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Machado de Assis, ativismo disfarçado

Afrodescendente em pleno período escravista, escrevendo em jornais lidos pela elite, trabalhando em empregos públicos e vivendo de aluguel, era natural que Joaquim Maria Machado de Assis não tivesse uma atuação militante e panfletária. Seu ativismo se revelava na fina ironia em suas obras para denunciar a escravidão.

O conto A Mulher Pálida, por exemplo, traz a curiosa história de um rapaz que procura a mulher mais pálida do mundo para se casar, uma sátira à eterna obsessão brasileira pela branquitude europeia.

Americanas, de 1875 – em especial o poema Sabina, sobre uma das crueldades da escravidão -, conta a história de uma mucama mestiça, de 20 anos, que não vivia na senzala, mas na casa-grande, e não percebe – ou percebe difusamente, confusamente – a sua própria condição de escrava, e se apaixona pelo filho de seus senhores. Nos versos, ele conta que ela engravida do rapaz, que viaja e, depois, volta já casado e o seu desejo de tirar a própria vida. 

“Honrados” escravagistas 

A “normalidade” da escravidão aos olhos da “melhor” sociedade da época é recorrente em Memórias Póstumas de Brás Cubas. E quanto mais “normal” ao narrador, mais aberrante é para o leitor. 

É nesse livro que se encontra o “honrado” Cotrim, cunhado de Brás Cubas, aquele que:

como era muito seco de maneiras tinha inimigos, que chegavam a acusá-lo de bárbaro. O único fato alegado neste particular era o de mandar com frequência escravos ao calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue; mas, além de que ele só mandava os perversos e os fujões, ocorre que, tendo longamente contrabandeado em escravos, habituara-se de certo modo ao trato um pouco mais duro que esse gênero de negócio requeria, e não se pode honestamente atribuir à índole original de um homem o que é puro efeito de relações sociais. A prova de que o Cotrim tinha sentimentos pios encontrava-se no seu amor aos filhos”, etc.

Esse retrato de um traficante – aliás, um contrabandista de escravos – está no capítulo CXXIII do livro, intitulado, precisamente, “O verdadeiro Cotrim”.

O assunto escravidão não era indigesto para as camadas dominantes da época. Em Dom Casmurro, de 1899, aparece, uma das faces mais reveladoras do que foi a escravidão no Brasil: os “escravos de ganho” – escravos postos para trabalhar na rua ou em outras casas, que passavam o que ganhavam com seu trabalho para o senhor de escravos, ficando, em geral, com uma pequena parte, o que permitiu a alguns a compra da própria alforria.

Nesse caso, quem põe os escravos “ao ganho” é a própria mãe de Bentinho, personagem central e narrador do romance:

Minha mãe era boa criatura. Quando lhe morreu o marido, Pedro de Albuquerque Santiago, contava trinta e um anos de idade, e podia voltar para Itaguaí. Não quis; preferiu ficar perto da igreja em que meu pai fora sepultado. Vendeu a fazendola e os escravos, comprou alguns que pôs ao ganho…”.

Existirá melhor retrato, na literatura brasileira, da condição dos escravos, reduzidos a coisas que não têm a propriedade do próprio nome ou obrigados a ganhar na rua o sustento dos seus senhores?

 Romances finais

Os dois últimos romances de Machado – Esaú e Jacó, de 1904, e Memorial de Aires, de 1908 – talvez sejam menos importantes para verificar a visão do autor sobre a escravidão, pois foram escritos bem depois da Abolição. Mesmo assim, merecem, um olhar.

Os gêmeos da Baronesa de Santos têm um ponto em comum, além da aparência, em Esaú e Jacó, é a emancipação dos escravos, ainda que por razão diversa: para Pedro, um ato de justiça, e para Paulo, o início da revolução

E o próprio Machado disse, em discurso em São Paulo, no dia 20 de maio de 1888:

“A abolição é a aurora da liberdade; esperemos o sol; emancipando o preto, resta emancipar o branco“.

