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Jaqueline Goes, a cientista baiana que decodificou o novo coronavírus

Biomédica, ela sequenciou o genoma do coronavírus em 48 horas, um feito inédito que garantiu o avanço na produção de imunizantes.

– por Lizandra Andrade

O que este artigo responde:
Quem é Jaqueline Goes?
Qual o nome da cientista brasileira que decodificou o novo coronavírus?
Qual o nome da pessoa da vida real que inspirou a criação da primeira personagem negra da Turma da Mônica?
Quais os desafios de atuar na área das ciências sendo mulher negra?
Quais prêmios Jaqueline Goes conquistou por seu trabalho de sequenciamento do coronavírus?
Como se faz o sequenciamento, a decodificação, de um vírus?

Dra. Jaqueline Goes (Imagem: Divulgação)

25 de fevereiro de 2020. Homem, 61 anos, dá entrada no Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, com complicações respiratórias. Na época, o mundo já sabia da existência do novo coronavírus, o Sars-CoV-2, que apareceu na cidade chinesa de Wuhan e se espalhou pelos cinco continentes, provocando uma das maiores pandemias da história.

O idoso havia feito uma viagem à Itália – país já tomado pelo vírus – e seu adoecimento confirma a chegada do coronavírus no Brasil. Parte de seu material genético é enviado ao Instituto Adolfo Lutz. 

Tempo recorde!

Lá,  a equipe de investigação coordenada pela biomédica Jaqueline Goes de Jesus, doutora em patologia humana, se prepara para realizar o sequenciamento do genoma do Sars-CoV-2. E, em 48 horas, o trabalho é realizado!

Jaqueline Goes (Foto: Agência Brasil)
Dra. Jaqueline Goes (Foto: Agência Brasil)

Jaqueline Goes se distingue por ser a biomédica que coordenou a equipe responsável pelo sequenciamento do genoma do vírus SARS-CoV-2 apenas 48 horas após a confirmação do primeiro caso de Covid-19 no Brasil. 

Um tempo recorde!

A média no resto do mundo para esse mapeamento foi de 15 dias.

Mas que não se pense em sorte. De acordo com a pesquisadora, a agilidade do processo foi possível porque se tratava de uma técnica desenvolvida e aprimorada durante seu estágio em Birmingham, no Reino Unido, onde aprendeu protocolos para sequenciamento direto do RNA – Ácido Ribonucleico:

 “Foram três anos de fato trabalhando com a técnica. Era algo que estávamos muito acostumados a fazer”, declarou, referindo-se à sua equipe de 15 profissionais do Adolfo Lutz e da Universidade de Oxford, na Inglaterra.

Durante live com a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, a pesquisadora relembrou o acontecimento:

“Essa história de 48 horas, na verdade, é o resultado de duas tentativas de sequenciamento. A primeira feita em 24 horas, em que só conseguimos 76% do mapeamento. Como sou perfeccionista, não fiquei satisfeita. Então, no dia seguinte, tentamos de novo e atingimos mais de 90%. E, pelo fato do sequenciamento permitir análise em tempo real, já enviamos os dados e as informações foram atualizadas”.

A baiana

Além de perfeccionista, sagaz, detalhista e de olhar minucioso, atento, preciso, Assim é Jaqueline, baiana de Salvador, a mais velha dos dois filhos de seus pais – um engenheiro civil e uma enfermeira e pedagoga. Um casal que nunca poupou esforços para investir na educação dos filhos, por entender que, “para pessoas pretas esta é a única maneira de ascender socialmente”.

Jaqueline Goes de Jesus na bancada do laboratório: faz vigilância genómica dos novos vírus no Brasil (Imagem: Almir R. Ferreira/SCAPI IMT)
Jaqueline Goes de Jesus na bancada do laboratório: faz vigilância genómica dos novos vírus no Brasil (Imagem: Almir R. Ferreira/SCAPI IMT)

Jaqueline faz a educação básica em escola particular e o ensino médio no antigo Centro Federal de Educação Tecnológica  – atual Instituto Federal de Educação Tecnológica – IFBa.

Na graduação, troca a Pediatria pela Biomedicina, mas sem abrir mão do jaleco branco que sempre admirava quando ia, com o pai, buscar a mãe no trabalho. 

Noites insones

Mas nada foi simples ou fácil. Foram muitas as noites insones antes de tornar-se  conhecida mundialmente por ter liderado no Brasil a equipe responsável por sequenciar o genoma do vírus Sars-CoV-2. A fama, na verdade, nem fazia parte dos sonhos.

Após o ensino superior na Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, convicta de que queria se envolver mais com amostras biológicas, seguiu para o mestrado em Biotecnologia em Saúde e Medicina Investigativa, no Instituto de Pesquisas Gonçalo Moniz – Fundação Oswaldo Cruz.

Sem parar, investiu no doutorado em Patologia Humana e Experimental pela Universidade Federal da Bahia e no pós-doutorado no Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo.

Depois, segue, para o Reino Unido para o desenvolvimento de sua pesquisa de pós-doutorado junto ao Centre for Arbovirus Discovery, Diagnosis, Genomics and Epidemiology, onde vive atualmente. 

“Conversando com minha mãe recentemente, ela me lembrou: ‘todas aquelas noites sem dormir valeram a pena’. Porque realmente, foram muitas noites em claro estudando para conseguir chegar até aqui, e realmente valeu a pena”. 

Pesquisadora nata 

Antes de se envolver com os desdobramentos do Sars-CoV-2, Jaqueline trabalhou em outras pesquisas de grande importância no Brasil..

Seu primeiro estudo envolveu decifrar o vírus HTLV-1 – genoma parecido com o HIV, da Aids, capaz de causar leucemia e mieloplastia. 

