Na raiz, o samba
– Primeiros Negros
Mestre-sala e porta-bandeira em ensaio da Mangueira de 1977 e recortes (Imagens: Foto de Amiucci Galo, recortes de divulgação | Reprodução)
Na ginga e no sapateado, o negro sempre buscou a liberdade.
Oficialmente, o primeiro samba é de 1916 e a primeira escola de samba de 1928. Mas, desde que habitamos esta terra, o samba existe no Brasil, herdeiro dos batuques ancestrais da África e da semba angolana – umbigada, sapateado nos pés, pelos homens, e nos quadris, pelas mulheres, que se dança aos pares.
Dependendo do interlocutor, a resposta é samba na raiz – na raiz de tudo. Batuque é capoeira, mas é samba também. Tango é samba. Polca, lundu, maxixe – é tudo samba do tempo do imperador.
Mas na cronologia oficial do samba, samba de preto, o ano de 1916 também marca o limite entre o que é folclore e o que é cultura popular.
Entendendo os verbetes:
– Folclore: produção anônima, coletiva, mantida pela tradição oral
– Cultura popular: produto individualizado que no Brasil coincide com a modernização das cidades
Resumindo: samba é folclore, sem dono, sem autoria.
Só que não! Samba é dança – “sapateado nos pés, pelos homens, e nos quadris, pelas mulheres”, na definição de Donga, autor, em registro, do primeiro samba gravado, “Pelo Telefone” -, música e luta do povo preto, seu guardião.
“Fazer um samba” – como se diz hoje -, só era possível com licença especial da polícia no início do século XX.
“As perseguições não tinham quartel. Os sambistas eram cercados em suas residências pela polícia, eram levados para o distrito e tinham seus violões confiscados (…), os pandeiros eram arrebatados…”, descreve Donga em entrevista para a imprensa.
Ser cultura popular e não folclore, contudo, não livrou o samba dos espertalhões, dos falsos compositores e das negociatas.
Riqueza de Gênero
Tinha samba-corrido, samba partido alto cantado em dupla, trio ou quarteto. No samba partido alto, se tirava um verso e o pessoal improvisava, um de cada vez. No samba corrido, todos faziam coro. O samba duro já era batucada, capoeiragem.
No partido alto com samba raiado, se armava uma roda, todos batiam palmas ritmadas, com acompanhamento de violões, cavaquinhos e instrumentos de percussão, cantando melodias com versos populares. Cultuado nos templos do samba, o partido alto estava em descompasso com o samba já urbanizado pelo ritmo comercial.
O samba-enredo se diferenciava das outras variáveis do samba por não ter a elasticidade do improviso espontâneo e ágil e pelopredomínio do contar a própria história, negra, a música, a religiosidade, as crenças.
No samba-enredo, o povo preto refletia sobre si, reafirmava os próprios valores, resgatava sua raiz, conectava-se com o ser ancestral.
Resistência
Para compor o cenário destes tempos do início do século XX, vale recriar o clima em que se deu o aparecimento do primeiro samba gravado, Pelo Telefone, considerado um marco na história da música popular brasileira, registrado no livro Carnavais de Guerra – o Nacionalismo no Samba, de Dulce Tupy:
“Como em toda história do negro no Brasil, as reuniões e os batuques eram objetos de frequentes perseguições policiais ou de antipatia por parte das autoridades brancas, mas a resistência era hábil e solidamente implantada em lugares estratégicos pouco vulneráveis”.
Um desses lugares era a casa da baiana Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata, babalaô-mirim respeitada, casada com o médico negro João Batista da Silva, que se tornaria chefe de gabinete do chefe de polícia no governo Venceslau Brás.
Esta casa – na rua Visconde de Itaúna, 117, em frente à praça 11 de Junho (hoje, avenida Presidente Vargas) – simboliza toda a estratégia de resistência musical à marginalização do negro no pós-abolição.
Na sala de visitas, realizavam-se bailes (polcas, lundus etc), músicas e danças mais “conhecidas e respeitáveis”. Nos fundos, samba de partido alto ou samba raiado, com a elite negra da ginga e do sapateado.
Também nos fundos, a batucada dos negros mais velhos, com elementos religiosos.
Não é à toa que se diz que o samba agoniza mais não morre, se reinventa, se ressignifca, dialoga com os outros ritmos, inspira outros sons
Duramente perseguido, é música de resistência, metáfora viva das potência do povo preto.
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Fevereiro 2023
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