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Afrofuturismo, a ideia genial

Gente preta, civilização avançada, conhecimento tecnológico de vanguarda, cientistas brilhantes, naves voadoras, mitologia, resgate ancestral, poder…

Obra do artista queniano Cyrus Kabiru (Imagem: Smac Gallery)
Obra do artista queniano Cyrus Kabiru (Imagem: Smac Gallery)

Muitos consideram ‘afrofuturismo’ um palavrão. Só que não. Quem amou e se impactou com o filme Pantera Negra, de 2018, ou se deixa embalar pelo som de Beyonce, de algum modo já sentiu o ‘gostinho’ desta ‘futuroterapia’, deste modo de viver o tempo presente. 

Pantera Negra é um autêntico representante do afrofuturismo para as massas – sua bilheteria superou um bilhão de dólares -, abordando a cultura africana e os embates sociais com as vestes da ficção científica.

Beyonce, não por acaso, é chamada Rainha do Afrofuturismo. No seu trabalho, Black is King, por exemplo, somam-se referências da África antiga e de deidades tradicionais, assim como outras mais contemporâneas. Na espinha dorsal da narrativa, o “quem somos nós”, qual a nossa ancestralidade.

A história

Mas este movimento que possibilita o manipular e apropriar-se dos tempos – passado e futuro – para propor uma subversão do pensamento não está começando agora. Na verdade, inicia-se na metade do século passado.

Invisible Man, de Ralph Ellison, publicado em 1952, é considerado o primeiro marco do afrofuturismo. O livro marca o gênero por proporcionar a reflexão com a mentalidade afrofuturista, embora não ofereça uma perspectiva melhor de futuro à comunidade.

Retrato de Ralph Ellison (Imagem: The Rockefeller Foundation)
Retrato de Ralph Ellison (Imagem: The Rockefeller Foundation)

Como Ellison, a escritora Octavia Butler, as telas de Jean-Michel Basquiat e Angelbert Metoyer, e a fotografia de Renée Cox e o próprio Pantera Negra da Marvel Comics, quando existia só nos quadrinhos, são consideradas manifestações semi-afrofuturísticas, embriões, sementes, do movimento.

Menção honrosa para a estética afrofuturista de Grace Jonescom 73 anos em 2021. A modelo, atriz e cantora ‘escandalizou’ a indústria do entretenimento com seu visual com toques de androginia. 

Força musical

Nas notas musicais e na letra das canções, nos mesmos anos 1950, a abordagem afrofuturista é potente. Sun Ra, o americano do Alabama, junto com The Arkestra, começa a gravar canções baseadas no hard bop com títulos afrocêntricos e temáticos que refletem seu vínculo com a cultura africana antiga, especificamente o Egito, e a vanguarda da era espacial.

Em 1975, George Clinton revive a cultura afrofuturista, levando-a ao grande público por meio dos mitos explicitamente extraterrestres dos músicos do coletivo Parliament-Funkadelic, tendo o álbum Mothership Connection como sua obra-prima.

Show do Parliament Funkadelic, com nave espacial que remete à capa do “Mothership Connection” (Imagem: reprodução)

Um ‘salve’ ao hip-hop de Afrika Bambaata, ao trip-hop de Tricky e à Nação Zumbi que apresentam pitadas do movimento.

Outros músicos influenciados pela mesma tradição incluem os produtores de reggae Lee “Scratch” Perry e Scientist; os eletrônicos Larry Heard, A Guy Called Gerald, Juan Atkins e Jeff Mills.

Destaque para Lotti Golden e Richard Scher – produtores de eletro hip hop para o grupo Warp 9 – que compuseram de Light Years Away (‘Anos luz de Distância’, em tradução livre), um trabalho que exemplifica a influência afrofuturista no hip hop. 

O jornal The Guardian, do Reino Unido, em 14 de maio de 2014, descreveu Light Years Away como ‘pedra angular do afrofuturismo do beatbox’ do início dos anos 1980″, um conto de ficção da antiga visitação alienígena, que também homenageia o filme de Sun Ra, Space Is The Place (O Espaço é o Lugar). É o diálogo no tempo!

