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Ser negra nas artes visuais

- Tania Regina Pinto

Arte: Candido Vinícius sobre foto de Alile Dara Onawale (Castiel Vitorino Brasileiro, Corpo-Flor, AfroTranscendence 2016, Tempo de cura. Curadoria de Diane Lima, Red Bull Station)

Quem é a negra na tela do artista e quem é a negra produzindo arte sobre si mesma.

1500 – O Brasil é invadido pelos portugueses.

1530 – Começa a exploração e já se fala em negros em território nacional.

1638 – Aparece o elemento negro integrando a paisagem na arte de Franz Post.

1641 – Rugendas e Debret iniciam o ciclo de “exotização” da mulher negra.

“E quando olhamos para a ‘pátria amada’ – que não nos ama –, para a sua constituição e para a sua arte, percebemos o tamanho desse desamor e o lugar delimitado para nós e que, até hoje, lutamos por ampliar e transformar em espaços de existência.”

 

“É um desafio e tanto ser negra… e ser mulher… e produzir arte…  Antes, as instituições cobravam diplomas das artistas visuais. Hoje, muitas ostentam diplomas, mestrados, doutorados, têm produção de altíssimo nível… Mas os senões insistem, só que nós também.”

Estas ideias, editadas, são de Rosana Paulino, artista visual, pioneira, pesquisadora, professora, inspiração e fonte* deste Sem Mordaça.

Rosana Paulino fura a bolha da Arte Contemporânea – ganha até prêmio -, gravadora por excelência, é a primeira artista negra brasileira a ter o título de doutora, à frente de seu tempo, reverenciada no mundo e com sua obra em um dos principais museus do país – mas esta história está lá no Pioneirismos. Aqui, o assunto é arte negra feita por mulher preta, contemplando gênero e raça no Brasil. E isso tem tudo a ver com ela também.

Tripé estratégico

Não existem facilidades. Rosana conta que sua primeira exposição de peso aconteceu em Portugal. E  lá, à exaustão, ela “sorriu amarelo” quando perguntada sobre os departamentos de arte negra das instituições no Brasil.

Por que o “sorriso amarelo”?

Pelo simples fato de esses departamentos não existirem em território nacional, apesar de 56% da população do país ser não branca.

Rosana Paulino
Arte: Candido Vinícius sobre foto de Marcus Leoni

Produção de arte, arte educação e documentação é a estrada – indica. Quem produz arte tem de trilhar estes três caminhos para garantir a presença das Artes Visuais Negras na  História da Arte – ensina. Isso inclui escrever a nossa arte, historiografia da arte.

“A curadoria é local de poder”, possibilidade de produção e divulgação da arte negra.

 “Curadoria vem de cura, cura do trauma colonial. Somos artefato do homem branco.”

A designer Diane Lima escreve sobre isso – versão poética de um artigo elaborado para o seu programa de mestrado de Comunicação e Semiótica, que transformou-se em  vídeo performance e convite à reflexão para a tarefa de criar-pensar-testar e potencializar, experiências de aprendizado coletivo:

A Cura

Como falar das ausências, se eu não podia falar?

Forças resistentes passeiam,

Movimentam a boca,

Boca. há muito controlada por ferro.

Sou livre sem máscara

Vozes ecoam

Suspiro.

 

Quem cura, cura o que?

Discurso.

Um genocídio da memória

Enuncio:

Onde está a cura para o meu trauma?

Quem me invisibiliza?

Sou parte de um projeto colonizador.

E, por isso, parto de mim,

Me desnudo.

Desenho a minha própria cor e forma.

Meu gesto, meu movimento.

Reescrevo,

Me conto

E curo o seu olhar sobre mim.

 

Nesses diálogos ausentes, sou presença

Fratura no que seu projeto criou

Desestabilizo e me experimento

Me lanço.

Não espero mais pelo que não sou.

Não sou mais os seus olhos em mim.

Minha arte é da desconstrução

Afeto

Nesse espaço-tempo sou dispositivo

Crio uma contra-história

E falo a minha própria língua.

 

É curando que eu me curo.

A cor da pele

E outras artistas negras seguem esta pegada, como Renata Felinto, investigadora  dentro da academia, com produção instigante e provocativa. Ela é professora e escreve sobre arte negra.

Um de seus trabalhos, dentro da série Afro-retrato, discute padrão de beleza. Em uma de suas performances,  White Face and Blonde Hair, de 2012,  Renata “se monta” como mulher de sucesso, cabelos dourados, e vai para a Rua Oscar Freire, a mais cara e badalada da capital paulista.

A artista “se monta” como mulher de sucesso, com cabelos dourados e tudo. Cria uma representação de si oposta ao seu fenótipo negro e caminha ostensivamente pela rua Oscar Freire, a mais cara e badalada da capital paulista.

