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Acorrentado ao nascer livre

- Tania Regina Pinto

Como respirar liberdade em um corpo escravizado?

A lei… ora a lei…

Por si só a de nº 2040, sancionada pela princesa Isabel em 28 de setembro de 1871 –  data ‘celebrada’ em logradouros públicos, clubes de gente preta etc – escancara, no texto, que a liberdade não é para valer, não é real.

No artigo 1º, parágrafo 1º, por exemplo, está escrito que “os ditos filhos menores ficarão em poder e sob a autoridade dos senhores de suas mães” e que, após os 8 anos de idade, “o senhor da mãe terá opção”, ou de receber uma indenização do Estado ou utilizar-se dos serviços do menor até os 21 anos.

O mesmo expediente – de sustentar um ‘ventre livre’ por 8 anos, com direito a receber 13 anos de trabalho escravo como forma de pagamento – valia para o caso de o proprietário da escravizada que teve o bebê não querer ficar com a criança e entregá-la ao Estado.

Também chamada Lei Rio Branco – referência ao visconde de mesmo nome, do Partido Conservador, que a ‘inspirou’ -, foi forjada por um Senado Federal quase idêntico ao atual: sem pessoas negras.

Gente de cor, africanos e criolos – assim eram chamados os descendentes de africanos nascidos no Brasil – não podiam votar nem ser votados… Até 1934,  mulheres, negros e pobres e não tinham direito a voto. Na nossa primeira Constituição, outorgada por Dom Pedro I em 1824, o voto era obrigatório apenas para homens com mais de 25 anos e renda anual mínima de 100 mil réis (algo em torno de R$ 1 milhão).

Registre-se, ainda, o fato de que para a Igreja Católica, diferente dos brancos e dos indígenas, nem alma os negros tinham… E a Igreja fazia parte do poder político… Então, por que mesmo falar em liberdade?

Salário x Escravidão

A resposta está numa expressão corrente usada por nós:

Para inglês ver”.

Uma lei para ‘vender’ a ideia de que o Brasil se aproximava da extinção do sistema escravagista, pelo que a Inglaterra pressionava, uma vez que a Revolução Industrial despontava naquele país.

A preocupação da Inglaterra era com a sua economia. Os ingleses exigiam que o governo tomasse medidas para acabar com o tráfico negreiro, e consequentemente com a escravidão, porque já utilizavam mão de obra assalariada nas suas colônias caribenhas, enquanto o Brasil seguia com a escravidão e, portanto, produzia a um custo bem mais barato

Navio Negreiro, 1830, Rugendas
Ilustração: "Negres a fond de calle" ("Navio negreiro"), Johann Moritz Rugendas, 1830.

lei, símbolo da expressão “para inglês ver”, é a Eusébio de Queirós, sancionada em 4 de setembro de 1850, que trata do fim do tráfico de escravizados no Oceano Atlântico e que, por conta da cumplicidade entre os funcionários do governo e traficantes de negros, nunca foi cumprida.

E a Lei do Ventre Livre embora apareça nos livros didáticos e nos sites de história do Brasil como a primeira lei abolicionista, de verdade, não tinha a liberdade no seu fundamento.

A gestação

Ela nasce do discurso de Dom Pedro II durante a abertura da sessão legislativa de 1867. Na chamada “Fala do Trono”, o monarca pede aos legisladores que esbocem projetos que extinguam a escravidão no Brasil de forma gradual.

Ao que os políticos da época atenderam com maestria. Foram 21 anos para a assinatura da libertação do povo negro em 13 de maio de 1888, lei até hoje não regulamentada!!!!

Mas voltemos a 1867, quando vários senadores apresentaram ideias como:

  • a proibição da separação da família,
  • a posse de escravos pela Igreja e
  • a libertação do filho da escrava, desde que ele fosse conservado com o senhor até a maioridade.

Consideradas polêmicas, as propostas geraram uma série de abaixo-assinados encaminhados ao Senado, tanto da parte dos escravagistas como dos abolicionistas.

