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Cheikh Anta Diop, a origem do humanidade e do racismo

Primeiro egiptólogo africano, um dos maiores historiadores do século XX, este intelectual senegalês de formação multidisciplinar é quem tira o véu sobre a origem dos humanos – nascidos, todos, com melanina – , e a fonte, o nascedouro do racismo a partir do tom da pele.

Cheikh Anta Diop
Cheikh Anta Diop (Reprodução)

O que este artigo responde: Quem é Cheikh Anta Diop? Qual é a formação de Cheik Anta Diop? Qual é a origem do racismo? Qual é a importância da África para o mundo? Por que a África é indicada como o berço da humanidade? Como Cheikh Anta Diop comprova a presença de melanina nos humanos da Antiguidade? Qual é a importância das múmias na confirmação da tese de Cheikh Anta Diop? Onde a tese de doutorado de Anta Diop sobre a origem da humanidade foi apresentada?

Toda a riqueza cultural, ancestral, espiritual, científica, mineral, de vida, de existência – explorada e usurpada ao longo dos séculos pelas nações ditas civilizadas e desenvolvidas – têm como fonte primeira a África

A existência negra e a cultura africana pré-colonial se confundem na história da origem humana da civilização, uma história que precisou ser “resgatada” para que se estabelecesse a verdade.

E é neste cenário de voltar a vir a ser que se insere Cheikh Anta Diop. Sua pesquisa pioneira comprova a influência da matriz negro-africana em todo o mundo desde a Antiguidade.

Especialista em Egito Antigo, o também filósofo contribui para o desmonte da perspectiva eurocêntrica da ciência ao fornecer evidências do conhecimento científico e filosófico fora do Ocidente e antes do Ocidente.

É ele quem defende – à exaustão – a tese de que Kemet (renomeada Egito pelos europeus) era um país negro e que o continente africano possuía uma identidade cultural comum.

Apesar de um currículo primoroso – formado em Física, Filosofia, Química, Linguística, Economia, Sociologia, História, Egiptologia, Antropologia, versado em diversas disciplinas como o racionalismo, a dialética, técnicas científicas modernas e arqueologia pré-histórica -, Anta Diop enfrenta muitas críticas e entraves para ter a sua tese de doutorado aprovada pela academia francesa .

Na primeira vez, Diop defendeu seu trabalho de doutorado por 10 horas, ante o interrogatório de uma banca examinadora, composta apenas por franceses, todos acadêmicos da Universidade de Sorbonne, em Paris – uma das mais antigas instituições de ensino superior da Europa -, sem entrar em contradição. Ainda, assim, teve sua tese reprovada.

Cheikh Anta Diop, laboratório
Cheikh Anta Diop em seu laboratório, em Dakar, em 1976 (Jake Scott/Reprodução)

É verdade que seu “campo de batalha” era o mesmo continente acusado, por ele, de ter criado “teorias falaciosas” sobre a África e a origem do ser. Mas não seria diferente em nenhum outro lugar do mundo – na época, o cenário e a vida real negra se caracterizavam por grande repressão. A evolução humana acontece em espiral.

Ao mesmo tempo, na visão desse multiprofissional, a verdade, contida em sua tese, tinha de ser escancarada exatamente para este mundo, ocidental. A sua compreensão, ainda atual, é que a  luta pelo renascimento cultural e político da África passava e passa, obrigatoriamente, pelo reconhecimento do papel civilizador do continente, que data da antiga civilização egípcia.

A tese

Diop ataca o cerne do pensamento ocidental ao afirmar que os povos originários da terra são negros. E prova que os primeiros habitantes do planeta não teriam como nascer em outro lugar e que suas características físicas não poderiam estar desajustadas das condições climáticas. 

Esse pressuposto, de acordo com o pesquisador, se confirma também pelas condições geográficas do continente, que possibilita abundância de recursos naturais indispensáveis para a vida.

