Resistência na ponta dos pés
- Ingrid Silva
Com a palavra, Ingrid Silva, nossa bailarina nos Estados Unidos, o diferencial, a referência
Qual é a chance de alguém vir de onde eu vim e conseguir ser alguém na vida? O fato de eu ser negra, então, agrava ainda mais a situação. As pessoas acham que nós não merecemos ter uma profissão e passam a vida afirmando o quanto não pertencemos a determinados lugares. Como não?!
Quando olho para trás, lembro que todos os sonhos das minhas amigas foram interrompidos e, mesmo com dificuldade, eu segui em frente.
Moro há dez anos em Nova York e hoje sou a primeira bailarina do Dance Theatre of Harlem – primeira companhia clássica do mundo para negros.
É, o balé realmente mudou a minha história. Vou contar…
Dançando para não dançar
Até os 19 anos morei em uma vila no bairro de Benfica, zona norte do Rio, que ficava atrás de uma comunidade – ou seja, naquela região tudo era considerado a mesma coisa.
Apesar de eu sempre ter-me envolvido com esportes, foi lá que um dos vizinhos me apresentou ao projeto social Dançando para Não Dançar, idealizado por Thereza Aguilar, que ficava no Pavão-Pavãozinho, outra comunidade carioca. Eu não dei muita importância, mas fiz o teste e passei. Isso aos 8 anos.
Mal sabia eu que, mais tarde, aquela simples atividade – que surgiu para que eu não passasse o dia inteiro na rua – me levaria aos Estados Unidos.
E se eu não imaginava que isso poderia me acontecer, minha mãe, muito menos. Ela veio do Espírito Santo, plantava arroz e nunca soube o que era balé, mas largou tudo para me acompanhar nas aulas de dança.
Pas-de-deux
Com o tempo, ser bailarina profissional passou a fazer parte das minhas metas, mas, no Brasil, vai falar para alguém dar oportunidade para uma pretinha… É ridículo, eu sei, mas não dão.
Cheguei a estagiar na Cia. de Dança Deborah Colker, no Rio, e no Grupo Corpo, em Minas Gerais, mas não estava preparada para seguir em nenhuma delas.
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Tudo mudou quando, de volta ao projeto da Thereza, recebemos a visita da primeira bailarina do Dance Theatre of Harlem, Bethânia Gomes.
Ela sugeriu que eu mandasse um vídeo para a escola americana, que estava com uma vaga aberta.
E deu certo: das 200 meninas que fizeram o teste, só eu não o fiz pessoalmente, mas fui escolhida mesmo assim.
Chegada sem glamour
Os meus pais não tinham condições de me mandar para NY, mas, como eu ganhei a bolsa de estudos pelo projeto social, eles batalharam para arcar com os outros custos e eu agarrei essa oportunidade com unhas e dentes.
Logo que cheguei por lá, não teve aquela cena de filme, comigo descendo do táxi amarelo na Times Square ao som de Empire State of Mind, da Alicia Keys. Fui de trem do aeroporto direto para a sala de aula fazer plié (passo básico do balé clássico). É sério!
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O caminho foi uma tragédia e não falar inglês só piorou a situação.
O desespero estava tão estampado no meu rosto que uma senhora me acompanhou durante todo o trajeto do JFK (aeroporto internacional) até o Harlem, mesmo sem conseguirmos nos comunicar. Ela me marcou e eu nunca consegui agradecê-la.
Como perrengue pouco é bobagem, o inverno chegou e eu não tinha nenhum casaco apropriado para aquele tipo de frio. Nunca esqueço das doações de roupas que recebi e me ajudaram a aguentar esse começo.
No Dance Theatre
De qualquer forma, nada se compara à sensação de ver todas aquelas pessoas pela primeira vez. Eu pensava: “Nossa, todo mundo é igual a mim, não sou mais a exceção na sala de aula”.
A partir dali, tive que conquistar o próprio espaço e mostrar como o meu trabalho era tão bom quanto o deles, mesmo sendo estrangeira. Porque tem disso, né?
Eu nunca era escolhida para participar dos espetáculos e ligava para a minha mãe bem chateada, pedindo para ir embora. A resposta dela era sempre a mesma: “Minha filha, não tem nada para você no Brasil”.
Todo mundo acha que quando você mora em NY significa que ficou rico ou já conquistou tudo na vida. Mas, até eu ser notada pelo Mr. Michael, diretor da companhia, refinar a minha técnica e ganhar mais visibilidade com o público, fui cuidadora de cachorros, babá e trabalhei em eventos.
Só hoje, dez anos depois, é que consigo focar totalmente na dança.
Quando estou de folga da companhia, faço algumas campanhas publicitárias ou dou aulas de balé.
Não levo uma vida 100% estável, mas posso escolher trabalhar só com arte, o que é um privilégio!
Por mais que eu me considere vitoriosa, todos os dias eu preciso quebrar uma nova barreira e provar para as pessoas do contra o porquê de eu estar aqui. E não pense que isso me desanima!
Acho valioso poder mostrar que a dança tem muito mais diversidade hoje do que quando o balé começou. E eu faço parte disso. Não vim aqui à toa. Eu sou o diferencial.
Livre até nos cabelos
Por mais incrível que pareça, todas as meninas negras alisam o cabelo por aqui. Comigo não foi diferente, mas gastar US$ 100 por mês começou a ficar pesado. Resolvi passar pela transição capilar sem saber que encontraria o poder da minha voz durante o processo.
Compartilhava todas as minhas descobertas na minha página do Facebook e aquilo começou a crescer organicamente.
Afinal, era possível ser bailarina clássica com black power? Mostrei que sim e virei referência.
Tudo isso foi me dando força, eu me olhava e me sentia linda, mesmo as pessoas dizendo que um cabelo afro não fica bem-arrumado para a dança clássica. Eu fiz a diferença e me tornei a primeira bailarina negra brasileira a ser capa da Pointe Magazine (revista especializada em dança) com meu cabelo natural. Tudo isso porque a minha mãe confiou em mim. E ela nunca me viu dançar, acredita? Hoje esse é o meu maior sonho.
* Este depoimento da bailarina Ingrid Silva foi dado a Luanda Vieira e publicado na revista Glamour em 12 de dezembro de 2018.