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Joana Guimarães, pioneirismo em universidade federal

Chegar à reitoria, posto máximo em uma universidade, é desafiador. Ocupar este lugar em uma sociedade racista e machista, quase entra na conta do inalcançável quando se pensa em uma mulher negra – mais ainda quando o cargo é em uma instituição federal. E este é o feito da baiana Joana Angélica Guimarães da Luz, a primeira mulher negra eleita reitora de uma universidade federal, a do sul da Bahia (UFSB). Mas esta não é a primeira vitória da sua carreira – ela já é professora universitária e pesquisadora fora do Brasil. E vale saber: na UFSB são cerca de 6 mil os estudantes nos três campi, em 47 cursos de graduação e 10 de pós-graduação a nível de Mestrado e Doutorado.

Joana Guimarães (Imagem: Divulgação)
Joana Guimarães (Imagem: Divulgação)

O que este artigo responde:
Quem é Joana Guimarães?
Quantas mulheres negras ocupam o cargo de reitoras no Brasil?
Quando Joana Guimarães se tornou reitora?
Quantas pessoas negras ocupam reitorias em instituições de ensino superior?
Qual a formação de Joana Guimarães?
Qual a diferença de ter uma reitora negra à frente da universidade?

“Mesmo como reitora, o racismo e o machismo me alcançam. É comum eu estar em uma reunião ou em um evento, fazer minha fala e logo depois alguém dizer exatamente o que eu disse, como se o que eu disse não tivesse sido escutado. Me silenciam na minha presença… E fazem isso porque estão acostumados a tratar os negros assim, especialmente as mulheres negras, assim… E eu já me calei, já doeu, já me indignei. Hoje me faço ser ouvida.”

Estas palavras indicam o tamanho da contenda enfrentada no dia a dia do ambiente acadêmico por uma mulher negra que conquistou, pelo voto, o posto máximo em uma universidade, Joana Angélica Magalhães da Luz, a primeira reitora negra eleita para uma instituição federal do Brasil, a Universidade Federal do Sul da Bahia – UFSB.

Joana Guimarães é uma das 8 pessoas negras – única mulher, destaque-se – que estão à frente das 302 instituições públicas de ensino superior do país – o levantamento é do Observatório da Branquitude e foi divulgado em 2023.

Do interior da Bahia para o interior da Bahia

Tudo começa no município de Itajuípe, no sul da Bahia mesmo, cuja principal atividade econômica era a cultura do cacau, na qual os avós paternos e maternos trabalharam e criaram seus filhos. Joana Angélica Guimarães da Luz nasce na década de 1960, em um 27 de dezembro e, em pleno século XXI, no dia 24 de maio de 2018, volta às origens, eleita reitora pela comunidade acadêmica com 64,82% dos votos, em consulta realizada em novembro de 2017, com mandato de 2018 a 2022, sendo reeleita para o cargo até 2026.

Mas, antes, ela já era motivo de orgulho de seus familiares e conterrâneos: geóloga pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com Mestrado em Geoquímica pela Universidade Federal da Bahia (UFBa), Doutorado em Engenharia Ambiental pela Cornell University e Estágio Pós-doutoral na Brown University, as duas últimas nos Estados Unidos. E, na UFSB, era vice-reitora.

Foto de Joana Guimarães sorrindo em frente a microfone
Joana Guimarães m evento de integração do conselho do Instituto Arapyaú (Foto: acervo UFSB)

Estudar – ela conta – era o sonho da sua mãe, a dona Eunice Lourença Guimarães – sonho não realizado. “Minha mãe nasceu em uma família muito grande e humilde. Consegue estudar só até a segunda série. Sabia ler”. Seus familiares trabalhavam nas lavouras da zona rural de Itajuípe.

Já com o seu pai, Juracy Santos Guimarães, a história é um pouco diferente. Ele seguiu a tradição da família como trabalhador rural, mas estudou até a 4a. série. Aprendeu a ler e escrever. Trabalhou para o pai do escritor Jorge Amado, que lhe deu uma casinha na cidade para que ele conseguisse matricular os filhos na escola. Por causa dessa casinha, a história da família muda completamente.

