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Justiça, uma mulher preta

– Tania Regina Pinto

Cartaz produzido por A Coisa Ficou preta/@acoisaficoupreta para a mostra “Juízas Negras Para Ontem” (Divulgação/G1)

Quando o assunto é a presença feminina no Poder Judiciário, a língua portuguesa é “primorosa”: Justiça: substantivo feminino abstrato

O que este artigo responde:

  • Qual a presença feminina no Poder Judiciário? 
  • Quantas mulheres juízas existem? 
  • Quantas pretas atuam no Poder Judiciário? 
  • Perfil do Poder Judiciário, gênero e raça? 
  • Definição da palavra Justiça, Estrutura do Poder Judiciário.

Os substantivos são uma classe de palavras responsáveis por nomear seres, objetos, ações, sentimentos, lugares, ideias etc. São flexionados em gênero, número e grau e classificados por tipos, por exemplo: substantivo comum, coletivo e próprio.

Substantivo feminino, especificamente – focando na questão de gênero -, é a particularidade daquilo que se encontra de acordo com o que é justo e correto, como o respeito à igualdade de todos os cidadãos, por exemplo. 

Qualidade ou caráter do que é justo e direito, aliás, é a essência da  palavra justiça.

A palavra vem do latim justitia. É o princípio básico que mantém a ordem social através da preservação dos direitos em sua forma legal.

Tudo tem a ver com o artigo 5° da Constituição Federal:

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade…”

O que é o contrário da justiça?

  • arbitrariedade
  • injustiça
  • parcialidade.

A não presença da mulher – com ênfase à não presença da mulher negra – na maior corte da Justiça do Brasil, o Supremo Tribunal Federal  (STF) é o maior exemplo de descumprimento da lei!

Estrutura de Poder

A estrutura da Justiça no Brasil tem o STF no topo e é composta de cinco segmentos: Justiça Estadual e Justiça Federal, que integram a Justiça Comum e a Justiça do Trabalho, e a Justiça Especial, composta pela Justiça Eleitoral e pela Justiça Militar

No organograma, o STF reina absoluto. Ele é conhecido como o “guardião” da nossa Constituição. Abaixo, está o Conselho Nacional de Justiça – CNJ, instituição criada para aperfeiçoar o trabalho do sistema judiciário, em especial  no que diz respeito ao controle e à transparência administrativa e processual.

Depois, em ordem decrescente, vêm os tribunais superiores: da Justiça (STJ), do Trabalho (TST), Eleitoral (TSE) e Militar (STM). Na sequência, os tribunais de 2° grau ou instância, regionais, com suas varas, cartórios e auditorias próprias. Mais abaixo, ainda, os tribunais de 1° grau ou instância.

Organograma do Poder Judiciário Brasileiro
Organograma do Poder Judiciário Brasileiro (Conselho Nacional de Justiça)

A estrutura da Justiça no Brasil tem o STF no topo e é composta de cinco segmentos: Justiça Estadual e Justiça Federal, que integram a Justiça Comum e a Justiça do Trabalho, e a Justiça Especial, composta pela Justiça Eleitoral e pela Justiça Militar

No organograma, o STF reina absoluto. Ele é conhecido como o “guardião” da nossa Constituição. Abaixo, está o Conselho Nacional de Justiça – CNJ, instituição criada para aperfeiçoar o trabalho do sistema judiciário, em especial  no que diz respeito ao controle e à transparência administrativa e processual.

Depois, em ordem decrescente, vêm os tribunais superiores: da Justiça (STJ), do Trabalho (TST), Eleitoral (TSE) e Militar (STM). Na sequência, os tribunais de 2° grau ou instância, regionais, com suas varas, cartórios e auditorias próprias. Mais abaixo, ainda, os tribunais de 1° grau ou instância.

Quantas ministras, desembargadoras e juízas pretas têm escurecido a Justiça desde a sua criação?

No Brasil, as instituições judiciárias remontam à chegada da corte portuguesa. Em outras palavras, remontam à época da escravização negra, à época da divulgação da maior e mais duradoura fake news forjada em território nacional: o descobrimento do país

Logo, de saída, temos que descontar os cerca de 350 anos de sub-humanização do povo preto, apesar de Luiz Gama e Esperança Garcia terem conseguido, na vigência do sistema escravocrata, advogar em causa própria e de seus iguais.

