Luzia é considerada o fóssil humano mais antigo encontrada na América do Sul, e é também símbolo de descoberta, resistência e a verdadeira essência do Brasil pré-colonial. Marco na compreensão da história humana no continente, desafia tudo o que pensávamos saber sobre a história do povoamento.
por Tania Regina Pinto
O que este artigo responde: Quem foi Luzia? Onde Luzia foi encontrada? Qual a importância de Luzia para a ciência? Como Luzia alterou as teorias sobre a ocupação das Américas? O que aconteceu com o fóssil de Luzia em 2018? Qual é a data de Luzia? Quando Luzia foi descoberta? Quais os traços negróides de Luzia? Quem é Clóvis?
Luzia – como foi chamada a ossada da jovem encontrada em Minas Gerais – é o fóssil humano (leia-se: restos de um ser vivo) mais antigo encontrado na América do Sul. E é considerado “integrante” da primeira população humana que entrou no continente americano.
Luzia foi encontrada durante escavações de uma missão arqueológica franco-brasileira chefiada pela arqueóloga francesa Annette Laming-Emperaire, na Lapa Vermelha, uma gruta no município de Pedro Leopoldo, na região metropolitana de Belo Horizonte (MG).
14 de junho é o Dia de Luzia, dia de lembrar seu passado longínquo de mais de 11 mil anos, sua “descoberta” na década de 1970, a notoriedade na década de 1990, e o risco de sua “morte histórica”, em 2018, com o incêndio do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde – acreditava-se – ela estava protegida!
O mais antigo fóssil humano das Américas, materializado por um crânio e um fêmur, batizado como Luzia, revolucionou a hipótese do povoamento desta parte do planeta.
Passado, presente e futuro, reconhecimento e muita esperança, nos unem em torno de Luzia, uma mulher negra, o primeiro ser humano das Américas, a “primeira brasileira”.
Sem contar que a sua descoberta é um dos feitos mais importantes da arqueologia nacional.
Peça-chave
O fóssil de Luzia, depois de submetido ao teste Carbono 14, teve a idade estimada em 20 anos. Isso quando morreu há aproximadamente 11.500 anos. E gerou ainda a denominação Povo de Luzia, referência aos primeiros homens e mulheres que habitaram a região arqueológica de Lagoa Santa.
Sabe-se, entretanto, que o grupo ao qual Luzia pertenceu foi apenas um dos vários povos que habitaram o lugar em diferentes períodos, vivendo da caça de animais de pequeno e médio portes e da coleta de recursos vegetais disponíveis na região.
Por tudo isso, Luzia não é um tesouro só brasileiro, mas mundial, uma peça-chave da história humana, avalia Mercedes Okumura, coordenadora do Laboratório de Estudos Evolutivos da Universidade de São Paulo (USP).
Luzia faz parte da discussão sobre o povoamento nas Américas.
Traços negróides
A importância de Luzia para a comunidade científica se deve a oportunidade que o biólogo, antropólogo e arqueólogo brasileiro Walter Alves Neves, do Instituto de Biociências da USP, teve ao entrar em contato com crânios semelhantes ao de Luzia, coletados pelo naturalista dinamarquês Peter Lund na região de Lagoa Santa.
Walter Alves Neves surpreendeu-se ao examinar as características morfológicas, os traços negróides, semelhantes aos das populações originárias da África e da Austrália.
Luzia tinha um metro e meio de altura, nariz largo e olhos arredondados.
E estes traços de etnias negras de Luzia possibilitaram averiguar que o continente americano foi ocupado por quatro fluxos migratórios: três compostos por populações de origem mongol, geneticamente semelhantes às tribos indígenas atuais, e um quarto fluxo migratório de não mongóis, com características similares às dos africanos e dos aborígines da Austrália.
Em outras palavras: Luzia é diferente dos nossos ancestrais indígenas. Sua morfologia craniana apresenta características do modelo básico dos primitivos africanos.
E a hipótese que se firmou, na época da descoberta, é a de que os ancestrais dos índios, encontrados quando da invasão das Américas pelos europeus, faziam parte de uma onda migratória posterior ao povo de Luzia.
Com esses estudos, criou-se uma nova tese sobre o roteiro usado para os povos primitivos chegarem à América.
Do berço para o mundo
Até então, cientistas defendiam a tese de que o Homo Sapiens – a espécie da qual somos parte – surgiram na África entre 7 e 3 milhões de anos atrás. Seus fósseis foram encontrados na África do Sul.
De lá, eles se espalharam para os outros continentes, chegando na América cerca de 11,2 mil anos atrás, a partir do Estreito de Bering, porção do Mar de Bering que separa o extremo leste da Ásia e o extremo oeste da América do Norte.
Na base desta tese, o fato de, no fim da década de 1920, cientistas terem encontrado em um sítio do Novo México (EUA) artefatos de uma cultura chamada Clóvis.
Assim, por muito tempo, acreditou-se que esses norte-americanos constituíam o primeiro povoamento das Américas.
Luzia x Clóvis
A descoberta de Luzia, entretanto, fez com que a teoria dos “clovistas” perdesse força, porque, na velocidade com que se deslocava naquela época, seria impossível para o homem atravessar tão depressa a América do Norte para a América do Sul.
A existência de Luzia – afirmam os pesquisadores que se opõem aos “clovistas” – sugere que o homo sapiens atravessou o Estreito de Bering antes do povo Clóvis, há cerca de 14 mil ou 15 mil anos, e, com o tempo, migrou para o sul. Uma leva distinta daquela que veio da Ásia 12 mil anos atrás.
