Referência de ativismo, a historiadora é a primeira a colocar foco na equação: ser mulher + ser negra = dores da discriminação elevada à potência máxima, com solidão e violência, em escala geométrica. Viveu de 1935 a 1994.
Pioneira nas discussões sobre relação entre gênero, classe e raça, Lélia Gonzalez propõe um olhar afro-latino-americano para o feminismo.
Historiadora e filósofa por formação, amplia suas áreas de atuação a partir das contradições do mundo acadêmico, buscando novos caminhos de vivência. Entre eles, a o atuar como mulher e negra e ser político. Mas tudo, sempre, à sua maneira.
A abrangência de seu pensar transpassa a filosofia, a psicanálise e a religiosidade, via candomblé.
As várias militâncias
É deste olhar ampliado, inclusivo, que ela entende a cultura, plural, elemento de conscientização política.
Em 1976, inclusive, ministra o primeiro curso institucional de cultura negra do país, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro, com a proposta de análise da contribuição africana na nossa formação histórica e cultural.
Ativista e política, participa da formação do Partido dos Trabalhadores, disputa uma vaga na Câmara Federal, em 1982, e alcança a primeira suplência; quatro anos depois, no Partido Democrata Trabalhista, de Leonel Brizola, se candidata a deputada estadual e conquista a suplência, de novo.
A nível nacional, está presente nas discussões sobre a Constituição de 1988 e integra o primeiro Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, na mesma década.
Antes, em 1975, ajuda a fundar o Instituto de Pesquisa das Culturas Negras – IPCN e o Colégio Freudiano do Rio de Janeiro.
Democrata, em 20 de novembro no 1983, Dia da Consciência Negra, em plena ditadura militar, discursa nas ruas do Rio:
“Vamos à luta, companheiros, para que a exploração e a opressão terminem neste país. Para ser uma democracia racial, esse país precisa ser efetivamente uma democracia”.
Como educadora, abraça o tema da desigualdade na educação – sem a qual a não há emancipação possível –, questão que ocupa parte de seus escritos.
Corre o mundo e fala, em nome do Brasil, sobre as condições de exploração e opressão dos negros e das mulheres nos Estados Unidos, na África e na América Latina. Conjuga experiências.
Lélia Gonzalez cria um marco conceitual para a compreensão da identidade brasileira nas Américas negras.
África latino-americana
Em Por um Feminismo Afro-latino-americano, texto apresentado em 1988 na Bolívia, Lélia afirma que o movimento de mulheres na América Latina repete práticas de exclusão e dominação racistas das quais “negras e indígenas são testemunhas vivas”.
“É inegável que o feminismo, como teoria e prática, desempenhou um papel fundamental em nossas lutas e conquistas… ao apresentar novas questões, não apenas estimulou a formação de grupos e redes, mas também desenvolveu a busca por uma nova maneira de ser mulher”, escreve, como feminista de primeira hora.
Mas, usando conceitos da psicanálise de Jacques Lacan (1901-1981), questiona o fato de mulheres não brancas serem o objeto de análise de outros sujeitos, por um sistema ideológico de dominação que infantiliza, retira a humanidade e aniquila a existência.
E ela exemplifica a partir do olhar do movimento feminista para “a divisão sexual do trabalho”, que não contempla a questão racial.
Em Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira, artigo de 1980, sobre o papel da mulher negra na formação cultural do país e a origem dos lugares sociais da população negra, Lélia Gonzalez já questiona o lugar de fala, desconstruindo o trabalho de homens brancos como o cientista social Caio Prado Jr.
O acadêmico, no livro chamado Formação do Brasil Contemporâneo, escreveu que os negros estariam “na lata de lixo da sociedade brasileira, pois assim o determina a lógica da dominação”. E ela provoca:
“Neste trabalho assumimos nossa própria fala. Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa” – Lélia gosta de falar na primeira pessoa do plural.
Lélia e Angela
Por todos os lugares – sociais e geográficos – onde esteve em seus 59 anos de vida, Lélia Gonzalez deixou uma produção intelectual intensa e original, que mistura saberes e vivências de diversas áreas. Ela marca uma geração de militantes negras.
Seus textos são de vanguarda, inclusive quando aborda a desigualdade de gênero e raça incluindo a questão do território – primeiro nacional e depois continental.
A filósofa Angela Davis, ícone do feminismo negro norte-americano, só depois se internacionaliza ao abordar a questão palestina. E esta ideia original de Lélia é muito poderosa em termos históricos, em especial no Brasil, que tem dificuldade de cultivar o sentimento de pertencimento à América Latina e vê, nas questões com a língua, o alimento para este “desamor”.
Não é por acaso que Angela Davis, ao visitar o Brasil em 2019, em todas as atividades públicas, destaca a importância do pensamento e da atuação de sua colega, com uma espécie de “puxão de orelha”:
“Por que vocês precisam buscar uma referência nos Estados Unidos? Eu aprendo mais com Lélia Gonzalez do que vocês comigo. Vocês não precisam de mim. Vocês têm Lélia.”