Subverte as noções de raça e classe e aciona a reflexão sobre a presença do seu corpo negro nos espaços públicos elitizados.

Critica modos de ser fundamentados na branquitude como um sistema que garante privilégios a partir de mecanismos de exclusão e repressão das pessoas que não podem, por características fenotípicas, serem absorvidas por ele.

Ela tem tudo, menos a cor da pele. Por isso, a pergunta escancarada no rosto das pessoas que passam por ela é:

“O que este corpo está fazendo aqui?!”

Padrão de beleza

O projeto de arte de Renata Felinto – com pinturas, fotografias e performances – propõe uma discussão sobre construções sociais pautadas em discriminações e preconceitos seculares sobre os padrões de beleza impostos pela sociedade, fortalecidos por ícones da cultura de massa e que impactam negativamente a autoestima e autoimagem das mulheres negras e não-brancas que não correspondem aos padrões estabelecidos.

 “As questões estéticas pesam muito para as mulheres. O cabelo é um marcador no Brasil. O cabelo é um definidor fenotípico mais forte que a cor da pele” – considera Rosana Paulino. “Uma negra de pele mais escura de cabelo liso ‘vira’ morena. A questão dos cabelos é fator político e as artistas trazem muito isso para a sua produção.”

Morte

Outro trabalho de Renata é Axexê de o descanso das mulheres que mereciam ser amadas, dentro da mostra Histórias Afro-atlânticas, de 2018, uma revisão das narrativas visuais do Brasil, mas com foco para além da estética.

 Axexê é a cerimônia de enterro da espiritualidade da pessoa iniciada no candomblé nagô e que morreu, como se fosse um “desfazimento” da iniciação.

Axexê, Renata Felinto
Performance "Axexê da Negra ou O descanso das mulheres que mereciam ser amadas", 2017, Renata Felinto (Fotos: renatafelinto.com)

Mas a artista usa a palavra como um conceito – não como uma representação da cerimônia -, o enterro da espiritualidade coletiva de mulheres negras que foram amas de leite no Brasil escravocrata.

E ela usa reproduções impressas para este refletir artístico, como a reprodução da pintura A Negra (1923), sem nome próprio e de feição anônima, cujo modelo foi a ama de leite da autora da obra, Tarsila do Amaral – A Negra é enterrada, bem como o culto aos modelos modernistas, que carregam em si a gênese racista das elites escravocratas.

“Objetos” de arte

Apesar de o Movimento de 1922 mostrar, pela primeira vez, negros se representando e buscando uma ressignificação social, no geral, o interesse dos modernistas pelos negros se dá porque o Modernismo europeu queria o selvagem, o exótico, o diferente. E não por um olhar genuíno sobre o povo que habita o Brasil. A cabeça pequena e  o corpo avantajado de A Negra, conta disso, bem como Candido Portinari, com o seu Lavrador de Café, de 1934, que reproduz a ideia mítica do trabalhador braçal. Di Cavalcanti, em 1925, em Samba, traz a mulata sensual

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O fato é que mulheres negras sempre estiveram presentes na arte, só que  como objetos. Foi em 1641 que Debret construiu e “reservou” um  espaço do exótico da mulata, da mestiçagem, do samba, da fascinação da criança negra pela boneca branca inacessível, da mãe negra, da trabalhadora

 “Em todas as telas, o local simbólico social, da mulher negra, completamente enraizado na sociedade brasileira, perpetuado na história”, aponta Rosana.

“É tempo de construir outras e muitas narrativas.”

Informar e curar

Mulheres negras informam mulheres negras, como acontece com Juliana Barros, também curadora e professora, que faz leitura da escritora Carolina de Jesus em fotos-performance.

Mulheres negras curam mulheres negras, como Pamela Castro, do Rio de Janeiro, grafiteira e performance que, com sua arte, trabalha com grupos voltados ao acolhimento de mulheres vítimas de violência doméstica.

 Mulheres negras resgatam mulheres negras, como Castiel Vitorino, mulher trans, foto-performer e desenhista, formada em Psicologia e Artes, que trabalha cura, saberes tradicionais e conhecimentos ancestrais.

O Brasil não faz crítica de sua própria arte, não tem um olhar crítico para a sua história da arte. Vê a crítica como atraso e não como dialógica. Não fazemos revisões críticas, questionamentos”, denuncia Rosana Paulino, “mas as artistas visuais negras sim”.

Pseudociência

O quadro a “Redenção de Can”, do espanhol Modesto Broco, é o baluarte do racismo científico, com a anciã negra de mãos para o céu, a filha mulata com o bebê branco no colo, e o marido feliz com a família.