Ele concebe a teoria dos dois berços de desenvolvimento da humanidade:

  • de um lado, o berço setentrional, caracterizado pelo patriarcado, pelas cidades-Estado, pela moral da guerra e a ideia de pecado;
  • de outro, o meridional, marcado pelo matriarcado, pelo Estado centralizado e guiado por princípios de justiça e equidade

Desses dois berços emergiram as civilizações europeia e africana e – de suas bases comportamentaisconstruiu-se uma história marcada pela violência e apropriação, que se perpetua até os dias atuais.

A nosso favor, a identidade cultural africana – fio condutor da memória e da espiritualidade -, que tem papel central na resistência do povo em relação à força da dominação colonial.

Resumindo: sua tese diz que a humanidade negra povoou o planeta inteiro antes de surgir o povo branco, que toda a humanidade surge exatamente na África. Aí, o ponto de partida do chamado “racismo”, que traz, em sua essência, a disputa de poder.

A origem do racismo

“O racismo não começa no século XVI, não é uma ideologia criada para a colonização, não é uma tese concebida nem uma ideia recente. Racismo é ‘consciência histórica coletiva’ muito anterior, desde o neolítico superior – 7.000 anos antes da Era Comum, que começa a partir de uma disputa territorial, de recursos, entre povos com melanina e povos sem melanina, que vieram depois.”

Este é o entendimento de Anta Diop, comprovado em sua tese de doutorado, após 25 anos de pesquisas, comenta Anin Urasse Balanta, pesquisadora e tradutora de livros que importam aos africanos em diáspora, mulherista africana, iniciada no candomblé e estudiosa da obra do senegalês.

Ao usar as expressões “povos com melanina” e “povo sem melanina”, Anin reproduz a terminologia utilizada por Anta Diop, referindo-se a uma época em que ainda não havia sido inventada a tese do racismo científico, para desclassificar e desumanizar as pessoas nascidas no continente africano. Ele, inclusive, fala em “fenotipofobia” para refletir sobre o que chamamos de “questão racial“.

“Os povos sem melanina, em luta com os povos com melanina, eram os vikings, os celtas, os povos nórdicos, que começaram a criar mitos, histórias, em que demonizavam o fenótipo daqueles com quem conflitavam – conta Anin. Nesses mitos havia sempre um monstro com pele escura, cabelo crespo e nariz largo. E isso é passado desde a antiguidade como uma consciência histórica coletiva.”

Escravidão é um produto do racismo. E racismo não tem a ver com raça, com não gostar da cor. Racismo é mais que questão de fenótipo. O principal objetivo do racismo é eliminar o povo africano, na África e em Diáspora, da face da Terra. Isso porque – saliente-se mais uma vez – a essência do “racismo” é disputa de terra, de recursos e de poder político, econômico.

“Milagre grego”

O  berço da civilização europeia foi forjado a partir do contato com os egípcios – acusa Diop. Desses encontros surgiram as teorias de conhecimento para a organização do logos grego

A localização geográfica e a intensa migração de povos na antiguidade indicam a impossibilidade de um “milagre grego”, ou seja, de um desenvolvimento filosófico apartado dos acontecimentos produzidos, ao mesmo tempo, em outros lugares.

Para atestar a veracidade de sua tese, segundo a qual os antigos egípcios apresentavam os mesmos traços físicos que os africanos negros de hoje – cor da pele, aspecto do cabelo, do nariz e dos lábios -, Anta Diop se utiliza de relatos e citações de filósofos e historiadores gregos que viviam na antiguidade, como Heródoto, Diodoro da Sicília e Sólon, o legislador de Atenas.

Resistência

Sua tese de doutorado é rejeitada, pela primeira vez, no ano de 1951. E o “legado filosófico grego”, enquanto berço do pensamento ocidental,  permanece intocável. Mas ele não desiste. O acadêmico, como todo povo negro, é sinônimo de resistência

E não está só: havia outros pensadores questionando o modelo ocidental de organizar o mundo, como o martinicano Frantz Fanon (1925–1961) e o estadunidense William Edward Du Bois (1868–1963).