No Nordeste, como cientista do projeto Zibra, atuou no detalhamento dos vírus da Zika e da Chikungunya. Atualmente dedica-se às investigações da dengue.

Por sua contribuição à ciência, recebeu a Comenda Zilda Arns 2020, concedida pelo Conselho Nacional de Saúde, devido às pesquisas do SAR-CoV-2. E, ainda, foi homenageada nos quadrinhos da Turma da Mônica, de Maurício de Sousa, por meio da personagem Milena, a primeira protagonista negra da marca.

Acesse aqui a lista completa de artigos da edição “Mulheres Plurais“.

A imagem faz parte do projeto Donas da Rua, que tem apoio da ONU Mulheres, e a ideia do projeto do estúdio é usar as versões animadas para celebrar e homenagear mulheres relevantes na ciência, nas artes, na política e em outros campos da sociedade.

Em 2021, Jaqueline ganhou sua própria versão da Barbie, da empresa Matel que produziu uma linha de bonecas dedicada às mulheres que estiveram na linha da frente no combate à pandemia da Covid 19.

Uma preta no topo

Cientistas não estão acostumados com holofotes e com Jaqueline não era diferente. Ela chegou, inclusive, a sentir certo desconforto com a fama. Porém, começou a olhar para a questão a partir de outra perspectiva: gênero e raça. Em outras palavras, um olhar a  partir da invisibilidade de mulheres negras no mundo da ciência.

Dra. Jaqueline Goes (Imagem: Divulgação)
Dra. Jaqueline Goes (Imagem: Divulgação)

Existem muitas pesquisadoras jovens, negras que, como ela, enfrentam muitas dificuldades exatamente por serem negras. E Jaqueline conta que, ela mesma,  demorou muito para se conscientizar dessa realidade:

 “Eu era uma aluna dedicada, estava em uma posição de destaque e, ainda assim, percebia diferença de tratamento, de comportamento, por parte de certos professores e funcionários. E não entendia por quê. Só fui perceber que era por conta da cor da minha pele muito tempo depois”.

E ela sabe, agora, que ocupar este lugar de holofotes, fama, prêmios, ter visibilidade, trabalho reconhecido, é quebra de paradigma! 

“No caso da Barbie, foi um plot twist na minha vida, uma reviravolta. Porque Barbie, loira, magérrima, bem-sucedida, foi um trauma para mim. Tanto que parei de acompanhar. Nem sabia que existiam Barbies variadas — de outras profissões, cores, biotipos. Só lembrava que eu não via representatividade nenhuma nela, e num primeiro momento pensei em recusar. Mas depois pensei que isso faz sentido e faz diferença na vida de muitas pessoas.”

E essa representatividade na ciência é essencial. 

Para quem quer entender um pouco mais do pioneirismo de Jaqueline Goes:

Sequenciamento, um quebra-cabeça 

Pode-se comparar a execução de um sequenciamento de um vírus a um jogo de quebra-cabeça – a imagem completa é desfeita, analisada e novamente montada.

Para se realizar um mapeamento genético é necessário um DNA – Ácido Desoxirribonucleico. Todos nós, seres vivos, temos esse genoma em nossa estrutura. Já os seres não vivos, como os vírus, possuem um RNA – Ácido Ribonucleico.  Por isso, é preciso realizar uma conversão do material RNA em DNA.

Feita a modificação, o novo DNA é amplificado e, a partir dele, são geradas milhões de cópias. Em seguida, essas partes são fragmentadas em pedaços menores e, em cada pedacinho, durante as análises, os cientistas adicionam diferentes reagentes.

Depois, o material é levado para ser decodificado no sequenciador – aparelho que funciona como “leitor” de DNA e, internamente, possui proteínas, com nanômetros de diâmetros regidos por uma corrente elétrica. Algoritmos específicos, ainda, auxiliam no sequenciamento do vírus.

Quando se descobre a identidade do microrganismo é possível rastrear qual é sua a capacidade de adaptação ao ambiente, prever possíveis mutações, revelar de quais proteínas se alimentam e como podem atuar no sistema imunológico humano – informações  essenciais para a produção de medicamentos e vacinas.

Com o trabalho de Jaqueline Goes de Jesus pode-se saber, também, que o vírus portado pelo brasileiro era diferente do microorganismo identificado na China e que suas amostras estavam mais próximas de versões do coronavírus observados na Alemanha.

Premiada

A professora e doutora Jaqueline Goes de Jesus, em dezembro de 2023, foi anunciada como uma das vencedoras de 18ª edição do programa Mulheres na Ciência, realizado em parceria pelo Grupo L’Oréal, Academia Brasileira de Ciências UNESCO no Brasil.

O prêmio? Uma bolsa-auxílio de 50 mil reais para as suas pesquisas.

O projeto de Jaqueline, premiado na categoria Ciências da Vida, foca na análise da transmissão de microrganismos que causam doenças, especialmente arboviroses, entre Angola e Brasil, utilizando dados genéticos e epidemiológicos.

O estudo destaca a importância de compreender e prever a disseminação de doenças, as transmissões que ocorrem em decorrência da globalização.

A cientista, entretanto, entende que sua missão de vida é ainda maior:

“Além da possibilidade de me tornar uma grande cientista, ser uma professora titular de uma universidade, me tornar líder de um grupo de pesquisa e formar novos alunos, quero abrir caminhos para outras meninas e mulheres, em especial aquelas que fazem parte de minorias raciais dentro do ambiente acadêmico. Espero ser um trampolim para que essas mulheres também se tornem grandes cientistas!”


Fontes: Vogue, Ufba, SBPC, Museu Catavento, Wikipedia, Fiocruz, Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública

Escrito em 19 de julho de 2022. Atualizado em fevereiro de 2024

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