O palavrão

O termo ‘afrofuturismo’ foi criado em 1995, pelo acadêmico e crítico cultural branco Mark Dery. Ele publica o ensaio Black to the Future, em que entrevista os escritores afro-americanos Samuel R. Delany, Greg Tate e Trícia Rose e questiona por que há tão poucos escritores afro-americanos que escrevem ficção científica, um gênero que trabalha justamente o encontro com o outro – o estranho numa terra estranha – algo que parece singularmente interessante para tratar de questões próprias dos negros.

Grace Jones, 1984 (Imagem: Robert Mapplethorpe)
Grace Jones, 1984 (Imagem: Robert Mapplethorpe)

Assim aconteceu o despertar para o que já estava acontecendo há, pelo menos, 40 anos e muitos estudiosos, como a cientista social negra Alondra Nelson, começaram a observar o movimento.

Alondra explica o afrofuturismo como uma forma de olhar da pessoa negra que abrange temas de alienação, aspirações para um futuro utópico e destaca que as ‘discussões’ em torno da raça, acesso e tecnologia muitas vezes reforçam afirmações críticas sobre a chamada “divisão digital”, que reflete a desigualdade racial e econômica nas sociedades.

Ao mesmo tempo, o movimento abrange narrativas de ficção especulativa, sobre o futuro e o passado, sempre da perspectiva negra, independentemente da localização geográfica.

“O Afrofuturismo é esse movimento de recriar o passado, transformar o presente e projetar um novo futuro através da nossa ótica negra.”
– Fabio Kabral

Tempo presente

Já no século XXI, uma nova geração de artistas abraçou o afrofuturismo na música, na moda e também no audiovisual, incluindo as cantoras e produtoras Solange Knowles, Rihanna e Beyoncé, da cultura pop, que costumam usar essa influência na identidade visual de seus shows e figurinos, bem como FKA Twigs, representante da música “cult” no movimento, o duo musical Ibeyi e o DJ/produtor Ras G.

Esta tradição continua em trabalhos de artistas como os de Erykah Badu, Missy Elliott, Ellen Oléria, Xênia França, e muitos que incorporaram temas ciborgísticos e metálicos em seus estilos.

Na literatura, pode-se destacar nomes como o de Nnedi Okorafor, cuja novela Bindi venceu um Prêmio Hugo; Steve Barnes, com romances afrofuturistas como Lion’s Blood e Zulu Heart; bem como William Hayashi com a trilogia Darkside, cuja história mostra afro-americanos que viviam secretamente na Lua desde antes da chegada de astronautas,

Leia também a história dos afronautas.

No Brasil, Fábio Kabral, criador de O caçador cibernético da rua 13, resgata elementos da mitologia yorubá, num romance sobre abdução alienígena – metáfora para abordar a escravidão -, em um planeta tecnologicamente avançado que pode lembrar Wakanda, de Pantera Negra.

“Minha ideia é romper com a lógica ocidental e europeia de que o continente africano não tem nada a oferecer e, ao mesmo tempo, trazer uma visão afrocentrada para que as produções ficcionais não sejam sempre histórias de brancos em que os pretos estão ligados ao crime, ou são malandros”, declarou o autor à revista Cult.

Corra Blade!

Jordan Peele pode ser considerado um dos grandes responsáveis pela atual onda afrofuturista. Com Corra!, o cineasta apresentou ideias cravadas em torno do afrofuturismo em um enredo único e abstrato. As reviravoltas e a representação dos brancos valeram o Oscar 2018 de Melhor Roteiro Original.

Depois que o estranho e excepcional terror Corra! saiu, em 2017, chegou ao mercado de entretenimento o revival de Blade, a estreia de Pantera Negra e o sucesso anticapitalista Sorry to Bother You (Desculpe te incomodar) – comédia surrealista sobre organização do trabalho, que marca a estreia do rapper e ativista Boots Riley, como diretor -, além de Hancock, a animação Homem-Aranha: No Aranhaverso e a série de TV Raio Negro.

Sobre Sorry to Bother You, ainda, um parágrafo com parte dos comentários de Briahna Gray, no The Intercept:

“…não é uma história em que os protagonistas escapam de suas condições econômicas ruins por meio do esforço individual (…) se diferencia das clássicas histórias ‘da pobreza à riqueza’ como ‘À Procura da Felicidade‘ – filme emocionante, mas que celebra a jornada de um homem pobre sem criticar a relação entre a concentração de riqueza e a escassez de moradia acessível, ou o absurdo da “meritocracia” que faz a sobrevivência de uma família depender da habilidade do pai de mesmerizar seu entrevistador com um cubo mágico. Sorry to Bother You nos toca porque mostra que não precisamos fazê-lo sozinhos”. 

