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InícioLiniker, histórica! Primeira artista trans, negra e brasileira a vencer um Grammy Latino

Liniker, histórica! Primeira artista trans, negra e brasileira a vencer um Grammy Latino

Ela é símbolo de avanço histórico em termos de representatividade e inclusão, de reconhecimento da arte, da luta e da visibilidade trans.

Liniker ganhou o prêmio de Melhor Álbum de MPB, com Indigo Borboleta Anil (Imagem: Divulgação)
Liniker ganhou o prêmio de Melhor Álbum de MPB, com Indigo Borboleta Anil (Imagem: Divulgação)

A conquista do pioneirismo data de 17 de novembro de 2022, uma noite de quinta-feira. Durante o anúncio dos ganhadores da premiação mais importante da música latina, a artista é declarada a vencedora na categoria Melhor Álbum de Música Popular Brasileira com o disco Indigo Borboleta Anil.

Deixando as lágrimas brotarem de seus olhos, ela sobe ao palco do Mandalay Bay Events Center, em Las Vegas, nos Estados Unidos, para receber o prêmio. E, com o seu primeiro Gramofone Dourado nas mãos, se apresenta ao público em inglês e espanhol:

“Eu sou Liniker, uma cantora, compositora, atriz brasileira. E hoje algo histórico acontece na história do meu país. É a primeira vez que uma artista transgênero ganha um Grammy. Muito obrigada a toda a minha equipe que esteve comigo desde o começo, sonhando junto. Estou muito feliz.”

Aplaudida de pé pelo público presente na premiação, Liniker é cumprimentada também, via redes sociais, pelo presidente eleito do Brasil para o período de 2023 a 2026, Luiz Inácio Lula da Silva.

Grammy Latino 2022

Os indicados desta edição foram selecionados entre mais de 18 mil inscrições em 53 categorias e refletem a grande variedade de artistas que lançaram gravações entre 1º de junho de 2021 a 31 de maio de 2022.

Leia no final do texto outros detalhes sobre o processo de escolha da premiação.

A premiação contempla apenas músicas inéditas com um percentual mínimo de 51% da letra em espanhol, português ou qualquer um dos dialetos indígenas da América Latina.

Neste cenário, Liniker participa da disputa concorrendo com ícones da MPB, como Caetano Veloso, Criolo, Marisa Monte, Ney Matogrosso, Ludmilla, João Donato e Jards Macalé.

Celebração pura

Em Araraquara, cidade do interior paulista, nasce em 3 de julho de 1995 Liniker de Barros Ferreira Campos. No meio de uma família de músicos, a criança cresce no ritmo do samba e do samba rock, ao mesmo tempo que traz nonome uma homenagem ao futebolista inglês Gary Lineker, artilheiro da Copa do Mundo de 1986.

Liniker (Imagem: Reprodução | Pantene)
Liniker (Imagem: Reprodução | Pantene)

Mas sua voz fala mais alto que os seus pés. Ela quer saber de música e não de futebol! A timidez, entretanto, contém a veia da artista até a adolescência. Entrar para um curso de teatro deu início ao seu florescer. 

Tim Maia?!

Em 2015, aos 20 anos, ela é a líder da banda Liniker e os Caramellows. O grupo investiu todo o dinheiro que tinha para gravar três músicas e lançar o EP Cru. Em uma semana, os 13 minutos e 36 segundos de música – distribuídos entre Zero, Louise du Brésil e Caeu – foram escutados mais de 5 milhões de vezes.

A imprensa especializada anuncia a cantora de 19 anos em processo de transição de gênero como “o novo Tim Maia” e exalta sua potente voz de cantora de soul pontuada pela rouquidão discreta que nada mais era do que resquícios de uma gripe mal curada.

Um ano depois, o grupo transforma cartas de amor nunca enviadas de Liniker em música e se consagra de vez com o lançamento do primeiro disco, Remonta, gravado por meio do financiamento coletivo.

Desta vez, não só o disco ganha atenção da imprensa estrangeira, mas a figura andrógina da cantora “negra, pobre e periférica”, “confundindo” características femininas e masculinas em um único ser – encanta o público com letras sensíveis em arranjos pouco convencionais – só em 2018, foram 45 shows fora do Brasil.

Autenticidade e Poder

Sua identidade visual andrógina, aliás, também começa a ser construída quando Liniker ingressa na Escola Livre de Teatro.

E ela mistura turbante, saia, batom e bigode em suas performances musicais que incorporam elementos cênicos à sua voz “ora rouca e grave, ora limpa e aguda, que formata uma black music brasileira, mas recheada de elementos pop”, como define a revista mineira O Tempo.

Ou como destaca a revista Rolling Stone Brasil, “desconstrói de forma enfática os códigos imputados ao sexo masculino, sendo que, como intérprete e pessoa, não se define como homem, nem como mulher, sendo um exemplo de pessoa não-binária; enquanto seu “vozeirão imprime autenticidade e poder” às canções que interpreta. 

Ao questionar a artista acerca do pronome de tratamento pelo qual prefere que lhe refiram, Liniker responde que prefere o pronome feminino: 

“Dizer ‘ele’ me deixa muito na caixinha do masculino”.

“Ser uma mulher com um pau é revolucionário”

Este é o título da matéria da Marie Claire com Liniker, publicada em março de 2019. Na época, com 23 anos, ela já é uma das maiores revelações da música brasileira

Na época, constava da apresentação desta mulher trans e uma das principais vozes do movimento LGBTQIAP+, turnês no Brasil inteiro, nos Estados Unidos, Colômbia, Angola e 16 países da Europa, além do lançamento do segundo álbum Goela Abaixo, com os sucessos Calmô e Intimidade

Liniker (Imagem: Reprodução | Marie Claire)
Liniker (Imagem: Reprodução | Marie Claire)

No início de 2020 em entrevista à revista Rolling Stone, Liniker e Barone, baixista e produtor do grupo, anunciam a separação de Liniker e os Caramelows.

Uma produção independente como o anterior, contemplado com o edital Natura Musical, gravado na estrada, na Alemanha, em Lisboa, em sua casa em São Paulo e em um estúdio em Araraquara. Nas palavras da cantora, “um disco muito vivo, solar, do signo de áries” – sim, ela faz o mapa astral de seus trabalhos antes de apresentá-los ao público.

Ninguém imaginava que, no ano seguinte, em entrevista à revista Rolling Stone, Liniker e Barone, baixista e produtor do grupo, anunciariam a separação de Liniker dos Caramellows.

Vida íntima

Mas voltando à Marie Claire, na entrevista, Liniker conta como é ser quem é.

Seu pai foi ausente até ela tornar-se famosa… Apareceu no camarim ao final de um show… “Ele teve 22 anos para dar um telefonema, querer saber da escola, dos meus sonhos…”, desabafou faz três anos. 

Liniker sabe que não foi concebida por amor:

“Foi só uma noite, minha mãe tinha 18 anos. Ele disse: ‘Se vira’! E ela me teve com toda a coragem, garra. Todas as dificuldades de ser uma mãe sozinha, pobre, negra, periférica. Quando eu tinha 5 anos, ele pediu um teste de DNA”.

Liniker usa camisa Apartamento 03, corset Madame Sher, sandálias Eurico e brincos Ara Vartanian (Foto: Mariana Maltoni)
Liniker usa camisa Apartamento 03, corset Madame Sher, sandálias Eurico e brincos Ara Vartanian (Foto: Mariana Maltoni)

A artista, embora tenha nascido com o sexo biológico masculino, sempre soube que era mulher, mas sentia culpa. Vivendo no interior paulista, não via pessoas trans. O teatro, de novo, abriu seus olhos:

“Custei a entender que podia ser outras coisas, ter outro corpo”.

Um processo de desconstrução que aconteceu com a família inteira, lembra Liniker: 

“Acho que todos crescemos com essa mudança. Porque o processo de desconstrução não é só meu. Todos têm de lidar com outra realidade, se adaptar, se corrigir na hora de falar comigo. Às vezes, ainda escorregam e tenho de lembrá-los que sou “a”, não “o” Liniker. Mas estou confortável com isso porque vejo que eles estão se esforçando (…) A coisa muda quando você vê sua filha na TV”.

E não é diferente na cidade onde nasceu. Ela conta que quando trabalhou no Sesc Araraquara, como contadora de histórias, ninguém lhe oferecia um copo d’água. Mas, agora, como artista, tem camarim especial. “Se eu fosse uma vendedora de loja, trabalhasse numa lanchonete ou me prostituísse, seria diferente…”

Alguma mágoa?

Não! Liniker salienta que histórias como a dela serão sempre um convite para que as pessoas entendam seus preconceitos e reflitam sobre eles.

E é neste contexto que Liniker afirma que “ser uma mulher com um pau é revolucionário”

Para ela, a feminilidade não está na vestimenta, nos hormônios… 

“Claro que são ferramentas de legitimação importantes, mas cada um tem o seu tempo. (…) Sei quem sou, o que quero, para quem estou escrevendo, para quem estou cantando (…) para quem não tem ou não teve acesso, para quem veio de onde eu vim.”

Sobre afeto, seu olhar é para a sua condição de mulher preta trans:

“Para as mulheres negras, o afeto é sempre muito negligenciado, é sempre muito frágil. Imagina sendo uma trans? A gente está na última fila do afeto. Nunca está de mãos dadas na rua, nunca é apresentada para a família… As taxas de feminicídio com mulheres negras no Brasil são gritantes e ainda somos o país que mais mata trans”.

Pessoalmente, ela sente que, “na maioria das vezes, as pessoas não querem a Liniker crua, com remela no olho, com bafo. Querem a cantora, não a pessoa física”. Isso gera carência. “Por mais que eu seja cantora, tenha fama, grana, visibilidade, o afeto me é negligenciado”. 

Primeira pessoa do singular

Em 9 de Setembro de 2021, Liniker lança seu premiado primeiro álbum solo, Indigo Blue Anil, com as colaborações de Milton Nascimento e Tássia Reis. 

Não por acaso, ela é a artista brasileira com mais indicações ao Grammy Latino 2022. Além de ‘Melhor Álbum de MPB’, concorre nas categorias ‘Melhor canção em língua portuguesa‘, por Baby 95, co-autoria com Tássia Reis, Tulipa Ruiz e Mahmundi, e ‘Melhor álbum de engenharia de gravação’.

Quando das indicações, a artista comenta em seu Instagram:

“É tudo fruto de muito trabalho, de um processo de quase dois anos para fazer o disco dos meus sonhos, o meu disco de cura, meu álbum solo, meu eixo, meu azul. Cada detalhe foi pensado, construído e eu trabalhei. E eu trabalho para servir o meu melhor sempre.”

E a ativista vai além, chamando atenção para a questão de raça e gênero que atravessa o seu existir:

“ Sou uma artista brasileira, sou uma mulher, uma compositora, sou filha, irmã, sou gente, sou música e sou grata pelo reconhecimento do meu trabalho numa indústria que, diariamente, invisibiliza trabalhos autorais de muitas mulheres, principalmente quando estas são negras, retintas como eu, transexuais, talentosas, excelentes em seus trabalhos.” 

Registre-se: o pioneirismo conquistado por Liniker acontece só na 23ª edição do Grammy Latino, em pleno século XXI!!!

A escolha no Grammy

Uma série de passos precede a noite mais importante da música. O Grammy é o único prêmio reconhecido por profissionais da indústria fonográfica, como compositores, cantores, produtores, engenheiros de som e mixagem.

Os eleitores no Grammy incluem artistas, compositores, produtores, engenheiros, instrumentistas e qualquer outro membro da indústria fonográfica.

Para fazer parte desse seleto grupo é preciso uma recomendação de dois profissionais de peso do setor; é exigida comprovação de carreira focada na indústria da música e ter, pelo menos, 12 singles distribuídos comercialmente e com créditos verificáveis.

Um comitê seleto é responsável por analisar as inscrições enviadas para as 86 categorias e organizá-las. Os trabalhos são enviados aos membros que votam em gêneros específicos, de acordo com suas experiências, ou seja: alternativo, pop, R&B, rap, rock etc.

Um segundo grupo de membros é responsável por avaliar os trabalhos de composição, arranjo, engenharia e produtor do ano.E um terceiro grupo se encarrega de avaliar as obras classificadas como: áudio imersivo, embalagem, gravação remixada, histórico, notas do álbum.

Após a primeira rodada de votação, são anunciados os indicados aos prêmios. Isto é seguido por uma segunda e última rodada de votação onde o vencedor de cada uma das categorias é escolhido.

Cidadã soteropolitana

Mais um pioneirismo datado – 12 de março de 2024: A Câmara Municipal de Salvador, capital da Bahia, capital afro do Brasil, concede, após votação unânime, o título de cidade soteropolitana a Liniker. Assim, ela se torna também a primeira mulher trans a receber a honraria.

No documento que justifica a escolha da artista, a co-vereadora Laina Crisóstomo (PSOL-BA) destaca a sua representatividade a outras pessoas transgênero ou não.

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Fontes: G1A Cidade, Correio Braziliense, Capricho, O Fuxico, Wikipedia, Revista Marie Claire, CNN Brasil, Sociedade Online

Texto elaborado em 1º de dezembro de 2022, atualizado em 25 de abril de 2024

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