A “nosso favor” – se é que cabe escrever assim -, os mais de 130 anos da Lei 3.353, de 13 de maio de 1888.  

De lá para cá, começando a responder à pergunta formulada acima, NUNCA uma mulher preta chegou ao topo na estrutura da Justiça do Brasil, ao Supremo Tribunal Federal!!! 

Desde sua fundação, em 10 de maio de 1808, apenas três homens negros atuaram como ministros do Supremo Tribunal Federal. Quanto aos brancos, somam-se 164 homens!!! 

Nas instâncias inferiores, para cada juíza negra no Brasil, existem 7.4 juízes brancos e outros 35 desembargadores brancos, que são os juízes de 2a. instância.

Leia o artigo Justiça de saias. 

Como o assunto é Justiça – insisto, qualidade ou caráter do que é justo e direito, vale salientar que, de acordo com o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, de 2022, somos 56,1% de pretos e pardos, contra 43% de autodeclarados brancos.

“Mimimi mesmo?!”

Estamos no século XXI, ano de 2023, registrando pioneirismos, de “última hora” – me permito escrever, como o da primeira juíza negra no Tribunal Superior Eleitoral, Edilene Lobo, uma juíza substituta. 

Não, a questão aqui não é o mérito da profissional escolhida, mas a desfaçatez de se acreditar que esta é uma atitude de combate à discriminação racial, antirracista, transformadora, justa! O governo permanece racista, bem como a sociedade. 

Vale lembrar a juíza Luislinda Valois, “promovida” a desembargadora um mês antes de sua aposentadoria compulsória, por idade!

Mas voltemos a 2023… Setembro também registra o pioneirismo de Adriana Cruz, a primeira juíza negra a assumir a Secretaria Geral do Conselho Nacional de Justiça, o CNJ – ela era titular da 5a Vara Federal Criminal no Rio de Janeiro e trabalhou como juíza auxiliar no gabinete do ministro Luís Roberto Barroso no STF.

E tem ainda a jurista Marcelise de Miranda Azevedo, primeira mulher negra a integrar a Comissão de Ética da Presidência, indicação oficializada na edição de 6 de setembro de 2023 do Diário Oficial da União.

Marcelise de Miranda Azevedo (Reprodução/Divulgação)

A advogada tem atuação em Tribunais Superiores, é especialista em Direito do Trabalho e Direito Previdenciário, integra o Grupo Prerrogativas e coletivos que lutam pela visibilidade das mulheres juristas negras.

Tudo – aguardemos – para nos “preparar” para engolir, sem água, mais um homem branco alçado à corte mais importante da injusta Justiça do Brasil!!!  

Ah, sim… Já tivemos também a primeira quase indicada ao STF, a advogada baiana Vera Lucia Santana Araújo – “perdeu” para o homem branco Cristiano Zanin -, que integra, ao lado das também advogadas Marilda de Paula Silveira e Daniela Lima de Andrade Borges, a lista tríplice aprovada pelo Plenário do STF.

Saiba mais sobre as mulheres negras indicadas para o STF e a mobilização do movimento negro nesta direção no artigo Ministra Negra Já!!!

Não é comparável

Para driblar a pressão por uma juíza negra no STF, em 6 de setembro, o presidente da República indicou, ainda, o único magistrado negro da lista de quatro nomes, elaborada pelo Superior Tribunal de Justiça, o do desembargador Teodoro Silva Santos, corregedor do Tribunal de Justiça do Ceará.

Detalhe: havia duas vagas abertas e reservadas à magistratura no STJ. 

Só que uma mulher negra no Supremo Tribunal Federal tem um papel na democracia brasileira que não é comparável a qualquer outro.

E mais: o debate real não é uma ministra negra no STF, mas seis mulheres negras e brancas no Supremo porque somos a maioria da população.

Números gritam

Demorou para a Secretaria Geral do CNJ realizar a primeira pesquisa por uma política antirracista no Poder Judiciário. Era o ano de 2014 e a presença de um ministro preto no STF, Joaquim Barbosa. foi fundamental para que tudo começasse.

No artigo Pedro, Hermenegildo e Joaquim, a história negra no STF. 