Já em Memorial de Aires, a mentalidade escravocrata da época da abolição tem sua mais crua expressão na narrativa do Conselheiro Aires narra, em seu diário, no dia 10 de abril de 1888, quando comenta a viagem do barão de Santa-Pia, pai de Fidélia, ao Rio de Janeiro, nas vésperas da Lei Áurea, para visitar seu irmão, o desembargador Campos:

“O motivo da vinda do barão é consultar o desembargador sobre a alforria coletiva e imediata dos escravos de Santa-Pia. Quero deixar provado que julgo o ato do governo uma espoliação, por intervir no exercício de um direito que só pertence ao proprietário, e do qual uso com perda minha, porque assim o quero e posso.”

Escravizadas

A biógrafa Lúcia Miguel-Pereira chama atenção para dois contos em que o escritor aborda a questão da escravidão. Em “Pai contra mãe”, que está em Relíquias da Casa Velha, de 1906, onde é personagem a mulata Arminda, por exemplo, ele descreve os aparelhos de “disciplinamento” dos escravos ao longo dos cinco parágrafos iniciais:

“A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos (…) Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca (…) Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel (…)

Leia a história de Anastácia. (em breve)

“O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal (…)

Há meio século, os escravos fugiam com frequência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida (…) o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se, entretanto.(…)”

“Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse (…) Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor da lei contra quem o acoitasse.

“Ora, pegar escravos fugidios era um ofício do tempo (…). Não seria nobre, mas por ser instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implícita das ações reivindicadoras (…)”

O que justifica essa introdução é o fato de que o personagem principal do conto é, precisamente, um caçador urbano (não um capitão-do-mato) de escravos que fugiram. Como quase sempre, Machado escolhe um ângulo inesperado: a tragédia de Arminda é vista através da história de seu caçador, que tem uma situação familiar quase simétrica à de sua vítima.

Já o conto O Caso da Vara, no livro Páginas Recolhidas, de 1899, o fugitivo é um branco – e Lucrécia é castigada por rir de uma anedota. Sua senhora, que se escangalhou de rir com a mesma anedota, não permite essa liberdade à escrava. O branco é absolvido pela fuga, mas à custa de sua covardia, de tornar-se cúmplice de uma injustiça, mais provavelmente de uma barbaridade.

Obra jornalística

Um trecho de matéria escrita para o Diário do Rio de Janeiro, publicada em 25 de julho de 1864, confirma sua posição sobre a situação dos negros”:

“Era um leilão de escravos. Na fileira dos infelizes que estavam ali de mistura com os móveis, havia uma pobre criancinha abrindo olhos espantados e ignorantes para todos. Todos foram atraídos pela tenra idade e triste singeleza da pequena. Entre outros, notei um indivíduo que, mais curioso que compadecido, conjeturava a meia voz o preço por que se venderia aquele semovente.

Travamos conversa e fizemos conhecimento (…)

Minutos depois começou o pregão da pequena. O meu indivíduo cobria os lanços, com incrível desespero (…)

O preço definitivo da desgraçadinha era fabuloso. Só o amor à humanidade podia explicar aquela luta da parte do meu novo conhecimento (…)

O comprador não me desiludiu, porque, apenas começava a espreitá-lo, ouvi-lhe dizer alto e bom som:

– “É para a liberdade!…

Em outra matéria jornalística, publicada pela Ilustração Brasileira, em 1° de outubro de 1876, por ocasião dos cinco anos da Lei do Ventre Livre

– Hoje os escravos estão altanados (…) Se a gente dá uma sova num, há logo quem intervenha e até chame a polícia. Bons tempos os que lá vão! Eu ainda me lembro quando a gente via passar um preto escorrendo em sangue, e dizia: “Anda diabo, não estás assim pelo que eu fiz!” 

E, de novo, como em sua literatura, ele se colocar no ponto de vista do fariseu, dos hipócritas que pululavam na sociedade da época, reforçando uma das características mais marcantes do seu estilo, vinculado à sua ironia.


Fontes: livro Machado de Assis Afrodescendente, de Eduardo Assis Duarte, Revista Época nº 541, Toda Matéria, Brasil Escola, Hora do Povo

No site do Ministério da Educação é possível uma imersão na obra deste pioneiro.

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