A vida na cidade e a fome

O casal pega os seis filhos e se muda para Itabuna, deixando para trás as galinhas e a vaquinha Bibita. A nova vida é marcada por momentos de grande dificuldade financeira. Seu Juracy não tinha qualificação para ocupar cargos com salário suficiente para sustentar uma família de oito pessoas.

Joana recorda:

“… teve um tempo, quando a gente ainda era criança e morava no interior que, se não fosse minha tia-avó, não teríamos o que comer. Ela também não tinha dinheiro, mas havia um quintal nos fundos de sua casa onde plantava feijão, ervas e tomate. Ela colhia, levava pra gente e era o que comíamos”.

Outra memória da nossa pioneira e de quando tinha de seis para sete anos e se mudaram para uma cidadezinha bucólica, perto de Itabuna, onde seu pai conseguiu emprego de cobrador de ônibus. Durante três anos, a família viveu uma vida relativamente confortável para os padrões de uma família pobre.

“Tínhamos comida na mesa todos os dias. Até o dia em que ele foi demitido e, de novo, passamos por uma situação de extrema dificuldade. Meu pai começou a trabalhar fazendo bicos e até pensou em voltar para a roça… Na roça, havia comida – era plantar e colher. Na cidade, a lógica era diferente”.

Mas dona Eunice bateu o pé:

“ Eu morro de fome, mas meus filhos não saem da escola”.

Aí, o destino, mais uma vez, mudou a rota da família Guimarães, registra uma Joana agradecida, bem na linha do “há males que vêm para o bem”:

“O fato de meu pai ter perdido o emprego fez com que tivéssemos que buscar alternativas de sobrevivência, o que nos levou a Salvador, onde tivemos a oportunidade de estudar e eu pude entrar na universidade”.

Violência na cidade grande

Joana está com 15 anos quando a família chega à capital baiana e estudou dobrado para conquistar uma vaga no processo seletivo da Escola Técnica Federal da Bahia. Aprovada, iniciou o Ensino Médio como aluna do curso técnico em Química.

Mais outras questões e sentimentos contraditórios surgiriam. Ao mesmo tempo que se sentia orgulhosa de estar em uma instituição de excelente qualidade, sentia vergonha diante dos colegas pelas roupas que usava, por ter que trabalhar… Naquela sociedade, “pessoas que precisavam trabalhar eram como alguém de
menor valor”. Joana trabalhava na biblioteca da escola, era alvo de seus colegas estudantes.

E tinha mais:

“Diferente do ambiente na roça, a vida na cidade nos trouxe desde cedo o sentimento de baixa estima, construído a partir do estereótipo da beleza branca. Me lembro que sonhava ser a rainha do milho, nas festas juninas na escola, ou anjo nas festas da igreja, mas descobri que não tinha nem a cor nem a beleza necessária para desempenhar esses papéis. Na adolescência, sonhava ser aeromoça e novamente a cor e a beleza me disseram mais uma vez que não seria possível…”

Em um mergulho na memória, Joana escreve sobre os esforços da sua mãe tentando que as filhas tivessem um “cabelo menos crespo, colocando alisantes baratos que muitas vezes feriam nosso couro cabeludo e nos fazia andar
com aquele cabelo artificial e duro, apesar de alisado”. E, hoje, ao relatar esses momentos, se dá conta “do tamanho da violência que foi, para nós, a negação da nossa própria existência e racialidade”.

Dilema

Ela concluiu o técnico. Passou no vestibular para cursar Filosofia na UFBa e, na mesma época, foi aprovada em concurso para trabalhar na Caixa Econômica Federal…

Dilema: não seria possível “abraçar” as duas conquistas. Ela teve que escolher entre o emprego, que pagava bem e podia melhorar a situação da família, e o curso, que era de período integral. Os pais disseram para ela focar nos estudos.

Ela obedeceu, mas trocou a Filosofia pela Geologia o que pesava para ela era a vocação e a sobrevivência, o melhor caminho para sair da vida financeira difícil.

Joana guimarães sentada em cadeira executiva
Joana Guimarães em mesa de trabalho (Imagem: Divulgação)

Um grande amor no meio do caminho muda seus planos. Ela se casa com um gaúcho, presta um novo vestibular, desta vez na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, para concluir sua graduação em Geologia, especialista na área de recursos hídricos e meio ambiente.