O levantamento da Pesquisa Negros e Negras no Poder Judiciário, publicado pelo CNJ, conta que o percentual de pessoas negras que tomaram posse como membros da magistratura no Brasil subiu de 12,8% para 21%, entre 2019 e 2020. O resultado mostra o impacto da implantação da política de cotas raciais no Poder Judiciário, instituída pela  Resolução 203/2015 do CNJ. 

Nesse ritmo, o Conselho projeta uma equivalência racial entre os anos de 2056 e 2059!!!  Há outras resoluções que tentam acelerar o processo (leia artigo ao final). Mas, por agora, seguimos, como lesmas… Ou será que elas são mais velozes?!

Em março de 2023, o CNJ criou o Fórum Nacional do Poder Judiciário para a Equidade Racial, de combate ao racismo no Judiciário. E – pasmem -, passados quase dez anos da pesquisa pioneira, anuncia-se que um dos primeiros passos do órgão será um raio-x da carreira a fim de traçar um perfil confiável de raça. Outro ponto é o aprimoramento da política de cotas e uma resolução para regulamentar a Política Judiciária para a Equidade Racial.

Recorte de gênero

Os sites dos Tribunais de Justiça em fevereiro de 2020 apontam que as mulheres são cerca de 20% do total de desembargadores – magistrados que julgam processos de segunda instância. Mas este percentual cai à metade no maior Tribunal de Justiça do país, o de São Paulo, onde são menos de 10% as mulheres, 31 para um total de 360 desembargadores.

Quando o quesito cor da pele é computado – aponta estudo do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais -, no mesmo Tribunal, os juízes brancos têm 4,6 vezes mais chances de se tornarem desembargadores, do que as juízas negras

Já o Levantamento de Perfil Étnico-Racial e Interseccional de Defensoras e Defensores Públicos, da Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos, do mesmo ano, com o objetivo de fomentar a reflexão sobre o tema na instituição, não teve números a apresentar.

Motivo alegado? Pouca gente respondeu ao formulário.

No Ministério Público também inexiste uma pesquisa institucional sobre a representatividade negra no órgão. O único levantamento, a nível nacional, realizado pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, em 2016, revelou 77% de brancos e 22% de pretos e pardos.

Racismo institucional

A atuação seletiva – e a não atuação – do Poder Judiciário brasileiro cria e reproduz racismo. E as provas estão no número exorbitante de pessoas negras nos presídios, na branquitude que compõe o Judiciário, bem como nas injustiças cometidas contra pessoas negras pela falta de representação. Nossa Justiça não garante direitos às pessoas negras.

Assim, a história de privação da liberdade e de  violência contra do povo negro continua. Muda, somente, o local: da senzala para os presídios. 

É fato que, no discurso, a Justiça tem avançado.

O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal Eleitoral, ao emitir seu voto sobre o artigo 28 da Lei Antidrogas, neste 2023, declarou em alto e bom tom:

“Branco precisa estar com 80% a mais de maconha do que o preto para ser considerado traficante”.

A ministra Rosa Weber, branca, que atualmente preside o STF, ao comentar o assassinato da Ialorixá e liderança quilombola baiana Bernadete Pacífico, em Salvador (BA), em 17 de agosto de 2023, foi enfática:

É inegável que o racismo, em todas as suas múltiplas facetas, a despeito de todos os esforços institucionais, ainda se apresenta como um dos principais obstáculos na construção de um Estado Democrático de Direito instituído com o propósito de assegurar que todas e todos, indistintamente, mereçam tratamento digno, fundamento da pedra angular do nosso ordenamento jurídico, a nossa Constituição Cidadã, de 1988”.

Em março de 2018, a ministra Cármen Lúcia, então presidente do STF, postou na sua rede social:

“Morre uma mulher. No caso de Marielle, morre um pouco cada uma de nós. Fica viva sua luta por Justiça e igualdade. E o nosso compromisso de continuar com ela. Assim, ela continua conosco. Para sempre Marielle!”

Uma referência ao assassinato da vereadora Marielle Franco que, até hoje, ainda não se sabe quem mandou matar! 

