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Esperança Garcia, o primeiro habeas-corpus

Negra, escravizada, esposa, mãe, católica, advogada reconhecida como a primeira a exercer a função pela Ordem dos Advogados do Brasil – seccional Piauí.

Desenho de Esperança Garcia.
Desenho de Esperança Garcia. (Ilustração: Valentina Fraiz).

“Eu sou uma escrava de Vossa Senhoria da administração do Capitão Antônio Vieira do Couto, casada. Desde que o capitão lá foi administrar que me tirou da fazenda algodões, onde vivia com o meu marido, para ser cozinheira da sua casa, ainda nela passo muito mal. A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho meu sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca, em mim não posso explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que cai uma vez do sobrado abaixo peiada; por misericórdia de Deus escapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar há três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar. Peço a Vossa Senhoria pelo amor de Deus ponha aos olhos em mim ordinando digo mandar ao procurador que mande para a fazenda aonde me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha”

Este o pedido de habeas corpus – em forma de carta -, escrito e assinado por Esperança Garcia em 6 de setembro de 1770, endereçada ao governador da capitania do Piauí. Provavelmente, o mais antigo documento conhecido de reivindicação de uma mulher negra e escravizada a uma autoridade no Brasil.

As leis da época

Para a pesquisa da OAB, foram formados um grupo de advogados e um grupo de historiadores, com o objetivo de entender tanto o contexto histórico em que a carta foi escrita como sua natureza jurídica, dadas as leis da época.

A pesquisa se debruçou sobre as Ordenações Filipinas, leis que vigoravam tanto em Portugal quanto em suas colônias.

Ordenações Filipinas.
Ordenações Filipinas, ratificadas em 1603. (Acervo: Tribunal de Contas de Portugal – Lisboa, Portugal)

Em relação às regras para atuar como advogado, a professora Maria Sueli conta que, nas colônias, qualquer pessoa poderia fazer a defesa de outra pessoa ou de si própria e diretamente para o rei, o que confirma o “ato de advocacia” de Esperança.

Do ponto de vista formal, inclusive, ela se dirige ao governador da província, que cumpria as vezes de representante do rei, responsável por fazer cumprir a Justiça nas monarquias.

E identificou-se também que no direito civil, as Ordenações Filipinas tratavam o escravizado como objeto, que podia ser comercializado, e, ao mesmo tempo, no direito criminal, como pessoa, pois respondia pelos crimes que viesse a cometer.

Além disso, as leis traziam ainda alguns parcos direitos, como limite no número de chibatadas.

Contexto histórico

“Não restam dúvidas de que a Carta de Esperança Garcia se trata de ato de resistência, mas um tipo específico de resistência: uma atuação como membro da sociedade escravocrata que denuncia e pede proteção do Estado, como um habeas corpus, em nome próprio e de outras mulheres que também sofriam maus-tratos.”

Quem atesta são os mesmos pesquisadores da Comissão Estadual da Verdade e da Escravidão Negra da Ordem dos Advogados do Brasil – seccional Piauí (OAB-PI), que classificam a carta como documento histórico na luta por direitos no contexto do Brasil escravocrata no século XVIII.

Conhecimento jurídico

No  dossiê, de 149 páginas, organizado pela advogada Maria Sueli Rodrigues de Souza e pelo historiador Mairton Celestino da Silva, destaca que, apesar de na época não existir o Direito formalmente constituído, a carta de Esperança tem natureza jurídica, uma vez que o texto segue nomenclaturas do Direito que a reconhecem como uma petição.

Carta de Esperança Garcia.
Carta de Esperança Garcia, descoberta pelo historiador Luiz Mott em 1979. (Foto: Paulo Gutemberg).

Esperança demonstra conhecer a função das autoridades, do poder exercido pelo governador na época e dos seus poucos direitos. Sua carta se atém apenas a violações a que foi submetida que desrespeitavam leis como o Decreto 1.695 de setembro de 1869, que proíbe a venda de escravos debaixo de pregão, separar o marido da mulher, o filho do pai da mãe, salvo quando maiores de 15 anos.

Segundo a professora da Universidade Federal do Piauí, a advogada Andreia Marreiro, que participou da elaboração do dossiê, ao escrever a carta reivindicando por direitos, Esperança atua como membro da daquela comunidade política, pedindo nada além do que era legalizado, segundo as leis e costumes da época.

“Esperança Garcia conhecia seu mundo e também os limites que a escravidão e as possibilidades que o direito português poderia lhe oferecer em casos de conflitos” – consta no dossiê.

