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Capa do artigo Moda e Poder (Imagem: Reprodução)

Com o dandismo, o negro “vestiu-se de branco” para invadir espaços que lhe são negados desde que chegou, trazido pela força, à Europa e às Américas.

O que este artigo responde:
Qual é a importância da moda para o povo negro? Como a moda europeia foi incorporada pelo homem negro? Quando tem início o dandismo negro? Quais as características do dandismo negro? Quem são os ícones do dandismo negro? Existem estilistas que trabalham a estética do dandismo negro? Quem são os ícones do dandismo negro? O que a androginia tem a ver com o dandismo negro? Como o dandismo negro se manifestou ao longo dos séculos?

É comum ouvirmos que “o corpo fala”. Mas em se tratando de povo preto, tudo “fala” em nós, o que inclui a roupa que vestimos. Arrancados do berço, da mãe África, tiraram de nós o direito à credo, a nome, a família… 

Nos colocaram nus em navios que atravessaram o Atlântico – pelo menos, assim imaginaram. Muitos de nós já nos reconhecemos como corpos-território. Em nós, vivos – apesar dos grilhões, da árvore do esquecimento, do batismo cristão -, a memória, o coração, o sangue correndo nas veias…

Em plena vigência do sistema escravocrata, os chamados “escravos de luxo” – escravizados domésticos, símbolo de riqueza de quem os “possuía” -, por determinação de seus senhores, eram educados com modos e posturas europeizadas, vestidos com trajes sofisticados, para servirem de acompanhantes. Isso, na Europa, nos séculos XV e XVI.

Vivendo em sua maioria com seus senhores, fora das senzalas, esses escravizados incorporam símbolos da moda masculina europeia para desmontar estereótipos sobre si mesmos – reproduzem referências de elegância e refinamento do homem branco de posse!

E, assim, surge o “dandismo negro”, movimento no qual escravizados e trabalhadores negros livres definem sua própria identidade, combinando roupas finas, atitude e inteligência – mesmo em fuga, eles levavam consigo parte do guarda roupa de seus senhores.

Decretada a abolição nos Estados Unidos,, o “dandismo” segue dando as cartas da moda masculina. Empoderando o homem negro, atravessa os séculos e se faz presente nos dias atuais. 

Leia o artigo Dandismo negro, a origem e acompanhe a linha do tempo O Dandismo negro atravessa os séculos!

Consciência negra

Dândis negros black dandiesforam muito além da moda. Influenciaram a literatura e a dramaturgia, a estética, nossos modos de ser – que chamam de “cultura negra” -, a política… 

Sim, black dandies chegaram ao poder, registra Richard J. Powell no artigo Sartor Africanus, de 2001. E ele cita o estadista americano Frederick Douglass (1818-1895), sempre vistoso e elegantemente trajado, que escapa da escravização, integra o movimento abolicionista e, com sua poderosa oratória, se torna consultor de Abraham Lincoln, então presidente dos Estados Unidos. Isso, entre os anos 1861 e 1865.

Dark Princess

Um outro “divisor de águas” na evolução do dandismo como movimento político acontece com o término da primeira guerra mundial (1914-1918), com uma série de releituras históricas e manifestações privilegiando a cultura e a história dos afro-americanos. 

Entre os grandes articuladores desse momento de resistência negra, destaca-se o sociólogo William Edward Burghardt Du Bois, que vive entre 1868 e 1963 – mais conhecido como W.E.B. Du Bois – um dos autores fundamentais do que hoje se compreende como “consciência negra”.

Dândi de rara elegância, Du Bois assina romances históricos sobre ser negro, entre eles, Dark Princess, envolvendo a beleza das pessoas de cor em todo o mundo e a questão do dandismo negro.

Revolução do povo escuro

Matthew Towns, o protagonista de Dark Princess, é descrito como um homem elegante trajado de terno, luvas, bengala e gravata carmesim escuro – a imagem do próprio Du Bois -, que se manifesta por uma política inclusiva e questionadora da exclusão imposta aos negros de seu tempo.

W.E.B. Du Bois, um ícone da moda e poder, retratado em um traje elegante e formal em 1907, destacando sua influência como intelectual e ativista.
W.E.B. Du Bois, 1907, impressão em prata gelatinosa (Imagem: James E. Purdy | National Portrait Gallery)

Ativista-dândi negro, Matthew Towns lidera uma revolução do Povo Escuro do Mundo, na qual as pessoas de cor negra podem reivindicar seu lugar e seus direitos de igual para igual – uma narrativa considerada arrojada demais para 1928, ano de sua publicação. 

Resumindo: o romance não foi bem recebido. Os críticos não gostaram do erotismo do livro e o consideraram uma tentativa fracassada de realismo social. Mas W.E.B. Du Bois não se deixou abalar. Dark Princess sempre foi o seu livro preferido – ele escrevia ficção porque, na época, não era possível explorar os temas que queria em histórias não-ficcionais. 

Desde 2024, Dark Princess entrou em domínio público nos Estados Unidos.

Profeta

Matthew Towns, entretanto, não é o primeiro personagem dândi negro da literatura. Três anos antes, em 1925, o filósofo, educador e escritor Alain LeRoy Locke (1886-1954) lança a antologia The New Negro: An Interpretation, que reúne, em iniciativa pioneira, ficção, poesia e ensaio de e sobre africanos, com especial incidência na produção afro-americana.