E estes são só exemplos do que, de verdade, não muda! Os nossos têm lugar garantido nas cadeias e cemitérios, mas não nos espaços de poder onde se deveria fazer JUSTIÇA PRETA! JUSTIÇA PARA O POVO PRETO!

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Outra vaga no STF, depois de 2023, só em 2025. Isso, se o ministro Luiz Roberto Barroso (como se manifestou) antecipar sua aposentadoria em 10 anos, depois de comandar por dois anos o tribunal.

Cá entre nós, é disso que se trata: não queremos mais o cantinho, um pedacinho da cadeira. É tempo de a branquitude abrir mão do poder. Ou melhor, já passou do tempo dos que se dizem antirracistas abrirem mão do poder. Só assim poderemos experienciar um outro modelo de sociedade.

Que a Justiça seja mais que uma abstração. Que mulheres pretas assumam o Poder Judiciário e, assim, cumpra-se a lei.

Justiça de saias

O Conselho Nacional de Justiça – CNJ aprova norma para garantir maior presença de mulheres em tribunais. A notícia é de 26 de setembro de 2023, quando da última sessão presidida por Rosa Weber, a terceira mulher – branca – a integrar a elite do Poder Judiciário nacional.

A norma altera a Resolução CNJ n. 106/2010, que trata dos critérios objetivos para a promoção de magistrados e magistradas..

Que não se pense em justiça restaurativa, em reparação. A  decisão, sem dúvida,  histórica e unânime em prol da equidade na magistratura brasileira, estabelece uma política de alternância de gênero no preenchimento de vagas para a 2a. instância do Judiciário. Mais uma vez – destaque-se -, a questão racial não foi contemplada. 

Com a decisão, as cortes devem utilizar uma lista exclusiva para mulheres, alternadamente, com a lista mista tradicional, nas promoções pelo critério do merecimento. Até agora, os critérios para promoção têm sido antiguidade e merecimento. 

A nova regra vai valer até que tenha uma proporção de gênero – as mulheres, nunca é demais insistir, são a maioria da população.

Cenário atual

Segundo dados em estudo na resolução do CNJ, existem Tribunais de Justiça que não têm mulheres desembargadoras, como Rondônia e  Amapá, e outros, como o Mato Grosso do Sul em que as mulheres são metade da população mas, apenas, 25% das magistradas tanto na 1a. como na 2a. Instância.

Levantamento do Conselho informa que dos 18mil magistrados no país, 38% são mulheres. E quando se restringe o olhar só para a 2a. Instância, que são os Tribunais de Justiça, a parcela cai para 25%

Por que é importante a diversidade feminina à frente dos Tribunais de Justiça? 

É lá que se toma decisões fundamentais sobre o funcionamento da Justiça, como onde vai ter Vara –  em cidades pequenas, a Vara é o único local que recebe todos os assuntos relativos à Justiça; se com atendimento remoto ou presencia;  horário de funcionamento… Decisões que parecem administrativas, mas que, no fundo, representam o acesso da população mais pobre ou menos pobre ao sistema de Justiça.

São Paulo, por exemplo, acaba de aumentar em 50% a taxa judicial, que é o valor que o cidadão paga para ter um processo em tramitação.

Das 27 unidades da Federação – 26 estados e distrito federal – , seis Tribunais de Justiça nunca tiveram uma mulher na presidência e oito deles, tiverem apenas uma. E isso vale para a OAB , a Ordem dos Advogados do Brasil, que nunca teve uma mulher presidente.

Quando se faz o recorte racial, tudo piora. Para cada juíza negra no Brasil, existem 7.4 juízes brancos e outros 35 desembargadores brancos, que são os juízes de 2a Instância. E tem mais mulher negra na sociedade do que homem branco.

Mas nada é por acaso. A mulher não chega à 2a. Instância porque um juiz, para ser promovido, passa por uma banca de desembargadores e, praticamente, todas as bancas são masculinas.

Só em 2022, o CNJ propôs a regra da alternância, agora aprovada.

Quem pautou a resolução?

– A ministra Rosa Webber.

Se não fosse ela, essa discussão não existiria. 

A luta continua. Questão de gênero contemplada e a certeza  de que o debate não é uma ministra negra no STF.  Precisamos de uma maioria de mulheres e negras porque somos a maioria como povo deste Brasil.

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