As duas feministas negras conviveram nos Estados Unidos no final dos anos 1970, quando da publicação de Mulheres, Raça e Classe, pela americana, enquanto Lélia apresentava A Mulher Negra na Sociedade Brasileira na Universidade da Califórnia.
“Ser negra e mulher no Brasil é ser objeto de tripla discriminação, uma vez que os estereótipos gerados pelo racismo e pelo sexismo a colocam no mais alto nível de opressão” – explicitava Lélia.
Produção literária
Sua obra pode ser visitada ou revisitada em ensaios acadêmicos, artigos para a grande imprensa e jornais alternativos, entrevistas e registros de palestras em diversos congressos internacionais – Lélia dominava o inglês, o francês e o espanhol.
Entre as mais recentes, a coletânea Por um Feminismo Afro-latino-americano, da editora Zahar, que reúne escritos de 1975 a 1994, período que compreendeu o fortalecimento de movimentos sociais e a redemocratização do país.
Em vida, Lélia Gonzalez publica os livros Lugar de Negro, de1982, em parceria com o argentino Carlos Hasenbalg; Festas Populares no Brasil, de 1987, premiado na Feira de Frankfurt, e duas teses de pós-graduação, além de diversos artigos para revistas científicas e obras coletivas.
A obra de Lélia parece pequena, mas o legado imaterial é imenso.
Silêncio
O silêncio e invisibilidade de seu trabalho é de ensurdecer. “Lélia Gonzalez é uma intérprete do Brasil, e esse é um lugar que os intelectuais negros ainda não conseguiram ocupar na sociedade brasileira”, afirma Márcia Lima, organizadora da coletânea Por um Feminismo Afro-latino-americano e professora do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo.
A filósofa e educadora Sueli Carneiro, referência no feminismo negro, classifica este processo como epistemicídio:
“Nunca encontrei Lélia Gonzalez como referência bibliográfica de nenhuma das inúmeras disciplinas que cursei em mais de uma década na universidade e, no entanto, ela é uma pensadora determinante na formação política e intelectual das mulheres negras da minha geração”.
Ao propor uma nova visão do feminismo, que considere o caráter multirracial e pluricultural da América Latina, em contraposição à visão eurocêntrica, Lélia discute conceitos de feminismo interseccional, que incorpora as desigualdades de raça e classe, e decolonial, de questionamento da ordem econômica e de pensamento de grupos dominadores. Isso a 50 anos atrás!
Lélia d’Almeida
Lélia Gonzales nasceu Lélia de Almeida em 1º de fevereiro de 1935. É a penúltima dos 18 filhos do negro ferroviário Accacio Serafim d’ Almeida e da doméstica indígena, Orcinda Serafim d’ Almeida. Ela era tratada como neta pelos pais.
Parida em Belo Horizonte, Minas Gerais, aos sete anos se mudou com a família para o Rio de Janeiro, em nome do futebol!
Um de seus irmãos, 15 anos mais velho, foi convidado para jogar bola no Flamengo – Jaime de Almeida (1920-1973), e se tornou ídolo rubro-negro na década de 1940, pai de Jayme de Almeida Filho, ex-treinador do clube.
Se dependesse do sr. Accacio, seu pai, ela nunca seria Lélia Gonzalez. Menina, ainda, teve de lutar para escapar do “esquema ideológico internalizado pela família”, em que se estudava até a escola primária e, “depois, todo mundo ia à batalha”, para ajudar no sustento de todos.
Estudante e acadêmica
Aluna dedicada, nos anos 1950 conclui o curso secundário no Colégio Pedro II, de ensino público, onde tem formação erudita clássica.
“Passei por aquele processo que eu chamo de lavagem cerebral dado pelo discurso pedagógico brasileiro, porque na medida em que eu aprofundava meus conhecimentos, eu rejeitava cada vez mais a minha condição de negra” – registra em depoimento no livro Patrulhas Ideológicas, de 1980.
Na Universidade do Estado da Guanabara, hoje Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), gradua-se em História e Geografia e, depois, em Filosofia.
Professora da rede pública, conclui mestrado em Comunicação Social, doutora-se em Antropologia Política e Social e dedica-se a pesquisas sobre gênero e etnia.
Na Universidade, faz carreira docente na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e na UERJ.
“Eu já era uma pessoa de cuca embranquecida, dentro do sistema.”
… o que inclui o alisamento do cabelo, o casamento inter-racial e a circulação em extratos sociais que a grande maioria das pessoas negras não podia alcançar.
Negra
Mas vem os anos 1970, Lélia viaja pelo mundo, politiza-se e enegrece, o que inclui o movimento estético-político de libertação, de não alisar mais os cabelos.
As reflexões sobre a questão racial se acentuam, é fato, na época do seu casamento com o espanhol Luiz Carlos Gonzalez, amigo da faculdade, em 1964. A família do rapaz branco não aceita a relação.
“Daí, aquilo que estava reprimido, todo um processo de internalização de um discurso ‘democrático racial’ veio à tona, e foi um contato direto com uma realidade muito dura”, conta.
A vida da então professora muda com a morte do marido, por suicídio, um ano depois, quando ela, já com 30 anos, mergulha em duas áreas na busca de cura e autoconhecimento, que acabam transformando-se em referência de seu trabalho: a psicanálise e o candomblé.
