadíssimos ouvintes (“já cantei num galinheiro, cantei numa procissão, cantei ponto de terreiro, agora quero cantar na televisão”).
Em diálogo com a poesia, Itamar assina composições com Paulo Leminski – Dor elegante e Filho de Santa Maria – e Alice Ruiz –Milágrimas e Tristeza não.
Aprovação póstuma
O tempo passou e, hoje, no ambiente acadêmico, todo o trabalho do cantor, compositor e multi-intrumentista Itamar Assumpção inspira, como fonte inesgotável de criatividade, artigos científicos, dissertações de mestrado e teses de doutorado em diversas áreas do conhecimento, como a musicologia, a história e os estudos literários.
A música independente não é uma novidade no Brasil. O que hoje ouvimos falar sobre a produção independente não poderia existir se não fosse o trabalho pioneiro de artistas que, no início da década de 1980, desbravaram caminhos à margem da grande indústria fonográfica.
Por isso, Itamar é, também, reverenciado pela nova geração de músicos. São exemplares as regravações de Liniker , na música Fim de Festa; de Teto Preto, em Já deu pra sentir; de Metá Metá, em Tristeza não; de Tono, em Nega música, e Criolo, em O tempo todo – todos artistas e grupos nascidos num tempo em que a internet facilita a produção e a circulação de trabalhos independentes.
David e Golias
Itamar estava para a indústria fonográfica, como David para o gigante Golias. Chega em São Paulo e, não demora, é um dos grandes nomes a contribuir na cena alternativa que domina a cidade entre 1979 e 1985 – movimento que se convencionou chamar de Vanguarda Paulista e reuniu artistas que decidiram romper o controle das gravadoras sobre a produção e lançamento de novos talentos.
Na única vez em que teve um disco seu editado por uma grande gravadora, a Continental, concebeu um disco temático Intercontinental! Quem diria! Era só o que faltava!!!!, de 1988.
Não deu mais. Depois, só discos independentes. Ao lado de Arrigo Barnabé, Grupo Rumo, Premeditando o Breque, Língua de Trapo e dos Pracianos, resistiu com sua obra considerada “difícil” pelas gravadoras.
Palco principal
O denominador comum a todos os membros da Vanguarda Paulista – para a divulgação de seus trabalhos – era o palco do acanhado Teatro Lira Paulistana, no bairro Pinheiros. Todos os representantes do movimento passavam por ali e compartilhavam seus talentos.
Itamar participou intensamente da obra de vários artistas ligados à Vanguarda, como instrumentista, compositor ou produtor. Tudo era feito entre eles: produziam e lançavam seus trabalhos através de suas microempresas e auto gerenciavam suas carreiras.
Mas, para acompanhá-lo na maioria de seus trabalhos em discos e shows, Itamar tinha a sua banda Isca de Polícia, com espaço para mulheres – sua música e era na linha do baixo e coro das mulheres.
A música continua
Itamar morreu em 2003, de câncer no intestino, após lutar quatro anos contra a doença. Um ano depois, foi lançado o álbum Vasconcelos e Assumpção – Isso Vai Dar Repercussão, gravado pouco antes da sua morte, com apenas sete músicas, em parceria com Naná Vasconcelos.
A banda Isca de Polícia seguiu em frente e, em 2017, fez o espetáculo Para Ver a Banda, show do álbum Isca-Volume 1, primeiro trabalho autoral da banda após a morte de seu criador, um mergulho em toda a obra do artista, desde 1949.
Em 2019, comemoraríamos os 70 anos de um dos principais pioneiros da música independente brasileira, que desbravou a forma de produção “às próprias custas”, termo que dá título ao seu segundo LP, de 1981 – As Próprias Custas S.A.
Entre suas canções mais conhecidas na sua voz: Fico Louco, Parece que Bebe, Beijo na Boca, Sutil, Milágrimas, Vida de Artista, Dor Elegante e Estropício.
MPB Independente
Desde seu primeiro LP -Beleléu, Leléu, Eu -, de 1980, Itamar conta a que veio:
“… Eu me invoco eu brigo / Eu faço e aconteço / Eu boto pra correr /
Eu mato a cobra e mostro o pau / Tenho o sangue quente / Fui nascido em Tietê / Não gosto de gente/ Nem transo parente…” (música Nego Dito)
As suas vivências, dores, numa simbiose black navalha, negro da periferia, vindo do interior do Paraná, massacrado na grande capital e obrigado a viver nessa terra de ninguém.
Mas um bom time da MPB grava Itamar e o acolhe, o ama. Cássia Eller escolhe Já deu pra sentir e Aprendiz de feiticeiro. Ney Matogrosso interpreta Quem não vive tem medo da morte. Nego Dito é sucesso eterno na voz do sambista Branca de Neve. Canto em Qualquer Canto é a musica de Ná Ozetti.
