Não é uma boneca branca com pele negra. Não é uma boneca preta com traços negróides. É uma boneca preta autenticamente linda.
Baby Nancy, a primeira boneca preta a ter características etnicamente corretas, desde 2020 está no National Toy Hall of Fame, localizado no museu The Strong em Rochester, de Nova York.
O National Toy Hall of Fame, criado em 1998, tem mais de 70 brinquedos em exibição permanente, escolhidos por especialistas, a partir de indicações de qualquer pessoa durante o ano todo, e reconhece as contribuições dos brinquedos e jogos que e que são sinônimo de aprendizagem, criatividade e inovação.
Baby Nancy é cinquetona, “nasceu em 1968” e, no seu primeiro Dia de Ação de Graças – um dos feriados mais importantes dos Estados Unidos, que acontece na última quinta-feira de novembro -, foi a boneca negra mais vendida em Los Angeles, Califórnia e, antes do Natal, a mais vendida em todo o país.
A popularidade de Baby Nancy expôs uma demanda de longa data por bonecas pretas etnicamente corretas que o mercado convencional não conseguia entregar anteriormente.
Shindana Toys
A Baby Nancy é forjada na política, por uma organização de autoajuda da comunidade negra que surge após os distúrbios de Watts em Los Angeles, a Operation Bootstrap Inc., e lança a divisão Shindana Toys, uma empresa cooperativa, dedicada a fazer brinquedos que reflitam o orgulho negro, o talento negro e, acima de tudo, a “empresa negra”.
A palavra “shindana”, em suaíli, tem significado semelhante a “competir” e a Shindana Toys se propunha uma empresa cooperativa, de propriedade da e para a comunidade, fundada pelos ativistas dos direitos civis Louis S. Smith II e Robert Hall.
A loja de Doris Conner – uma mulher de negócios afro-americana e empreendedora -, por exemplo, projetou e fabricou muitas das roupas usadas pelas bonecas Shindana.
Robert Hall é o primeiro CEO e presidente da empresa, sucedido em ambos os cargos por Louis Smith.
O Chase Manhattan Bank, a Mattel Toy Company, a Sears Roebuck & Co. e a Equitable Life Assurance ajudaram a financiar partes das suas operações.
Em um artigo da Los Angeles Associated Press da década de 1970, Louis Smith explicita a estratégia da empresa:
Entre os jogos da Shindana, “Jackson 5ive Action Game”, “The Black Experience“, “The Afro-American History Mystery Game”, “Captain Soul” e “The Learning Tree”.
Consciência e poder
Ao escultor Jim Toatley coube o desafio de projetar em uma boneca a consciência negra e, ao mesmo tempo, ressignificar a autoimagem do povo, a partir do empoderamento e do rejuvenescimento da comunidade após os tumultos de Watts.
E ele criou um molde etnicamente representativo, atendendo ao desejo de Louis S. Smith de que a boneca não fosse simplesmente um modelo branco pintado de preto.
Assim, Baby Nancy chega ao mercado com 33 centímetros de altura, corpo de vinil rígido marrom, como outras bonecas voltadas para seu nicho de mercado, mas com nariz, boca e estrutura facial projetados para ser o que alguns observadores da indústria começaram a chamar de “etnicamente corretos“. Daí ela ter sido a primeira boneca comercializada como “preta”.
Transição capilar
Nas primeiras versões, Baby Nancy tem o cabelo sintético preto enraizado, longo, fino e reto, penteado em rabo de cavalo, mas, um ano depois, acontece a transição capilar e ela aparece com cabelo natural, black power, refletindo o momento do movimento americano dos anos 1960, voltado a contrariar os padrões de beleza dos brancos, em solidariedade com a luta de libertação.
Isso representou um desafio significativo para a indústria de brinquedos que nunca havia tentado genuinamente reproduzir o cabelo afro-americano curto e natural antes.
A Shindana Toys importou um forno especial da Itália e deslizou o cabelo sintético da boneca sob o calor para obter uma textura ondulada e embaraçada. Os trabalhadores da linha da fábrica usaram um pente de cabelo para afofar o natural e dar-lhe uma aparência e textura mais realistas.
Agora os consumidores poderiam deixar de usar Pretty Pigtails, a boneca original de Nancy, pelos Shorty Curls mais politicamente potentes, que os funcionários chamavam de Natural Nancy.
Distúrbios de Watts
Os tumultos, a rebelião de Watts, como ficaram conhecidos, ocorreram entre os dias 11 e 15 de agosto em Los Angeles. Foram distúrbios civis no distrito de Watts, que
Tudo começa na noite da quarta-feira, 11 de agosto de 1965, quando Marquette Frye, um homem negro de 21 anos, é parado por um policial de moto chamado Lee Minikus, sob suspeita de estar dirigindo embriagado. Minikus passa uma mensagem no rádio comunicando que o carro seria apreendido.
O irmão de Marquette, Ronald, que estava com ele no carro, decide ir, a pé, buscar sua mãe para ajudar a resolver o problema. Neste meio tempo, chegam outros policiais e tentam prender Frye usando força física para dominá-lo.