LeRoy Locke é outro dândi negro, visto como profeta da democracia social e racial nos Estados Unidos, o cérebro por trás do Harlem Renaissance, movimento cultural da “nova” literatura negra, que se estende por todas as regiões urbanas de Nova York, na década de 1920.

Alain LeRoy Locke, filósofo e líder do movimento Harlem Renaissance, retratado com traje formal, simbolizando moda, intelectualidade e poder.
Alain LeRoy Locke, retrato de 1906-1920. (Imagem: Schomburg Center for Research in Black Culture, The New York Public Library)

O Harlem Renaissance é uma espécie de “modernismo negro americano” que se inicia no Harlem, mas toma todas as regiões urbanas dos Estados Unidos, consolidando a base do que hoje fundamenta a visão afirmativa e identitária sobre a cultura afro-americana. 

Quanto a LeRoy Locke, nasce na Pensilvânia, se forma em Massachusetts, na Universidade de Harvard, em Inglês e Filosofia, o que não impede de ver mais tarde o seu acesso barrado, devido à sua cor de pele, em muitas das 38 faculdades de Oxford, a mais antiga universidade do mundo anglófono e a segunda mais antiga da Europa. 

À margem da vida académica, destaca-se desde muito cedo pela sua militante divulgação e promoção de artistas, escritores e músicos africanos e afrodescendentes, em jornais, revistas, livros ou brochuras de divulgação. E tudo isso o torna uma das figuras mais eminentes da história de seu país.

Eles tudo podem!

A imagem do dândi negro é tão poderora que ainda hoje é adotada por artistas contemporâneos – especialmente músicos oriundos da cultura hip hop, quando alcançam fama mundial -, que circulam em meios onde, antes, era inimaginável a sua presença. 

Com as ferramentas de vestimenta do opressor, o dândi negro evoca a androginia – ambiguidade em relação à sua aparência -, com a mensagem paradoxal, contraditória, que suas roupas transmitiam e transmitem, ainda, quando usadas por um corpo negro.

Lewis Hamilton com terno em tons pasteis apoiado sobre mesa rústica posando em frente a um fundo de cor bordô intenso
Lewis Hamilton (Imagem: Reprodução | Instagram)

Eles tudo podem! Elegância com feminilidade, elementos do street, da cultura negra americana. E mais: cores inusitadas e estampas, que confrontam a sobriedade da moda masculina clássica.

Roupas de qualidade, ajustadas e com caimento perfeito expressam bom gosto, referência cultural e poder aquisitivo; impõem outro olhar sobre o homem negro, ao mesmo tempo em que ele se coloca em outro lugar – nem calado nem serviçal.

Poder e ousadia

Prince é o maior dandy andrógino moderno. Jimi Hendrix é outro que apreciava uma androginia refinada em peças de roupas – estampas floridas, babados, veludo, lenços esvoaçantes… Os dois se utilizavam desses elementos para trazer feminilidade à sua imagem.

Prince no palco, posando com braços abertos, veste paletó roxo sobre camisa de cor bordô escuro
Prince (Imagem: Reprodução | Reuters)

Nos anos 1980, Dapper Dan, considerado o maior alfaiate da história da moda negra, oficializa o look dandy para os artistas e público do hip hop ao abrir sua confecção de roupas customizadas e unir o renome de grifes européias ao estilo de rua dos bairros negros de Nova York.

Peça de resistência

Quarenta anos depois, em agosto de 2020, em plena pandemia causada pelo coronavírus, o dandismo se faz presente, quando, em atitude política, homens negros, elegantemente trajados, tomam as ruas de várias cidades dos Estados Unidos

A ação, conhecida como flash mob, produzida pelo influenciador cultural Andre Broussard, tinha um objetivo: desconstruir a imagem pejorativa causada pelo racismo e reforçada com o assassinato de George Floyd. 

Na ocasião, Broussard aponta o dedo para a mídia que, muitas vezes, retrata os homens negros sob uma imagem negativa. Daí o flash mob com homens negros usando ternos de grife::

 “Ternos significam longevidade. As pessoas sempre vão usar ternos… em fotos da década de 1920 e … de 2020”.

Quem veste o que?

E, de fato, os afrodescendentes nas Américas sempre tiveram no terno uma importante indumentária que, ressignificada, simboliza afirmação, resistência e inclusão em sociedades de supremacia branca. 

A vida é circular, em espiral… No passado, se vestir com o senso estético de um dândi era uma maneira de ironizar as leis, combater a opressão – e nada mudou. Mesmo que se pense que é apenas estética, o nosso existir, por si só, é revolucionário.

O tempo passa e incomoda o nosso modo de ser e estar! Um homem preto de terno chama mais atenção. E não só por ser mais bonito, por agregar potência, mas pela ousadia! Não é o terno, de origem europeia, que veste o homem. É o homem negro que, na essência, empresta status ao terno!

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Fontes: GV Cult – Origens; GV Cult – Harlem, Mundo de Amanhã, FFW, Steel the Look, Eolor, Medium, The New Negro, Wikipédia – En

Escrito em 17 de janeiro de 2025

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