Protagonismo negro
no cinema brasileiro
- Beth Brusco
Cena do curta-metragem Kbela, filme que recebeu prêmio de Melhor Curta-metragem da Diáspora Africana da Academia Africana de Cinema (AMAA Awards 2017) (Direção: Yasmin Thayná | Foto: Divulgação)
Se comparada à produção norte-americana, berço do protagonismo negro na sétima arte, o cinema nacional com atores, diretores e produtores negros tem um longo caminho a trilhar. Mas já temos uma história, na qual falta a nossa cor em letras garrafais!
Nossa história negra no cinema é branca, ainda! Majoritariamente branca! Branca e masculina, como é branca e masculina, a cor e o gênero da maioria dos que nos escravizaram em território nacional, dos que nos “catequizaram” em território nacional, nos violentaram, amordaçaram, exploraram…
Seja na direção, no roteiro, produção executiva, elenco, direção de fotografia, direção de arte, figurino, construção de personagens, faltamos nós, faltam os nossos…
Por muito tempo, para atores e atrizes da raça negra a possibilidade única de trabalho era a interpretação de escravizados, alforriados e serviçais do pós-abolição, inclusive nos bastidores!
No livro “O negro brasileiro e o cinema”, de 1988, o jornalista, crítico de cinema, pesquisador, roteirista e diretor de vídeos, João Carlos Rodrigues, enumera 12 arquétipos, 12 tipos, utilizados nas produções brasileiras, que retratam personagens negros e mulatos da ficção brasileira.
Os destaques são o Preto Velho, que transmite a tradição ancestral africana; o Mártir da escravidão; o Nobre Selvagem; o Negro Revoltado; o Negro da Alma Branca, trágico elo entre oprimidos e opressores; o Crioulo Doido, equivalente assexuado e cômico do Arlequim da Commedia dell’Arte; a Musa Negra; o ameaçador Macho Negro (Negão), que povoa os sonhos racistas com estupros e violências, e a Mulata Sedutora, mulher-objeto cor de chocolate, desejada por todas as raças
PeQuEnO-GrAnDe–pEqUeNo
Grande Otelo – nos anos 1960 – já era um dos mais destacados atores brasileiros, mas os seus papéis eram a reprodução de estereótipos, os piores.
No filme “Onde Estás, Felicidade?”, de 1939, dirigido por Mesquitinha – citando um exemplo -, o ator é visto infantilizado, de cabelo arrepiado, com a boca entupida de rabanadas, de fraldas e se comportando como um bebê!
Grande Otelo (Imagem: Fundo Correio da Manhã.)
Em seu período áureo na chanchada, o ícone do humor brasileiro só tinha seu protagonismo garantido se atuasse em dupla com um ator branco – frequentemente Oscarito e, às vezes, Ronald Golias ou Ankito. Caso contrário, Grande Otelo só conseguia papéis como ator coadjuvante.
Cineastas como Rogério Sganzerla e Julio Bressane sabem aproveitar a genialidade de Grande Otelo, que sabia fazer rir e fazer chorar. Como referências de sua arte, o clássico “Rio, Zona Norte”, de 1957, e o pouco comentado “Também Somos Irmãos”, de 1949.
Macunaíma
Em 1969, é verdade, Grande Otelo encarna “Macunaíma, o herói sem nenhum caráter”. Seu personagem está no título do filme escrito e dirigido por Joaquim Pedro de Andrade, uma releitura da obra literária homônima escrita em 1928 por Mário de Andrade, mas nem por isso menos racista.
E ele é parido – defecado -, de novo bebê, mas, curiosamente, a partir de um movimento de rebeldia da cinematografia nacional, que procurava estabelecer uma identidade autoral longe das chanchadas, que tinham no mesmo Grande Otelo um de seus principais representantes, o Cinema Novo.
A ideia era usar a câmera como instrumento de denúncia, ferramenta intelectual e, ao mesmo tempo, atingir o público, oferecendo um retrato do povo brasileiro, por meio de um “herói sem caráter”, ainda em construção, a ser moldado pelo medo e pelo prazer…
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Assim nasce Macunaíma – a palavra significa “o grande mal” – na Floresta Amazônica e já manifesta uma de suas características mais fortes: a preguiça.
O uso de alegoria é para driblar a repressão da Ditadura Militar vivida no Brasil da época. Aí entram os elementos do folclore brasileiro – as lendas de Curupira e de Iara – e aspectos de nossa cultura, como o candomblé, o samba e o herói que o governa despreza e vira branco para ter poder!