Singular e plural

Outro aspecto jurídico da carta – apontam os pesquisadores – é a natureza coletiva de suas reivindicações. Ainda que o texto tenha sido escrito em primeira pessoa, Esperança pede respeito aos poucos direitos que ela e seus companheiros de infortúnio dispõem, como o de se conservarem cristãos, constituírem família e batizarem seus filhos na fé católica.

É dos maus-tratos que ela e suas companheiras sofriam na fazenda de Couto e do fato de estar longe de seu marido e não poder batizar sua filha que Esperança Garcia reclama ao governador.

Dessa maneira, se utiliza das doutrinações impostas pelos jesuítas, como a necessidade dos batismos e dos casamentos entre escravizados, como estratégia para sensibilizar seus superiores.

E encerra a carta escrevendo:

Peço a Vossa Senhoria pelo amor de Deus ponha aos olhos em mim ordinando digo mandar ao procurador que mande para a fazenda aonde me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha.

O pioneirismo

Há que se ter paciência. Há que se perseverar. Foram precisos 209 anos para que o documento fosse encontrado no arquivo público do Piauí pelo pesquisador e historiador Luiz Mott, o que aconteceu em 1979. Mais 38 anos para que Esperança conquistasse um lugar na história não só do negro, mas do Brasil.

No total, 247 anos, para que seu ato de insurgência, resistência e ousadia às estruturas que a desumanizavam, ecoassem e Esperança Garcia, no dia 5 de setembro de 2017, com sua carta, expressão de exercício da advocacia, recebesse oficialmente o título simbólico de primeira mulher advogada do Piauí.

De acordo com o Conselho Federal da OAB, o posto de pioneira branca é de Myrthes Gomes, que ingressou na advocacia em 1899. Quer dizer, oficialmente, Esperança não é a primeira advogada e negra do país – o título vale apenas para o estado do Piauí.

Cronologicamente, no entanto – reconhecida ou não -, Esperança é a primeira advogada do Brasil e, também, a primeira advogada negra do país.

De qualquer modo, juristas e advogadas negras têm-se movimentado para que Esperança Garcia seja reconhecida como advogada pelo órgão máximo da categoria.

Reparação

O simbolismo do reconhecimento serve ao enfrentamento de problemas que se perpetuam, ainda.

A professora Maria Sueli entende que o reconhecimento de Esperança Garcia como advogada faz parte de um processo maior: o de reparação da memória e de construção da identidade da população negra como protagonista.

Maria Sueli Rodrigues
Maria Sueli Rodrigues, presidente da Comissão da Verdade da Escravidão Negra no Brasil da OAB-PI. (Maurício Pokemon).

“Entendemos, a partir de literatura e a partir das experiências, que a identidade vai sendo formada pela memória. E o povo negro, não só no Brasil, mas amplamente, não tem uma memória divulgada de como aconteceu [a escravidão]. Você entra no museu, você vê o povo negro sendo chibatado em praça pública. Você vê o sofrimento da escravidão, mas não tem o protagonismo, o que os negros fizeram para superar isso.”

A importância histórica do documento escrito por Esperança Garcia, atendendo às reivindicações do movimento negro no Piauí, transformou a data de 6 de setembro, oficialmente, Dia Estadual da Consciência Negra, no Piauí. Isso desde 1999.

No estado, também, Esperança Garcia empresta seu nome a um grupo de pesquisa da seccional da OAB; a uma maternidade na cidade de Nazaré do Piauí, onde viveu, e a um memorial da história negra e a um instituto de educação, ambos na capital, Teresina, além do auditório da UnB, em Brasília.

Esperançar, um verbo

Fundado em 2019, o Instituto Esperança Garcia é um “projeto de educação dos sonhos possíveis”, inspirado pela memória da advogada e orientado pela “Pedagogia do Esperançar”, comprometida com a transformação do mundo.

Instituto Esperança Garcia.
Logo do Instituto Esperança Garcia. (Ilustração: Valentina Fraiz).

A base são as pedagogias de Paulo Freire e Bell Hooks, que propõem a construção de processos educacionais em que toda e qualquer pessoa tenha capacidade de aprender. E vem para o concreto a partir de um curso de extensão com espaço para o “diálogo crítico e sensível”, voltado a uma educação feminista e antirracista  – informa o site do Instituto.

O curso é indicado para qualquer pessoa disposta a ensinar e aprender sobre questões estruturais, como o racismo e o sexismo. Os encontros propõem, através de exposição e provocações, perguntas e diálogos, discussões sobre branquitude, mudanças e transformações do mundo.