De volta a Salvador, conclui o Mestrado na UFBa e se prepara para mais uma mudança radical. Faz as malas rumo aos Estados Unidos, junto com o marido e a filha de 2 anos. “Fui para acompanhá-lo, pois ele já tinha uma bolsa de doutorado. Lá, eu saí batendo, de porta em porta, em busca de um professor que me aceitasse como doutoranda. Até que consegui, e com bolsa integral” – Joana fez o Doutorado e Pós-doutorado nos Estados Unidos.

Doutores em suas áreas, o casal retorna do exterior. Joana é aprovada em um concurso e inicia a sua docência no Instituto de Geociências da Federal da Bahia. Seu foco era dar continuidade às suas pesquisas, mas seu currículo, atraente demais para o mercado, a encaminhou para a gestão acadêmica:

“Ter uma pesquisa de doutorado reconhecida gerava muitos convites para assumir cargos de gestão. Eu sempre dizia não. Até que em razão da expansão das instituições de ensino superior no Estado fui convidada para atuar na implementação da UFSB em Barreiras, no oeste da Bahia, e aceitei o desafio”.

Joana’s University

Ou, a “Universidade de Joana”… Por que não? A reitora, já em segundo mandato – o primeiro foi de 2018 a 2022 e o segundo e até 2026 -, desde 2012, participa ativamente da construção do projeto político-pedagógico da Universidade Federal do Sul da Bahia, criada em 5 de junho de 2013, pela Lei n.º 12.818.

Quer dizer, a UFSB ainda era embrião quando suas diretrizes foram construídas a partir do pensar de intelectuais como Anísio Teixeira, Milton Santos e Paulo Freire – não é por acaso que a Universidade da Joana foi a mais prejudicada durante o governo de Jair Bolsonaro – seu orçamento em 2019 caiu para menos da metade, R$ 31,5 milhões para R$ 17,6 milhões, colocando em risco o término da construção dos campi.

Foto que mostra um edifício de um angulo que mostra os painéis fotovoltaicos, que é o campus Jorge Amado
UFSB campus Jorge Amado (Foto: acervo UFSB)

Mas voltemos à idealização da “Universidade de Joana”, onde muito já se concretizou. Localizada em uma região com muitos indígenas e uma maioria negra, a UFSB tem suas questões vinculadas à realidade do território e à oportunidade para os estudantes de baixa renda.

Para driblar este dado da realidade, criou-se os chamados “colégios universitários”, em convênio com a Secretaria de Educação do Estado, espaços de ensino superior – em alguns municípios no entorno dos campi -, onde os estudantes universitários podem assistir aulas à distância.

“Isso facilita muito a vida de quem tem, por exemplo, dificuldade de transporte e/ou recursos para morar em Itabuna, Porto Seguro ou Teixeira de Freitas, onde estão localizadas as três unidades da UFSB”, explica Joana Guimarães.

O sistema de cotas da instituição, também, é “bastante robusto” – palavras da reitora – e atende a um percentual de 75% das vagas para alunos de escola pública, além de ser a primeira universidade a ter cotas para pessoas trans e a primeira a ter cota para pessoas do sistema prisional, contando com 33 alunos que assistem suas aulas de dentro dos presídios:

“A Lei de Cotas estabelecia 50%. Nós começamos com 55%. Depois, ampliamos para 75% de cotas revertidas para alunos de escolas públicas, incluindo 50% delas para alunos negros. Nos colégios universitários, temos 85% das cotas para escola pública. Também porque muitos dos nossos municípios não têm escolas de ensino médio privadas. E ainda vagas especiais para indígenas aldeados, quilombolas, pessoas com deficiência e povos ciganos”.

Uma Pró-Reitoria de Assistência Estudantil garante um olhar atento para as ações afirmativas e para a questão da inclusão. Além disso, é mantido um trabalho integrado com organizações sociais para se trabalhar em colaboração no atendimento à comunidade, bem como com a Associação de Pesquisadores Negros, para se pensar a presença negra de reitoras e reitores nas universidades.