Esta é a história: Macunaíma encontra uma fonte mágica, se transforma em um homem branco e brada: “Fiquei branco! Fiquei lindo!” Mas só ele consegue a magia! Tornando-se, então, líder da família e ficando, inclusive, com a mulher do irmão negro.
E segue o filme que destila racismo em sua crítica social…
+Cinema Novo
Sem dúvida, o Cinema Novo representa um divisor de águas para a participação do negro no cinema. A fase final foi de 1968 a 1972, de Macunaíma, teve também Antonio Pitanga, em 1969, interpretando um playboy mulherengo e arrogante no clássico “A Mulher de Todos”, de Rogério Sganzerla – uma das primeiras representações do homem negro com status social no meio urbano.
Na primeira fase, de 1960 a 1964, inspirado no movimento francês Nouvelle Vague, o Cinema Novo foca na crítica às condições raciais e sociais das classes populares. O cineasta Nelson Pereira dos Santos, um dos fundadores do movimento, no documentário “Cinema Novo”, produzido em 2016, explica a iniciativa como criada por “gente interessada em fazer com que o cinema brasileiro se voltasse para sua realidade”.
Cena de Ganga Zumba (Direção: Cacá Diegues)
É neste período que é produzido um dos primeiros filmes brasileiros com elenco majoritariamente negro: “Ganga Zumba”, de Cacá Diegues, em 1963, cinebiografia do guerreiro que criou o Quilombo dos Palmares.
O mesmo Cacá Diegues, passado o Cinema Novo, volta à questão racial em “Xica da Silva” (1976) e “Quilombo” (1984), o último, protagonizado por um elenco principal negro – algo revolucionário na produção cinematográfica de todo Ocidente!
A jornada
No feminino, a trajetória segue sempre mais desafiadora. Ruth de Souza é a referência de atriz negra, que também derrubou barreiras no teatro e na televisão, além de ser a primeira brasileira indicada a um prêmio internacional de cinema e a pisar no palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
Apesar de sua enorme aptidão dramática, sua carreira – em 98 anos de vida – é marcada por papéis de menor expressão.
Um exemplo é o filme “Sinhá Moça”, de 1953, da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, com sede em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo – importante estúdio brasileiro que produziu e distribuiu filmes, de 1949 a 1954. Nele, a atriz interpreta uma escravizada num enredo que coloca a escravidão como pano de fundo de desventuras amorosas e sociais de personagens brancos, ‘benevolentes’ com os negros.
Mas há outros descalabros cinematográficos como os dois melodramas musicados de maior sucesso de bilheteria nos anos 1930 e 1940: “Favela dos meus amores”, de 1935, direção de Humberto Mauro, é um dos primeiros filmes de ficção rodado numa favela de verdade no Rio de Janeiro, fora dos estúdios, e “O ébrio”, de 1945, da cineasta Gilda de Abreu.
No primeiro, compositores e sambistas são interpretados por atores brancos e negros de pele clara. Negros de pele escura entram em cena apenas como figurantes.
E, mesmo assim, num primeiro momento, o filme é censurado, “porque mostrava muito pobre e muito preto” – mas, no final, é liberado.
No segundo, “O ébrio”, sobre as desgraças de um cantor alcoólatra, enganado pelos próprios parentes, todos os protagonistas são brancos e os três negros do filme são empregados domésticos devotados aos patrões, ingênuos e quase inverossímeis de tão bondosos!
Alma no olho
Zózimo Bulbul é a luz no fim do túnel. Primeiro ator negro a brilhar em uma telenovela no horário nobre nos anos 1960, faz da história do seu povo sua razão de existir como cineasta.
Se antes do Cinema Novo os papéis interpretados por atores negros eram caricatos, inexpressivos, estereotipados, no início dos anos 1970 Zózimo Bulbul, à frente e por trás das câmeras, foca na valorização da cultura negra brasileira.
Em 1974, dirigindo o curta “Alma no Olho”, traz uma reflexão sobre a chegada dos africanos escravizados no Brasil. E, em 1988, lança o documentário “Abolição”, sobre a liberdade negra decretada pela lei áurea, propondo um pensar crítico do 13 de maio de 1888 cem anos depois.
Zózimo entrou em contato com os diretores do Cinema Novo – Glauber Rocha, Leon Hirzman, Cacá Diegues, Antunes Filho e outros – e conseguiu seu primeiro trabalho como ator no filme “Cinco Vezes Favela”, em 1962. Na época, ele estuda desenho, pintura e cenografia na Faculdade de Belas Artes, se envolve com o movimento estudantil, entra para o Partido Comunista do Brasil e participa do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes.