Moradores observam a cena e à medida em que a situação se intensifica, mais pessoas se reúnem e começam a gritar e a arremessar objetos nos policiais. A mãe e o irmão de Frye lutam com os policiais e são presos junto com Marquette e a multidão só faz aumentar e protestar. A polícia tenta contê-la, mas sem sucesso.
Após uma noite de agitação crescente, líderes negros e a polícia realizam uma reunião para discutir um plano e acalmar os ânimos. A reunião falha. E, no mesmo dia, o chefe da polícia William H. Parker pede ajuda da Guarda Nacional do Exército.
A revolta se intensifica e, na sexta-feira, 13 de agosto, aproximadamente 2.300 homens da Guarda Nacional se juntam à polícia para manter a ordem nas ruas. À meia-noite de sábado, o número de policiais cresce para 13.900 e, em 14 de agosto, o sargento Ben Dunn declara que “as ruas de Watts lembram uma zona de guerra em algum país distante”, sem qualquer semelhança com os Estados Unidos da América.
A Lei Marcial – suspensão de todas as liberdades – é declarada e o toque de recolher aplicado. A região fica isolada.
O saldo: 34 mortes, 1.032 feridos, 3.438 prisões e mais de 40 milhões de dólares em danos materiais, por conta de saques, incêndios e depredações.
E é neste contexto que Baby Nancy é nasce, com a marca dos direitos civis, como produto do renascimento de Los Angeles, a partir da ação dos ativistas negros Robert Hall e Louis Smith, que trabalhavam no distrito de Watts e fundaram a Operação Bootstrap Inc., um centro de desenvolvimento comunitário e treinamento profissional sem fins lucrativos dedicado ao movimento Black Power.
Unanimidade
Bootstrap acabou sendo um grande sucesso, aclamado como modelo pela esquerda e pela direita. Três anos após sua fundação, Smith e Hall foram convidados a se reunir com a liderança branca da Mattel, a maior fabricante de brinquedos do mundo, e se ofereceram para apoiar um negócio de brinquedos – a empresa forneceria capital, contatos da indústria, fornecedores e treinamento de pessoal.
Quinze anos depos, a Shindana Toys abriu falência, mas Baby Nancy “ainda permanece como uma boneca marcante que fez avanços comerciais e culturais”, disse a curadora Michelle Parnett-Dwyer, do museu The Strong em Rochester.
Um fabricante branco divulgando as “típicas” características étnicas ou raciais de suas bonecas provavelmente teria levantado suspeitas. Mas a equipe de Shindana se sentiu totalmente autorizada a fazer tais pronunciamentos. Até porque, com algumas exceções, os funcionários da empresa – na linha de frente, em pesquisa e design e no chão de fábrica – eram negros.
Em alguns de seus anúncios, inclusive, a empresa enfatizava a composição racial da força de trabalho, sugerindo que apenas os fabricantes de brinquedos negros tinham o know-how cultural para fazer uma boneca verdadeiramente preta.
Vale lembrar que Nancy surge em momento propício, também, do ponto de vista econômico: o final da década de 1960 com a crescente classe média de negros americanos que queriam representação tanto no balcão de bonecas quanto no balcão da lanchonete.
Família e agregados
Muitas bonecas Shindana Toys foram criadas depois de Nancy e apresentavam nomes etnicamente corretos, incluindo alguns de origem suaíli, como a boneca falante Talking Tamu que, entre outras frases, quando se puxava o “anel da fala” dizia: “Tamu significa ‘doce’.”
Isso sem contar as que guardavam semelhanças com celebridades negras, como O.J. Simpson, Diana Ross e Michael Jackson.
Uma outra linha apresentava, de bonecos de pano macio com cabelo de estilo natural, vestiam roupas com frases edificantes impressas, como “Paz”, “Certo”, “Estou orgulhoso, diga alto” e “Aprenda, bebê, aprenda” – a última frase é uma transformação dos cânticos “Queime, baby, queime” ouvidos durante os motins de Watts. Essas bonecas receberam nomes como “Sis”, “Natra”, “Wilky” e “Coochy”.
A coleção amiguinhos apresentava meninos e meninas negros, caucasianos, asiáticos e hispânicos – a maioria com cerca de 30 centímetros de altura -, enfatizando detalhes étnicos.
E, ainda, tinha a linha das profissionais “Wanda”. Elas vinham em caixas com um informações sobre a profissão particular da boneca, fotos de mulheres negras reais, comentários sobre a natureza de seus empregos e sugestões sobre o que a criança poderia fazer para aprender mais sobre o trabalho. Entre as garotas de carreira, como eram chamadas, havia enfermeiras, paraquedistas, pilotos de corrida, jogadoras de tênis e cantoras.
Nancy é indiscutivelmente relevante para a cultura ainda hoje. Ela transformou o que era racialmente aceitável no mundo dos brinquedos. E a empresa negra Shindana Toys é pioneira ao colocar, em bonecas, cabelos que nos representam.
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Fontes: