Corpo-território
– Célia Raimundo*
Célia Raimundo (Imagem: Acervo Pessoal)
Espaço não somente ocupado por um corpo, mas também por memória, sentimento e resistência. Ser corpo-território é dentro da invasão fazer ocupação e ressignificar o espaço. É dar uso à terra, é para além de ser corpo: ser território usado. É ocupar o latifúndio improdutivo e gerar vida. Ser corpo-território é isso… Uma busca constante pelo ser, sendo.
Licença professor, me permite assistir sua aula?
Fora assim na ressignificação do meu corpo, que retomo aquele território, que (re)parto a partir do que sou e de quem me faço. Retomo minha cadeira azul, onde ali, me sento com um papel e uma caneta emprestada do vizinho do lado…
Me tomo a reescrita. Reescrita das diversas dimensões que trafegam o corpo-território ou melhor o território-corpo que discorre ali.
Gallo não somente apresenta uma síntese bibliográfica de alguns braços de sua pesquisa. Para além ele apresenta a leitura, a potente leitura, que o brasileiro Milton Santos, prêmios Nobel de Geografia e Vautrin Lud, um reconhecimento internacional de sua influência na disciplina geográfica, nos tece sobre território.
A disciplina é Geografia do Brasil. E o professor retira de dentro da bolsa o que carrega como escudo, armadura. É o mesmo livro de quase 10 anos atrás. Aquele livro já faz parte do corpo dele. Há alguns anos atrás, ele me ensinou, que aquelas palavras, ali grafadas, também fazem parte do meu.
Me recordo das palavras um dia lidas. na página 19, de seu livro, A Natureza do Espaço, publicado em 2001:
“Por território entende-se geralmente a extensão apropriada e usada. Mas o sentido da palavra territorialidade como sinônimo de pertencer àquilo que nos pertence […] esse sentimento de exclusividade e limite ultrapassa a raça humana e prescinde da existência do Estado. Assim, essa ideia de territorialidade se estende aos próprios animais, como sinônimo de área de vivência e de reprodução. Mas a territorialidade humana pressupõe também a preocupação com o destino, a construção do futuro, o que entre os seres vivos, é privilégio do homem.”
Pertencer àquilo que nos pertence
Acho que é exatamente esse o movimento de onde parto, o de me territorializar naquilo que me pertence, no corpo-território que sou. No território que me faço corpo. No corpo que trafega também tais territórios.
E território me fiz nessa jornada.
Ele enuncia em uma de suas falas, que ressoam em minha memória, que território é: o espaço-vivido. Me faço, então, enquanto vivência. Me faço então enquanto espaço. Sou espaço-vivido, e também espaço habitado.
Me ensinaste que sou espaço vivido, pois espaço-vivido é para além do viver, é também o ser, no encontro com o ser, passo a poder, enfim, habitar em mim. Ser corpo-habitado. Danço em meio as palavras que performam contemporaneidade, num ir e vir do tempo, ali sentada vejo o passado e o presente, rugosidades, lado a lado.
“Chamemos de rugosidade ao que fica do passado como forma, espaço construído, paisagem, o que resta do processo de supressão, acumulação, superposição, com que as coisas se substituem e acumulam em todos os lugares. As rugosidades se apresentam como formas isoladas ou como arranjos”
Esclarece Milton Santos, conhecido por suas contribuições na geografia crítica e nos estudos urbanos.
No vasto palimpsesto (papiro ou pergaminho cujo texto primitivo foi raspado, para dar lugar a outro) da existência, meu corpo rompe com a técnica, entende as limitações da razão, trafega para além do tempo e nas rugas da memória encontra ali na intencionalidade, a emoção.
Suas palavras dizem que Milton Santos é concreto. Que o Federalismo é concreto. Pode até ser, mas a grafia impressa não é. O corpo que performa. Também não. São territórios emocionados.
Quem carrega Milton Santos desenvolve no corpo, territorializa em si a emoção que em palavras a teoria não conseguiu ser capaz de imprimir.
Entender que território usado é sinônimo de espaço geográfico. É também entender que território, e espaço geográfico, é também corpo. Corpo-território.
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Quando escrevo, convido Milton Santos, pioneiro na análise dos sistemas técnicos e suas implicações espaciais, para prosear comigo.
Muitas vezes ele está ali somente ouvindo meus delírios, tentando entender as loucuras que um tal professor chamado Gallo fez ao me apresentar seus escritos, afinal agora, Milton Santos não sai da minha boca.
Não somente, boca, pensamento, espírito. E CORPO.
Num arcabouço de um território único e diverso, me costuro como quadro. Como o quadro único onde a História ali se dá. Eu sou Espaço. Eu sou espaço-geográfico. Eu sou Território. Eu sou Oxum.
Milton Santos viveu entre nós de 1926 a 2001.
*Célia Fernanda Sampaio Raimundo, professora. Ao parar para refletir sobre quem sou, muito me vem na mente a frase de Audrey Lord: “Sem povo, não há libertação”. Eu sou isso. Então, eu sou meu povo. Eu sou uma mulher preta, que carrega a missão, ancestral, de matrigestar nosso povo, para então, verdadeiramente, sermos livres. “De pé oh raça poderosa”.
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artigo escrito em agosto de 2023
A ponte entre os terreiros e o Sistema Único de Saúde
No mesmo dia em que a professora Célia Fernanda entregava seu texto sobre Corpos-território para a nossa coluna Sem Mordaça, o site da revista Carta Capital informava a decisão do Conselho Nacional de Saúde de reconhecer os terreiros como equipamentos promotores de saúde e cura complementares do SUS – Sistema Único de Saúde, corpos-território.
Pouco se fala, mas os diferentes espaços, comunidades, templos de matriz africana e indígena, no Brasil, sempre estiveram no lugar de um primeiro degrau para a cura de problemas não só espirituais, mas também emocionais.
Dentro desses espaços, pais e mães de santo oferecem um ombro amigo para dores que podem levar ao adoecimento físico e mental. “Se a cabeça não está em sintonia com a vida, com as relações afetivas, o corpo adoece”, destaca Maria Heloisa de Oxum, Ialorixá e técnica de enfermagem do Ilê Axé Alaketu Oju Oxum, na zona leste de São Paulo.
A decisão está em alinhamento com a Constituição de 1988 e a Lei Federal 8.080/1990.
Contudo, como o terreiro é um corpo-território-negro, o racismo e a falta de divulgação de seu papel biopsicossocial têm impedido o reconhecimento pleno de seu poder de cura.
A Resolução 715 do CNS é de 20 de julho de 2023.
Fonte: Carta Capital
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