Em 2007, funda o Centro Afro Carioca de Cinema, no coração da Lapa, no Rio de Janeiro, com foco na valorização da produção cinematográfica brasileira, africana e caribenha como um ato social de transmissão de sabedoria, formação técnica e artística, profissionalização e inclusão no mercado de trabalho.
Mostra pioneira
No mesmo ano, ele criou o atualmente chamado Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul: Brasil, África, Caribe e Outras Diásporas, para fortalecimento da identidade negra com exibições de filmes nacionais e internacionais, debates, seminários e oficinas.
A mostra pioneira, organizada pelo Centro Afrocarioca de Cinema, é referência no mundo e, em 2021, chegou à 14ª edição, virtual e presencialmente, com o tema “Memória, Vestígios e Futuridade”, exibindo 155 filmes do Brasil e do mundo ressaltando o movimento Sankofa de retornar ao passado para ressignificar o presente e construir um futuro em que caibam principalmente mulheres e homens pretos, a comunidade LGBTQIA+.
Leia mais sobre Zózimo Bulbul e o cinema negro nacional no artigo sobre o pioneirismo do ator e cineasta, Vidas em Conflito!
Tempo presente
Hoje o cenário do cinema nacional negro é outro. Longe do ideal, ainda, mas com maior representatividade. São muitas as produções feitas por negros, com negros e para os negros, com narrativas de resistência e visibilidade preta livre de estereótipos.
Cena do filme Cabeça de Nego, com Lucas Limeira interpretando Saulo e Angela Davis ao fundo (Imagem: Divulgação)
Hoje o cenário do cinema nacional negro é outro. Longe do ideal, ainda, mas com maior representatividade. São muitas as produções feitas por negros, com negros e para os negros, com narrativas de resistência e visibilidade preta livre de estereótipos.
Um exemplo é o filme “Cabeça de Nêgo”, de 2021, estreia do diretor cearense Déo Cardoso, com elenco formado por uma maioria de jovens atores negros e que discute abertamente, e com propriedade, os efeitos do racismo, da desigualdade racial e dos movimentos populares. Na trama, o garoto Saulo, estudante do Ensino Fundamental, se nega a sair da sala de aula após discutir com um colega de classe que o chamou de “macaco”.
O brasileiro Jeferson De se destaca em filmes como “O Amuleto”, de 2015; “Correndo Atrás”, de 2019, e “M-8 – Quando A Morte Socorre A Vida”, de 2020, seu longa de terror que discute o racismo.
Política sem rodeios
Jeferson De também mergulha na política com “Doutor Gama”, de 2021, com a trajetória de Luiz Gama (1830-1882) – nascido livre e vendido como escravo aos 10 anos de idade -, que conquistou sua própria liberdade, tornou-se um dos mais respeitados advogados abolicionistas do século XIX e utilizou as leis e os tribunais para libertar mais de 500 homens e mulheres escravizados.
Outro líder negro revolucionário, na luta contra a Ditadura Militar, também ocupa as salas de cinema em 2021: “Marighella”, do ator e cineasta branco antirracista Wagner Moura, uma adaptação do livro “Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo”, do escritor Mário Magalhães.
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No filme, produzido em 2019 – mas com a exibição cancelada várias vezes por restrições da Ancine, nossa agência nacional de cinema – , Wagner Moura recria e amarra dois momentos na vida de Carlos Marighella (1911-1969): quando o político negro, escritor e guerrilheiro comunista marxista-leninista é baleado e preso pelo regime militar, em 1964, e suas atividades à frente do grupo armado de oposição à ditadura Ação Libertadora Nacional (ALN), de 1968 até seu assassinato, em 1969.
Mais do que discutir implicações morais e legais das ações de Marighella e de seus aliados contra os militares, Wagner Moura propõe-se devolver ao guerrilheiro, publicamente chamado de “terrorista” e de “inimigo número um do Brasil”, a humanidade que lhe foi negada; representá-lo como uma pessoa tridimensional: pai, marido, amigo, líder, patriota. Indivíduo complexo que, sim, optou por recorrer à violência frente à violência, ecoando um debate antigo que o próprio filme traz à tona para ilustrar as diferentes perspectivas que compõem a militância revolucionária. No papel do personagem-título, Seu Jorge entrega uma atuação no filme brasileiro mais visto pelo público nos cinemas.