Esperança no nome

Da vida de Esperança sabe-se pouco. O fato é que, longe do marido e dos filhos maiores, aos 19 anos, ela usou a escrita como forma de luta por uma vida digna.

Pela carta e pelos demais documentos encontrados, Esperança Garcia viveu na fazenda de Algodões, uma das tantas que ficaram sob administração de jesuítas, até esses serem expulsos por ordem de Marquês de Pombal.

Segundo a professora Andreia Marreiro, foi provavelmente neste período, com os jesuítas, que Esperança Garcia aprendeu a escrever.

Nas fazendas, os jesuítas foram substituídos por agentes coloniais escolhidos pelo governador da capitania. E foi um desses agentes, Antônio Vieira do Couto, que a levou à força da fazenda de Algodões – onde ela vivia com seu marido – para uma fazenda sob sua administração.

A Comissão não descobriu o desfecho jurídico de seu habeas corpus, mas encontrou duas petições que reafirmam os maus-tratos relatados em sua carta.

A teoria mais aceita é de que ela retornou à fazenda de Algodões, onde vivia. Isso porque um documento de 1878 – oito anos após o envio da carta -, menciona o casal Esperança e Ignácio, ela com 27 anos e ele com 57, na relação de escravizados daquela fazenda, dando a entender que os dois se reencontraram.

Esperança, Antonio e Luiz

Os pioneirismos na Justiça se confundem e entrelaçam – Pedro, Hermenegildo e Joaquim, são os três primeiros e únicos do Supremo Tribunal Federal desde 1829. E na advocacia, agora, também, são três os pioneiros.

Esperança Garcia, Centro de Artesanato Mestre Dezinho, Teresina
Estátua de Esperança Garcia no Centro de Artesanato Mestre Dezinho, localizado na zona central de Teresina (Ilanna Serena/G1)

Esperança Garcia é a primeira advogada do Brasil, seguida por Antonio Pereira Rebouças, pai dos irmãos Rebouças, que viveu entre 1798 e 1880, e o também jornalista Luiz Gama (1830-1882), ícone do movimento abolicionista brasileiro, que chegou a frequentar aulas, como ouvinte, na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo.

Inspirando quem vem depois

Considerando o acesso restrito à Justiça por parte da população negra, a advogada Juliana Souza criou o ‘Fundo Esperança Garcia para combater o racismo, principal discriminação sofrida no ambiente de trabalho em diversos países, entre eles o Brasil, segundo levantamento da empresa francesa CEGOS.

O objetivo do projeto, criado em conjunto com o Secretariado Técnico de Pinheiro Neto Advogados e o TozziniFreire Advogados, é capacitar mil advogados negros, nos próximos cinco anos, para exercer a advocacia antirracista ao oferecer assistência jurídica gratuita para vítimas de crimes raciais e correlatos. A iniciativa incluirá aulas sobre educação, saúde, esportes e mercado de trabalho, além de reforço das mais diversas áreas do direito.

É fundamental esse trabalho de formação e comunicação de quais são os direitos das pessoas que sofreram violações discriminatórias. Elas precisam ter conhecimento de que sofreram uma violação antes para buscar reparar o dano” – palavra de Juliana Souza.

A adesão ao Fundo Esperança Garcia é aberta a escritórios, empresas, marcas e pessoas comprometidas com a agenda antirracista,  que integra a agenda 2030 da Organização das Nações Unidas.

Igualdade Racial

O Ministério da Igualdade Racial, sob o comando de Anielle Franco, também celebra da primeira advogada do Brasil com a criação do Programa Esperança Garcia – Trajetórias Negras na Advocacia Pública Nacional, e com um edital de chamamento público para seleção de organizações da sociedade civil interessadas em celebrar termos de fomento para execução da iniciativa.

O Programa Esperança Garcia é dividido em duas linhas e busca possibilitar que pessoas negras graduadas em Direito tenham condições de se preparar para os concursos públicos das carreiras da advocacia pública, como as de advogado da União, procurador da Fazenda Nacional, procurador federal, de estados e de municípios. Serão ofertadas 30 bolsas de estudo de até R$ 3,5 mil mensais e 130 vagas em um curso preparatório virtual, sem qualquer custo para os beneficiados, sendo que metade das vagas será reservada para mulheres.

Fontes: Instituto Esperança Garcia, Geledés, Instituto da Mulher Negra, Consultor Jurídico, Revista Forbes, @julianasouzaoris, Instituto Luiz Gama, Mundo Negro


Escrito em 21 de junho de 2021

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