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O ódio que você semeia

o fruto que se colhe em uma sociedade que tem na sua estrutura de poder o racismo

– Tania Regina Pinto

A filosofia do rapper Tupac, nascida da sua vivência periférica, escancara as mazelas geradas pelo racismo. Os impactos afetam a trajetória dos corpos negros desde a sua infância.

O ódio que você semeia é o título do romance de estreia da norte-americana Angie Thomas, indicado em 2018 para o Prêmio Edgar como ‘Melhor Livro Jovem Adulto’. O ódio que você semeia inspirou filme do diretor George Tillman Jr, com o mesmo nome. 

O ódio que você semeia é uma referência à música do rapper americano Tupac, mais conhecido como 2Pac, que se chama “T-H-U-G-L-I-F-E”  – explica o princípio, a ideia, a sigla para “The Hate U Give Little Infants Fucks Everybody”, ou, em tradução literal, 
“O ódio que você semeia nas crianças fode com todo mundo”.

Tupac Amaru Shakur – seu nome de batismo – nasceu em 16 de junho de 1971, no Harlem, em Nova York, e foi assassinado em 13 de setembro de 1996, aos 25 anos de idade.

Palavrões, linguagem chula, grosseira, não fazem parte do meu vocabulário. Sei que toda palavra tem força própria, somada à energia do contexto em que ela é dita. Mas ecoo a voz de 2Pac, com todo o sentimento que sai do coração dele. Por isso, mantive o original.

É preciso pensar que o ódio semeado no outro cria um círculo vicioso, volta para nós em forma de ódio e de morte também.

E quando me refiro a nós, não quero dizer só os negros, volta para todo mundo. Quando me refiro a nós, não quero dizer só as crianças negras – os nossos João Pedro, Jenifer, Kawan, Kauê, Agatha, Kethellen, Miguel… -, mas toda a infância. E me repito deliberadamente.

O ódio que você semeia precisa ser visto, debatido por adolescentes, jovens, adultos e por todas as pessoas capazes de absorver uma profunda mensagem de solidariedade e luta contra a injustiça.

Eu acredito nas palavras do líder sul-africano Nelson Mandela

“Se as pessoas podem aprender a odiar,
podem aprender a amar”.

A história

Starr Carter, interpretada pela atriz Amandla Stenberg, é uma jovem de 16 anos, vive com os pais e dois irmãos em um bairro da periferia, com problemas de drogas e violência. Por causa disso, ela e seus irmãos estudam em um colégio de uma área rica da cidade.

Assim, Starr aprende a se dividir entre a menina da periferia
e a menina do colégio rico.

Esta divisão no seu existir, entretanto, se torna insustentável quando ela presencia o assassinato de um amigo de infância por um policial branco.

Mulher negra com mãos para cima

Que ninguém se iluda com este roteiro tão conhecido de todos nós.

O filme tira o fôlego, incomoda, desespera.

Em mim, cada vez que assisto, o peito dói, os olhos são invadidos por lágrimas. Penso em meu filho, minha neta, na infância de todas as cores, na juventude de todas as cores, exposta a sentimento tão profundo na contramão do amor, sentimento que inviabiliza o futuro. E me repito deliberadamente.

O ódio que você semeia é o fruto que se colhe em uma sociedade que tem por base o perde-perde do racismo estrutural, que desumaniza todos os cidadãos, transformando-nos em reprodutores e vítimas de inverdades, de pré-conceitos que devastam o existir.

Negação de direitos

A coluna desta semana trata de racismo estrutural, ideologia que tem como prática naturalizada a desigualdade. Sistema de poder que estabelece uma hierarquia entre as raças e as etnias e a utiliza na alocação de recursos, nas relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, promovendo a exclusão.

No livro, recém-lançado, O que é racismo estrutural?, o jurista Silvio Luiz de Almeida desconstrói a ideia de que o racismo é apenas um problema moral ou cultural.

E aponta o quesito raça como fundamental para a compreensão
do Estado, do direito e da economia contemporâneas.

O racismo na concepção estrutural – esclarece o autor – está entrelaçado à compreensão de ordem social, que gera o racismo individualista e o racismo institucional. Isso porque o indivíduo e as instituições estão numa sociedade em que ser racista é um princípio.

Engrenagem

“O racismo se expressa concretamente como desigualdade política, econômica e jurídica”, afirma Silvio Almeida. Num sistema estrutural racista, o negro não é vítima e sim culpado pelo próprio racismo e pela desigualdade.

É o racismo estrutural que naturaliza a nossa ausência nas universidades, nos espaços culturais, nos postos de comando, no poder.

É o racismo estrutural que naturaliza a abordagem policial
mais agressiva contra negros.

Só que não é natural que os negros ganhem 42,5% menos que os brancos e ocupem somente 30% dos cargos de chefia.  Não é natural existir uma lei para que metade do povo brasileiro não seja discriminado pela cor da pele e que tal proibição faça parte da nossa Constituição.

Não é natural que 75% das vítimas de homicídio no Brasil sejam negras…

As primeiras pessoas escravizadas chegaram ao Brasil entre 1539 e 1542! E desde então servem o país, trabalham pelo país, pegam em armas pelo país, como aconteceu durante a Guerra do Paraguai, de 1864 a 1870. Não é natural que nada disso seja reconhecido. Não é natural..

Ideias cristalizadas

Na estratégia de negação de direito básicos incluam-se as piadas, comportamentos, armadilhas linguísticas, hábitos pejorativos incorporados ao nosso cotidiano, que auxiliam na estratégia deliberada de exclusão e de reforço a todo tipo de discriminação e preconceito.