Em família
Mergulhando no conceito de ancestralidade, “Todos os Mortos” , de 2020, da dupla Caetano Gotardo e Marco Dutra, em uma história que se passa em 1889, um ano após a abolição do regime escravocrata, com dois núcleos narrativos: o das mulheres brancas e herdeiras da família Soares, antigas proprietárias de terra, e de Iná Nascimento, que viveu muito tempo como escravizada e persistiu para reunir seus entes queridos em um mundo hostil e fraturado.
“Cidade Pássaro”, do cineasta Matias Mariani, e “Até o Fim”, de Glenda Nicácio e Ary Rosa, os dois também de 2020, são outros títulos com protagonismo negro que posicionam o seio familiar como norte da história.
Sabrina, a oitava!
Como familia social, foco no premiado “Rolê – A História dos Rolezinhos”, de 2021, assinado por Vladimir Seixas, vencedor do Redentor de Melhor Documentário no Festival do Rio do mesmo ano, com os encontros organizados por jovens de periferia que reuniam centenas de pessoas em shopping centers de grandes cidades brasileiras e escancararam as barreiras impostas pela discriminação racial e exclusão social no país.
O nome completo é Sabrina Fidalgo: cineasta, roteirista, atriz, produtora, negra brasileira, carioca, nascida em 24 de setembro de 1979, indicada como a oitava cineasta mais promissora ao redor do mundo de uma lista com 36 diretoras internacionais, em março de 2018, pela publicação norte-americana Bustle.
Multipremiada, Sabrina escreveu e dirigiu o curta-metragem ficcional “Alfazema”, em 2019, e ao ter seu trabalho reconhecido declarou em entrevista ao jornal Correio Braziliense:
“A diversidade também é muito sobre estar nesse lugar de poder atrás das câmeras. Porque, se tiver gente preta, indígenas, mulheres atrás das câmeras, há muito mais possibilidade de ter à frente das câmeras, é um efeito colateral óbvio”.
Sobre representatividade negra no cinema, ela disse:
“A gente ainda não tem nada, nem uma diretora negra que tenha realizado um longa de ficção depois de Adélia Sampaio, que foi, até agora, a primeira e única mulher negra a ter um filme de ficção longa-metragem com distribuição nos cinemas, sendo que o filme é de 1984. O que falta no Brasil é investimento, é realmente a branquitude entender o racismo estrutural e se entender nesse lugar de privilegiados e de racistas”.
Para a cineasta, o padrão estético estabelecido não cabe mais. “Todas as pessoas não brancas, que formam a grande maioria do Brasil, estão cansadas e querem se ver (…) Aos poucos, estamos avançando”. Mas, ela acredita, depende muito menos de quem faz cinema e mais de quem detém o capital, de quem banca.
Informações oficiais
Governo do Brasil: Nenhum filme em 2016 foi dirigido ou roteirizado por uma mulher negra. 2,1% dos longa-metragens produzidos e lançados no país foram dirigidos, por homens negros; 19,7% por mulheres brancas e 77,5% por homens brancos.
Dados sobre Direção e Roteirização de filmes em 2016.
Isso quer dizer que as histórias exibidas nas telas do país, produzidas por brasileiros, têm sido contadas, a maioria, do ponto de vista do homem branco: 68% deles assinam o roteiro dos filmes de ficção, 63,6% dos documentários, e 100% das animações brasileiras de 2016. Os mesmos homens brancos dominam as funções de direção de fotografia (85,2%) e direção de arte (59,2%).
As mulheres negras representam 5% dos profissionais em funções de destaque e pessoas negras são 13,3% do elenco geral.
Não por acaso, em 42,2% dos filmes não se identificam artistas negros. Em 33% deles, o elenco tem no máximo 10% de negros e em três filmes se constatou um maior numero de negros em cena, representando 2,1% das ficções.
Ter estes números compilados, também, beira o ineditismo! Os dados foram apresentados em junho de 2018 quando, pela primeira vez, a Ancine publicou um documento com recorte de raça na produção do cinema nacional, o Informe Diversidade de Gênero e Raça.
O trabalho, produzido pela Coordenação de Monitoramento de Cinema, Vídeo Doméstico e Vídeo por Demanda, analisou 142 longas-metragens brasileiros lançados comercialmente em salas de exibição no ano de 2016 – sendo 97 obras de ficção, 44, documentários e uma animação – e as 1.326 pessoas envolvidas nas produções daquele ano nas funções de Direção, Roteiro, Produção Executiva, Elenco, Direção de Fotografia e Direção de Arte.
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