Em 1984, no auge do movimento Diretas Já, pela volta da Democracia no Brasil, impactado por Fullgás, de Marina Lima e Antonio Cicero, Itamar monta um show em cima dos sentidos políticos da canção:
“você me abre seus braços e a gente faz um país”.
Com Rita Lee, em 1993, compõe Só Vejo Azul, que, em troca, participa da faixa Venha até São Paulo, de seu disco Bicho de 7 Cabeças I.
Zélia Duncan dedica-lhe um álbum inteiro, Tudo esclarecido, em 2012 e canta Dodói, parceria de Luiz Tatit com Itamar, uma de suas últimas criações, que descreve sua agonia na batalha contra o câncer:
“Eu ando tão dodói/ Mas tão dodói/ Que quando ando dói/ Quando não ando dói/ Meu corpo todo dói/ (…) Até meu dom dói/ Pois quando canto/ Não importa o tom dói”.
MU.ITA, um museu virtual…
Itamar elabora uma obra valiosa: mais de 300 músicas, nove discos e centenas de poesias. E todo este acervo está, desde 2020, no museu virtual criado em sua homenagem.
Museu inteiro, vivo, vibrante, dançante, que foca em alterar o senso comum sobre o multi-instrumentista, artivista – em um tempo em que tal expressão nem existia -, por meio de mais de 2.100 itens, entre fotos, vídeos, cadernos, imagens do arquivo pessoal, roupas e figurinos.
Detalhe: com original em português e versão em iorubá, além do habitual inglês.
“A primeira vez em que a gente conseguiu olhar para a obra e a trajetória dele como um homem negro foi com a ópera PretOperItamar — o caminho que vai dar aqui. Antes, isso era secundário na forma de contar a história”, começa sua filha Anelis, ao historiar sobre a ideia do museu.
“Os parceiros e as pessoas que o acompanharam não conseguem fazer uma leitura do lugar onde o Itamar foi colocado, como marginal e maldito, e como isso tudo tem uma relação com a negritude – continua. Ele sempre foi visto mais como uma pessoa difícil, como maluco.”
Um mecanismo de busca inteligente e rápido permite pesquisa por ano, por pessoas que trabalharam e viveram com ele e por palavras-chave.
O MU.ITA traz, ainda, mostras temporárias de artistas que interagem com a obra de Itamar, além de outras exposições como Isca de Polícia, com foco em personalidades e movimentos negros perseguidos, do pensador brasileiro Abdias do Nascimento ao reggae jamaicano.
“De alguma forma, eu queria dizer que não foi uma coincidência todos esses expoentes negros terem sido perseguidos e, também, terem sido inovadores em suas linguagens”, justifica Anelis.
O MU.ITA inclui a obra fonográfica completa de Itamar com seus 12 álbuns, letras de música, partituras e cifras.
…E mais
Produtos licenciados na Loja S/A, dentro do museu. Tudo inspirado no jeito de ser e existir de Itamar Assumpção.
Entre as iniciativas, a criação de uma coleção de óculos escuros com armações coloridas e em diferentes formatos, bem como uma coleção de roupas.
Na literatura, uma coleção de livros infantis, escritos pelo artista entre 1998 e 2003, que, nas palavras de sua filha, “proporcionam um belo encontro entre a palavra e a memória, que desemboca num rio criativo, cheio de trava-línguas que destravam o pensar”.
Ao todo, cinco livros infantis inéditos formam a coleção Itamar para Crianças, lançada pela Editora Caixote. As ilustrações são do artista goiano Dalton Paula.
Para completar, mais música. Os dois primeiros álbuns da sua carreira ganharam reedições em vinil: Beleléu, Leléu, Eu, de 1980, e Às Próprias Custas S. A.
O que dizem de Itamar
“Cantor, compositor, instrumentista, ator, produtor e, também, escritor, embora se considerasse simplesmente um Poeta Não.”
Anelis Assumpção, filha
“A música de Itamar explode originalidade. Ele revela um mundo que, por incrível que pareça, dada a riqueza da música brasileira, não havia sido mostrado.”
Hugo Sukman, crítico musical
“Ele é um cara que faz muita falta. Seu senso de humor era agudo.”
Arrigo Barnabé, músico
…
Os documentários Daquele Instante em Diante, de Rogério Velloso, e Reverberações – Itamar Assumpção, de Pedro Colombo e Claudia Pucci, contam muito de sua personalidade irreverente e da obra potente e visionária deste músico negro, único em sua criação, em sua resistência, em sua verdade.
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Fontes: Revista Dumela, Geledes, O Globo, O tempo
Escrito em abril de 2021
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