Para observar: a base do figurino da personagem Detroit, pensado por Deirdra Elizabeth Govan, é “Afropunk-Afrofuturism”.

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Mas Pantera Negra é o exemplo atual e relevante do afrofuturismo do século XXI, misturando fantasia, tecnologia e ciência com questões raciais, sociais, políticas e econômicas, sendo o negro o ponto central da trama.

Mostra a nação de Wakanda, escondida na floresta tropical graças a tecnologias avançadas e exclusivas que permitiram seu desenvolvimento de maneira singular. E vai além do entretenimento ao proporcionar reflexões sobre a sociedade atual.

Nave pousando em Wakanda. (Imagem: Marvel Studios)
Nave pousando em Wakanda. (Imagem: Marvel Studios)

Outro aspecto, embutido na trama, é a diferença de pontos de vista: de um lado, os defensores do protecionismo de Wakanda que acreditam que a saída para o progresso negro é o isolamento, enquanto, do outro lado, há quem entenda que não se pode ignorar o sofrimento de todo o restante dos negros do mundo, que seguem enfrentando questões como pobreza e a violência.

Afrofuturismo +

Janelle Monáe fez um esforço consciente para restaurar a cosmologia afrofuturista na vanguarda do urban contemporary. Seus trabalhos notáveis incluem os videos musicais Prime Time e Many Moons, que exploram os domínios da escravidão e da liberdade através do mundo dos ciborgues e da indústria da moda. Ela é credenciada em um novo Neo-Afrofuturism pelo uso de seu alter-ego inspirado em Metropolis.

Cindi Mayweather, a andróide de Monaé, que se apaixona por humano, incita uma rebelião contra uma sociedade secreta, para libertar cidadãos que caíram sob sua opressão refletindo figuras afrofuturísticas anteriores.

A Sociedade Coletiva de Artes Negras de Wondaland, da qual Monáe é fundadora, declara:

“Nós acreditamos que as canções são naves espaciais. Nós acreditamos que a música é a arma do futuro. Nós acreditamos que os livros são as estrelas”.

E lá, no século passado, Sun Ra e George Clinton já pensavam assim, tanto que criaram seus próprios visuais como seres extraterrestres que resgatam afro-americanos das naturezas opressivas da Terra.

O afrofuturo de Morena Mariah

No Brasil, temos, ainda, a estrategista cultural, mulherista, “catadora de saberes ancestrais” – como se define – Morena Mariah, criadora da plataforma de educação e podcast Afrofuturo.

Ela entende que nossa vida, preta, nossa história, foi interrompida desde o processo de escravização e que a nossa reconexão só vai acontecer quando nos apropriarmos de quem somos na origem.

Morena Mariah (Imagem: Reprodução)
Morena Mariah (Imagem: Reprodução)

Morena Mariah entende que para falar de futuro é preciso olhar, conhecer o passado, recuperar o passado em África:

“A gente só sabe para onde vai quando sabe de onde veio… É preciso saber das memórias da família, do povo preto, para se saber para onde queremos ir, o que vai ser bom, quais estratégias foram criadas pra gente chegar vivo no futuro, vivo e feliz…”

“O potencial humano é a maior riqueza do povo preto. Existe um caos e precisamos passar por isso para construir um futuro diferente, onde cabe todo mundo”.

O tempo, dentro das culturas africanas, não é uma flecha lançada para frente – explica Morena Mariah. Se parece mais com um espiral, e nele vamos sempre retornar para um ponto onde um de nossos ancestrais já passaram.  

“Quando falo de afrofuturismo, o futuro é a última coisa, é a que ocupa a menor parte. Meu trabalho é levar para as pessoas um conhecimento que não é dado em lugar algum; é falar da cultura africana e afro-brasileira.”


Nós por nós.

Acesse a edição “Afrofuturismo, a ideia genial“.


 Fontes: Revista Sala, CanalTech, Wiki-Warp9, Revista Cult, The Intercept,Wikipedia, Uol

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