Lélia já compreendia, no século passado, que tudo é conhecimento, tudo é dialógico, transversal.
Em textos e, especialmente, nas palestras, escolhe a linguagem informal e irreverente para abordar conceitos muito à frente dos saberes de sua época.
“A gente não nasce negro, a gente se torna negro. É uma conquista dura, cruel e que se desenvolve pela vida da gente afora. Aí entra a questão da identidade que você vai construindo. Essa identidade negra não é uma coisa pronta, acabada. Para mim, uma pessoa negra que tem consciência de sua negritude está na luta contra o racismo. As outras são mulatas, marrons, pardas etc.”
Assim está registrado um depoimento de Lélia, publicado em 1988.
Inspiração
“Lélia falava muitas vezes de improviso, modulava o seu discurso conforme a reação do público. Ela tinha todo o fundamento teórico, mas queria chegar na pessoa. Desde que vi e ouvi Lélia Gonzalez pela primeira vez, me decidi politicamente pela militância na questão da mulher negra”, recorda Sueli Carneiro.
A diretora do Geledés – Instituto da Mulher Negra assistiu a uma palestra de Lélia Gonzalez no fim dos anos 1970, em um seminário feminista no qual ela era a única oradora negra:
“O que mais me impactava em sua fala era sua capacidade de traduzir as experiências e vivências das mulheres negras como se ela tivesse o poder de perscrutar corações e mentes, sintetizar e vocalizar, dores e inquietações que nos afligiam e que não conseguíamos elaborar por nós mesmas”.
A fundação do Geledés – conta Sueli – teve influência do N’Zinga, coletivo de mulheres negras criado por Lélia e outras ativistas em 1983.
Militância
Quando Lélia Gonzalez abraça a militância negra está com 40 anos e já é uma intelectual respeitada. Em sua casa, no Cosme Velho, ocorrem muitas das reuniões com ativistas.
O trabalho na difusão da cultura afro-brasileira já havia levado a pesquisadora participar do Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo, fundada pelo sambista Candeia (1935-1978), no Rio de Janeiro.
E em nome do Quilombo, ela se destaca pela importante participação na mobilização que surgia em São Paulo e se transformaria no Movimento Negro Unificado (MNU), lançado em 7 de julho de 1978 em ato público que marcou a volta dos protestos de rua por justiça racial no país.
Para ela, o advento do MNU “consistiu no mais importante salto qualitativo nas lutas da comunidade brasileira na década de 1970.”
Em Salvador, Bahia, Lélia é presença na fundação do Olodum.
Conhecimento transforma
Dentro do movimento negro, Lélia defendia o conhecimento das raízes africanas para a conscientização dos militantes. E a vivência no candomblé foi preponderante na sua visão política.
Mesmo sendo muito marxista, ela entende que o candomblé tem um lugar social, cultural e espiritual importante e que isso não é alienante.
E influencia na conscientização e mobilização de mulheres negras. Percebe que, como no movimento feminista havia a manutenção da ideologia racista, o movimento negro tampouco escapava da mentalidade machista.
Negros em Diáspora
Nos últimos anos de vida, estuda o que chama de “negros da diáspora”, dando origem ao conceito de amefricanidade.
Precursora em acrescentar à condição da mulher brasileira o marcador de raça, Lélia Gonzalez tem inegável pioneirismo também na crítica ao racismo estrutural na sociedade brasileira e na articulação entre racismo e sexismo, o que fez dela uma observadora crítica da nossa situação colonial.
E é nesse contexto que propõe o conceito de amefricanidade, em diálogo com a teoria psicanalítica de Lacan e com o pensamento do psiquiatra martinicano Frantz Fanon, em cuja obra sobre racismo e colonização faz o que define como “estudo clínico”.
Lélia percebe muito cedo a necessidade de entrelaçar a desigualdade racial e social brasileira com as formações inconscientes que, observa, serem exclusivamente brancas e europeia.
Ela identifica uma característica fundamental do racismo à brasileira: voltar-se contra negros, a partir da negação da nossa origem.
É impossível combater o racismo sem o reconhecimento de nossa condição colonial – este é o insight. Tarefa difícil, uma vez que valorizar a origem europeia é parte do processo de negar nossa latinidade e nossa africanidade e dar sustentação ao racismo.
Para afirmar-se no poder, os colonizadores precisam dominar os corpos e o imaginário de cada povo dominado, atribuindo valor simbólico a tudo que é branco e destituindo qualquer valor de todo não branco.
“O racismo latino-americano é suficientemente sofisticado para manter negros e indígenas na condição de segmentos subordinados no interior das classes mais exploradas, graças a sua forma ideológica mais eficaz: a ideologia do branqueamento”.
O fim
Acostumada a uma agenda intensa, Lélia Gonzalez reduz as aparições quando, em 1992, é diagnosticada como diabetes mellitus.
Em 10 de julho de 1994, sofre um infarto do miocárdio e morreu, aos 59 anos.
Fontes: El Pais, Geledes, Carta Capital, Revista Cult, Marie Claire
atualizado em julho de 2024
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