Walter Alves Neves está entre os cientistas que mais colaboraram para o fortalecimento dessa segunda teoria. Ele, inclusive, é o responsável pelo apelido Luzia ao “Lapa Vermelha IV Hominídeo”, inspirado no fóssil de humanóide australopithecus afarensis, de 3,5 milhões de anos, Lucy – o mais antigo já encontrado no mundo, na Etiópia, no ano de 1974.
A fama
Na região onde Luzia foi encontrada no início dos anos 1970 estão os registros de ocupação humana mais antigos da América do Sul.
Alves Neves, entretanto, só pôs as mãos no crânio de Luzia nos anos 1990 – o fóssil estava há mais de 20 anos “descansando” nos arquivos do Museu Nacional.
E quando em 4 de abril de 1998, o cientista apresentou, a uma plateia de cientistas, as análises que havia realizado, Luzia virou celebridade internacional, com o rosto estampado nas páginas de jornais e revistas do mundo todo, principalmente após uma equipe da Universidade de Manchester, no Reino Unido reconstituir suas possíveis feições.
Incêndio
Em 2 de setembro de 2018, o fóssil da mulher mais antiga das Américas foi atingido por um incêndio de grandes proporções, no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – fundado por D. João VI -, junto com um acervo de mais de 20 milhões de itens, acumulados ao longo de 200 anos.
Mas o que ficava exposto no salão para os visitantes eram réplicas de Luzia. Os originais estavam, por segurança e devido à sua fragilidade, guardados em uma caixa de ferro em um laboratório de antropologia biológica.
E Luzia, na sua versão original, “sobreviveu” a temperaturas altíssimas. Foi, de certa forma, protegida por uma parede que ruiu sobre o armário onde a caixa era guardada e reencontrada – 80% de fragmentos de ossos – numa fenda, desta vez, entre os escombros do museu.
História sem fim
Mas nada é definitivo quando se estuda o passado. A análise do genoma – sequência completa de DNA (ácido desoxirribonucleico) de um organismo, ou seja, o conjunto de todos os genes de um ser vivo – de 49 indivíduos que viveram em diferentes pontos da América Central e do Sul, entre 11 mil e 3 mil anos, contesta hipótese sobre a origem australo-melanésia do povo de Lagoa Santa.
A análise do DNA sugere que grupos precursores dos indígenas atuais migraram da América do Norte em direção ao sul e deixaram descendentes em lugares tão diversos quanto Belize, Peru, Brasil, Argentina e Chile.
Pesquisa publicada na na revista científica Cell, em novembro de 2018, inclusive, traz implicações importantes para a teoria sobre as origens do Povo de Luzia, indicando afinidades genéticas importantes entre nativos do norte e do sul das Américas.
Uma dessas afinidades é entre grupos da Califórnia e dos Andes Centrais que viveram há cerca de 4 mil anos. A outra conecta indivíduos que viveram entre 11 mil e 9 mil anos atrás, cujos ossos foram escavados no Chile, no Brasil e em Belize.
Dos 49 indivíduos que tiveram o genoma analisado e comparado, dez vieram de sítios arqueológicos brasileiros – sete tiveram os ossos encontrados na Lapa e três em sambaquis da faixa costeira do Brasil.
Trocas genéticas
A afinidade genética deles com o indivíduo da cultura Clóvis altera radicalmente a hipótese que procura explicar de onde veio o Povo de Luzia e por que ele desapareceu da região há aproximadamente 8 mil anos.
Havia uma expectativa de que no DNA dos indivíduos de Lagoa Santa tivesse algum sinal de ancestralidade não ameríndia, mas isso não foi encontrado. O que se vê é uma relação direta entre o povo de Luzia e a cultura Clóvis, afirmam os cientistas que assinam o artigo da revista científica Cell.
A ideia de que havia um componente australo-melanésio principal que tinha chegado antes e povoado essa região, e depois teriam chegado os beringianos, dando origem aos amazônicos e andinos, não existe, sugere o estudo.
A tese é que o processo de colonização da América do Sul foi complexo e repleto de eventos migratórios da América do Norte para a América do Sul, defende Mark Hubbe, do Departamento de Antropologia da Ohio State University, nos Estados Unidos.
Uma das conclusões é que houve um processo microevolutivo dentro do continente, que se encarregou de fazer com que os povos do sul dos Estados Unidos, da América Central, dos Andes ou da Amazônia transportassem genes diferentes para seus descendentes.
Estas afirmações se baseiam, além das análises das amostras de DNA antigo, em comparações com amostras do genoma de indígenas atuais.
Entretanto, persiste no conhecimento científico, uma lacuna sobre os milênios posteriores ao tempo em que viveu o povo de Luzia.
Outra pesquisa publicada na revista Science, também de novembro de 2018,que sequenciou 15 genomas antigos extraídos de ossos encontrados desde o Alasca até a Patagônia, corrobora a ancestralidade ameríndia do povo de Luzia.
As evidências genéticas são de que os primeiros ocupantes humanos da América se dispersaram rapidamente pelo continente e se diversificaram cedo, conforme migravam para o sul. O resultado desta expansão teria sido uma multiplicidade de migrações independentes e geograficamente desiguais.
Fontes: G1, Jornal da USP, Correio Braziliense, Wikipédia, Brasil de Fato, Circuito das Grutas Revista Fapesp-O Pai de Luzia, Revista Fapesp – Os primos de Luzia, Revista Fapesp – A América de Luzia, Revista Fapesp – A Terra de Luzia
Março 2023