Inúmeras palavras racistas escritas de diferentes formas e à mão.
Destaque-se também a adoção de eufemismos para se referir a negros ou pretos, chamando-os de “moreno” e “pessoa de cor”, comumente praticados, numa atitude que evidencia o desconforto das pessoas, por conta do estigma social que a população negra vem recebendo ao longo dos anos – na nossa coluna de 22/6/2020, sobre Letramento Racial, abordamos bastante este aspecto do racismo estrutural.

A discriminação racial é atitude explícita
do racismo estrutural, é a ação.

Já o preconceito racial – é sempre bom esclarecer a diferença entre estes dois crimes – é a opinião sem fundamento. É o porque sim, sem justificativa.

Sem desculpa

Silvio Almeida, autor de "O que é racismo estrutural?" (foto: Christian Parente / Divulgação)

A chuva, o sol e o racismo atinge a todos, ricos e pobres, brancos e negros, crianças e adultos… Só que como ressalta Silvio Almeida, em seu livro sobre o assunto, “não é um álibi para racistas” entender que o racismo é estrutural e não ato isolado de um indivíduo ou de um grupo.

“O uso do termo estrutura não significa dizer que o racismo seja uma condição incontornável e que ações e políticas institucionais antirracistas sejam inúteis; ou, ainda, que indivíduos que cometam atos discriminatórios não devam ser pessoalmente responsabilizados.”

A compreensão desta estratégia de poder não protege racistas nem desobriga atitudes antirracistas. Saber torna a todos mais comprometidos com a luta pelo seu extermínio.

Ação afirmativa

Para empresas e instituições, Silvio Almeida recomenda a adoção de políticas antidiscriminatórias permanentes e a criação de mecanismos que permitam o questionamento
de práticas internas, bem como campanhas publicitárias, entre outras formas de relacionamento
com o público.

Há pouco mais de 15 dias, uma coalizão de grupos que lutam pelos direitos civis nos Estados Unidos lançou a campanha #StopHateforProfit, instando as principais empresas daquele país a interromperem a publicidade no Facebook, por a rede social não coibir posts com discursos de ódio e racismo.

Stop Hate for Profit
Material de divulgação oficial da campanha #StopHateforProfit

A resposta do mundo dos negócios foi imediata. Pequenas e grandes empresas abraçaram a causa.

A Unilever, por exemplo, retirou anúncios do Facebook, Instagram
e Twitter, declarando que “continuar anunciando nessas plataformas não acrescentaria valor às pessoas e à sociedade”.

Starbucks e Coca-cola seguiram na mesma direção.

Mark Zuckerberg sentiu no bolso e emitiu comunicado afirmando que vai marcar postagens que tenham discurso político e violem suas regras, além de adotar medidas para proteger minorias contra abusos.

As ações do Facebook tiveram uma queda de 8,3% e a empresa perdeu US$ 56 bilhões em valor de mercado.

Na contramão

Enquanto isso, no Brasil, em 27 de junho, a Serasa Experian um novo método de análise de crédito.
Agora, além das dívidas, renda e histórico de pagamento do analisado, a empresa vai levar
em conta o endereço da residência e o tipo de trabalho que exerce,
em uma promoção
explícita de racismo estrutural.

Foto de Tuca Vieira que mostra Paraisópolis e prédio de luxo do Morumbi rodou o mundo e virou símbolo da desigualdade social

Não é preciso pesquisa para saber que pessoas pretas estão segregadas por regiões, que ocupam as áreas mais pobres das cidades
e as funções mais simples…

Mesmo assim, existem estudos, como os da doutora em ciências sociais Mariana Panta da Universidade Paulista, População Negra e o Direito à Cidade, que confirma esses dados.

A loucura, o incompreensível, é a não percepção de que promover o racismo estrutural não é atitude inteligente – o ódio cega! Estudiosos do assunto concordam que a melhor maneira de sair de uma crise, de fortalecer a economia, é dar dinheiro às pessoas mais pobres, transformando-as em consumidoras.

Vítimas e algozes

Eu acredito que, na vida, nossos papéis se confundem. Há momentos em que somos as vítimas e há momentos em que somos os algozes exatamente porque abrimos mão da ética em nossas relações, abrimos mão do diálogo, do respeito a quem é diferente, a quem pensa diferente.

Toda vez que reagimos, que respondemos à ação do outro sem refletir, nos transformamos em algozes de nós mesmos.

Pensar estrategicamente é aprendizado
ao qual temos nos negado.

Direito a vida

De que vale tanto domínio da tecnologia se não temos controle sobre nossas emoções? Se temos dificuldade de nos olhar nos olhos, de nos reconhecer nas semelhanças e enxergar nas diferenças,
na diversidade, riquezas?

Quando vamos parar com a inveja? Quando vamos parar de ter medo do outro? De ver o outro como ameaça?

Quando se nega educação de qualidade, trabalho, saúde, saneamento básico, segurança, emprego, moradia digna à maior parte da sociedade de um país, não nos iludamos, todos perdemos. Mesmo os que dormimos em berço esplêndido!

Foto: Késia Abreu

Quem paga por uma sociedade doente, que produz mal e pouco? Quem paga por presídios que, de verdade, não promovem a reintegração da sociedade? Quem paga o preço por uma educação sem qualidade para a maioria? Somos nós mesmos, com nossos impostos, e somos nós mesmos com a vida.

É preciso refletir sobre “T-H-U-G-L-I-F-E” e tomar para nós, brasileiros de todas as cores, o slogan do primeiro presidente negrodos Estados Unidos da América:

“Sim, nós podemos”.

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2 comentários em “O ódio que você semeia”

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