“Tudo que nós fizemos ainda não está consolidado” – avalia a reitora. Daí, inclusive, ela ter-se candidato à reeleição em 2022: “A universidade precisa refletir a sociedade. E a sociedade não é feita apenas de pessoas brancas vindas de escolas privadas. Ela é muito mais complexa e diversa”.

Quando há negros no ambiente universitário, assim como pessoas com deficiência e LGBTs, um leque de oportunidades se abre, porque são pessoas que chegam com uma nova cultura e diferentes formas de ver o mundo. Isso abre portas para inovação e ajuda a mudar o mundo – reflete Joana Guimarães.

São cerca de 6 mil os estudantes nos três campi da UFSB, em 47 cursos de graduação e 10 de pós-graduação a nível de Mestrado e Doutorado.

E o racismo?

“Sei da força da representatividade que exerço estando onde estou. Mas a maioria dos reitores no país são homens brancos. Temos 63 universidades federais e somente 19 mulheres no comando. Quando falamos de negras, o cenário é pior. Eu sou a única em atividade”, alerta.

Por tudo isso é que Joana Guimarães toma para si o desafio de construir uma universidade mais diversa e aberta para todos, a partir do nosso ponto de vista, do que nós sofremos e sentimos. Só nós sabemos o que é ser negro nesse país.

Foto que mostra um edifício que é o campus da Itabuna
UFSB campus Itabuna (Foto: acervo UFSB)

Joana é pioneira na família também: a primeira a frequentar o ambiente acadêmico! E o seu exemplo inspirou outras pessoas a enxergarem a possibilidade concreta de chegar lá. Algo que, até então, ninguém acreditava ser possível.

É fácil? É tranquilo? Para estas questões, a resposta é “NÃO”. Nunca foi e ainda não é fácil. E o motivo não tem nada a ver com competência, mas com o racismo, estrutural e institucional:

“A gente sabe que tem muita gente que se esforça, que se empenha e se dedica a muita coisa e não consegue porque as oportunidades não existem, não aparecem, não são fáceis. Nossa competência intelectual continua a ser questionada em excesso, como se estivéssemos eternamente dependentes de orientação e supervisão para trilhar esses espaços”.

“Educação não é uma escolha”

A escassez de incentivo é visível até mesmo no âmbito da educação básica – salienta, ao recordar situações em que seu irmão, o de pele mais escura entre os seis, frequentemente ouvia comentários pejorativos sobre sua aparência:

“Ele e minha irmã mais nova, de pele mais clara, estudavam na mesma sala de aula e eram, frequentemente, alvo de comparações… Ouvir repetidamente que era ‘feio’ chegou a afetar sua autoestima a ponto de fazê-lo cogitar abandonar a escola”.

Mas sua mãe sempre enfatizava: “Educação não é uma escolha”. Quer dizer, desistir não era uma alternativa. E todos se graduaram. Do mais velho ao mais novo: Jorge é professor, Vera é administradora, Ana é socióloga, Isabel e Luiz são médicos é veterinária – ela, médica veterinária. Joana, nossa pioneira, é a primogênita.

Joana não tinha planos de retornar ao sul da Bahia, mas sua volta, ocupando o cargo de reitora, encheu a sua família de orgulho. “Saí daqui jovem, vivíamos numa casa precária, que não tinha banheiro… Hoje sou exemplo de possibilidade”.

Como é ser a única reitora negra em uma universidade federal no Brasil?
“A carga de responsabilidade é significativa… No entanto, o sentimento de estranheza que, às vezes, paira sobre o cargo que ocupo me perturba… É triste que a mera presença de uma mulher negra ocupando uma reitoria possa se tornar tema de notícias e reportagens”.

Vale muito a reflexão.

E, para quem quiser conhecer detalhes de toda esta história, é só clicar aqui no PDF “Quando o caminho se faz ao caminhar”, o memorial que a nossa reitora escreveu sobre sua trajetória acadêmica, que inclui as conquistas para a Universidade Federal do Sul da Bahia, a sua jornada de vida e fotos em família.

Fontes: Terra-ABPN, UFSB, Marie Claire, Instituto Arapyau, Blog do Tonet, Intercept Brasil, UFBa, Revista Raça, UFSB

Escrito em maio de 2024

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