Vivia-se a Guerra do Paraguai (1865-1870), o que fez com que as discussões fossem interrompidas e se arrastassem pelos anos seguintes.

O parto

A fim de contentar interesses contrários, surge a figura do senador Visconde do Rio Branco, que elabora outro projeto de lei com a mesma essência, também alvo de críticas, mas que consegue aprovação.

Art. 1º – Os filhos da mulher escrava que nascerem no Império, desde a data desta lei, serão considerados livres.

 

Parágrafo 1º – Os ditos filhos menores ficarão em poder e sob a autoridade dos senhores de suas mães, os quais terão a obrigação de criá-los até a idade de 8 anos completos.

 

Parágrafo 2º – Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãe terá a opção ou de receber do Estado a indenização de 600 mil-réis ou de utilizar-se dos serviços do menor até a idade de 21 anos completos.

Na mesma lei, o artigo 6º liberta os escravizados que pertenciam ao Governo, os dados em usufruto à Coroa, os recebidos por herança, os abandonados por seus senhores e os não registrados.

Como complemento, estabelece a constituição de um fundo de emancipaçãoregulamenta alforrias e permite ao escravizado juntar dinheiro com o que, por consentimento do senhor, obtiver do seu trabalho e economias – referência aos “negros de ganho“. Dinheiro que, em caso de morte, irá para alguém da família ou  para o fundo de emancipação, na falta de herdeiros.

Vida real

O filho da mulher escravizada era ‘livre’, mas tinha de ficar, obrigatoriamente, sob a tutela do governo ou do proprietário da pessoa escravizada. Não havia a opção de, por exemplo, enviar o recém-nascido para um quilombo ou entregá-lo aos abolicionistas ou alforriados…

O parágrafo 6º, do artigo 1º, traz um ponto interessante:

Cessa a prestação dos serviços dos filhos das escravas antes do prazo marcado no § 1° se, por sentença do juízo criminal, reconhecer-se que os senhores das mães os maltratam, infligindo-lhes castigos excessivos

Sobre esta ‘benesse’ da lei, ficam algumas questões: Quem faria a denúncia? Quem defenderia o ‘ventre livre’, se na lei ele estava sob a tutela do Estado ou do dono da escravizada?

O fato é que só fez prolongar a escravidão, além de nada registrar a respeito dos nascidos nas senzalas antes do 28 de setembro de 1871.

Diferentes mas iguais

Mas não foi isso que eles escreveram! Ao contrário, no papel está registrado que as crianças nascidas a partir daquela data teriam uma condição “jurídica” diferente das outras crianças negras, o que tornaria necessário ajustes do Estado para “compor esta nova categoria da infância brasileira”.

Escravidão
Imagem: Reprodução Costa/Leemage/AFP

Daí a determinação de que os nascidos de ventre livre deveriam ser matriculados em livro distinto, sob pena de multa dos senhores omissos, tanto pelos senhores como pelos párocos que, também, estariam obrigados a ter livros especiais para o registro de seu nascimento e óbito.

A pesquisa “A infância brasileira em debate a partir da promulgação da Lei do Ventre Livre’, de autoria da mestra em Educação Daniela Portela, entretanto, revela que o governo paulista, por exemplo, não cumpriu com estas obrigações nem foi penalizado por isso.

Na época – conta a pesquisadora -, toda a economia brasileira estava diretamente voltada para a produção agrícola e o Congresso Agrícola de 1878 até se propôs discutir como inserir formas “de socializar este novo sujeito social de forma que a hierarquia presente no sistema escravista fosse mantida”.

Mas tudo ficou só no debate de qual seria a maneira adequada de as crianças negras livres trabalharem na produção agrícola e quais os mecanismos ideais para a educação delas.

De acordo com o estudo, os atendimentos públicos eram sempre realizados por meio iniciativas privadas, que variavam entre a esfera “individual, religiosa ou comercial”.

E o fato – conclusão de Daniela Portela – é que as crianças negras livres permaneceram trabalhando nas lavouras nas mesmas condições das crianças escravizadas por “omissão do Estado Brasileiro”.

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