A história desse quadro é a história da mestiçagem que vai redimir o pecado de ser negro e retrata a proposta de branqueamento da população brasileira.

Modesto Broco, radicado no Brasil por mais de 40 anos, não pintou esse quadro em 1895 por acaso. A pintura foi feita pouco depois de oficialmente abolida a escravidão e instituída a República no país.

No caminho para um suposto progresso, o Brasil adotava a Europa branca como referência. E o negro representava o passado, o atraso.
Assim, a intelectualidade do século XIX fez surgir teorias cientificistas do  branqueamento como solução – misturar a população negra com a branca, incluindo os imigrantes europeus, geração por geração, até mudar o perfil racial do país.

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O quadro, reverenciado e premiado em sua época, é a representação visual dessa tese. O médico e diretor do Museu Nacional, João Batista de Lacerda, no Congresso Universal das Raças, realizado em Londres, em 1911, ilustrou um artigo de sua autoria sobre branqueamento com a pintura e projetou que, a partir da terceira geração, todo negro passaria a branco.

“Somos resultado disso” – acusa Rosana Paulino em sua obra, do racismo científico nunca debatido nem questionado.

Assentamento

Mas Rosana debate e questiona. Na série Assentamento, ela ressignifica as pseudociências, que tentam justificar a exploração dos negros durante o regime escravocrata.

Para isso, utiliza retratos de “tipos brasileiros” produzidos pelo fotógrafo francês Auguste Stahl (1824-1877) para o livro Viagem ao Brasil, de Louis Agassiz, naturalista suíço que investiga teorias de superioridade racial!!!

Assentamento, Rosana Paulino
"Assentamento", 2013, Rosana Paulino (Foto: rosanapaulino.com.br)

Faz reproduções em tecido dessas fotografias em tamanho natural, recortadas e rearranjadas em costuras rústicas, que expõem suturas entre as partes mutiladas da imagem.

Intervenções gráficas sinalizam o processo de cicatrização e enraizamento, >metáfora do trauma das pessoas que foram sequestradas de seus territórios pela escravidão e a necessidade de “refazimento”, como estratégia de sobrevivência.

“A figura que deveria ser uma representação da degeneração racial a que o país estava submetido, segundo as teorias racistas da época, passa a ser a figura de fundação de um país, da cultura brasileira.”

A série, segundo ela, se concentra na reflexão do sequestro da cultura de africanos e africanas que, mesmo assim, conseguiram reconstruir, mas seguiram com marcas:

“Eu reconstruo essas imagens, faço suturas nas fotos, mas dá pra perceber que as partes não se encaixam perfeitamente: isso é a escravidão.”

Ser humano, pessoa

Na história, a quebra desta representação que desqualifica e desumaniza a mulher negra acontece com Guignard, em obra de 1927, que traz a ideia de família negra constituída e da mulher negra dignamente inserida neste contexto.

É nos anos 1970, entretanto, que se inicia a construção de uma outra narrativa na história da arte com a pintora Maria Auxiliadora, com  um outro olhar da mulher negra para a sua própria história: ela traz orixás.

Na arte de Rosana Paulino renova-se o ponto de partida com a instalação Parede da Memória, com 1480 elementos, 11 fotografias de família que se repetem, aos pares ou não, a dizer “você pode ignorar uma pessoa, mas não 1480 pares de olhos sobre você, a partir do elemento simbólico do patuá”.

“Quando seu trabalho é apresentado – lembra Rosana –, levanta uma série de questões nas instituições sobre a obra ser arte ou arte-artesanato, considerada menor, “o que é típico de uma sociedade que não enxerga a produção do outro como produção intelectual, e que tenha valor por si só em trazendo aspectos da sua cultura, o que é uma constante na arte internacional.”

Mas nada intimida Rosana. Ela segue, costurando, suturando feridas, revisando e ressignificando a  história das mulheres negras dentro da história do Brasil, a partir da escravidão.

E a baiana Michele Mattiuzzi, em obra visceral, coloca o próprio corpo, como suporte para as suas performances, que discutem preconceitos:

“… a gente sente na pele e no corpo, cotidianamente, o ser mulher negra nesta sociedade” –  reflete Rosana pensando o trabalho de Michelle.

“Todo artista bebe na própria fonte.”

*Este texto foi elaborado a partir da  palestra “Arte produzida por mulheres negras: desafios contemporâneos”, realizado em 10 de agosto de 2019, no Museu de Arte de São Paulo – MASP, ministrada pela artista visual, pesquisadora e professora Rosana Paulino – 110 minutos de arte negra feminina e plural.

Entre os desafios:

– a revisão da história do Brasil, a partir do olhar da mulher negra

– a produção de arte na diáspora negra

– a formação das artistas negras brasileiras

– a barreira da língua

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