Nos anos seguintes, Anta Diop segue investindo em sua tese, trabalhando para expor outras provas mais precisas, que as já defendidas. Em 1954, enfrenta nova rejeição. Em 1955, publica seu trabalho no livro Nations Nègres et Culture (Nações Negras e Cultura), tornando-se o historiador mais polêmico de sua época.

Nations Nègres et Culture, Cheikh Anta Diop
Livro Nations Nègres et Culture, de Cheikh Anta Diop (Reprodução)

Em 1960, finalmente, consegue ter sua tese aprovada pela Universidade de Paris e conquista o título de doutor. 

É tempo de retornar à África… 

De volta ao seu país, o Senegal, obtém o título de professor e cria, em 1966,  o primeiro laboratório de datação de fósseis arqueológicos por meio de carbono 14, o Instituto Fundamental da África Negra, na Universidade de Dakar, atualmente Universidade Cheikh Anta Diop.

No laboratório, efetua testes de melanina, a partir de amostragens da pele de múmias egípcias, para confirmar os relatos de autores gregos antigos sobre a melanodermia dos antigos egípcios – grosso modo, a nossa pele preta ou “com melanina”, como defenia.

Um homem, muitas profissões

Diop se reconhecia como o primeiro e único preto africano de sua geração a ter recebido formação como egiptólogo e aplicado esse conhecimento em suas pesquisas sobre a história africana.

Ele “mergulha” em Kemet, o antigo Egito, por meio da egiptologia afrocentrada, um campo de pesquisa que inicia com base na hipótese de que é uma civilização negro-africana, berço das culturas da África subsaariana – região composta por 47 países, localizada abaixo do Deserto do Saara, também chamada de “África Negra”.

Sua formação multidisciplinar, entretanto, mostra-se fundamental para
embasar suas pesquisas de vida inteira… 

Na História, o argumento sob a validade de sua posição, a partir de uma série de considerações relativas às analogias entre as culturas subsaarianas e as do antigo Egito, em termos de cor da pele, religião, proximidade linguística, sistema marital, organização social etc. 

A Antropologia lhe serve para a interpretação de dados sociais como o papel do matriarcado. Informações de ordem arqueológica levam-no a concluir que a cultura egípcia é uma cultura negra

No plano linguístico, considera em particular o idioma wolof, hoje falado na África ocidental, que é foneticamente aparentado com a língua egípcia antiga. Ele traduz partes da Teoria da Relatividade de Einstein em seu idioma nativo. A Física, aliás, foi uma de suas fortes aliadas na defesa de sua tese – foram 15 anos dedicados à disciplina.

Kemet, o Egito Antigo

Com todo o seu conhecimento, suas pesquisas convergem ainda para o fato de que a África Negra, especificamente o Egito Antigo, serviu de exemplo inspirador para o mundo em diversos aspectos, como um templo do conhecimento científico. 

É lá – nos solos negros e férteis da civilização do norte da África, concentrada ao lado do curso do rio Nilo – que nasce o primeiro centro de altos estudos, onde são desenvolvidas a escrita, a arquitetura, a filosofia, a medicina, a agricultura, a literatura, os conhecimentos astronômicos, matemáticos, as ciências… 

per ankh
Símbolo Per Ankh, ou “Casa da Vida, instituição responsável pelo ensino no seu nível mais avançado, no Antigo Egito (Reprodução)

Filho, marido, pai

Massamba Sassoum Diop e Magatte Diop são os pais de Cheikh Anta Diop, que nasce em 29 de dezembro de 1923, na aldeia de Thieytou, no Senegal, em uma sociedade de classes estratificadas – realeza, aristocracia, militares, plebeus, escravos e artesãos. Sua família é da aristocracia

  • Educado em uma escola islâmica tradicional, aos 23 anos se muda para a França para estudar.
  • Se casa com Louise Marie Diop-Maes, doutora em geografia humana, e tem um filho, Cheikh Mbacké Diop.
  • Na vida, segue pesquisando e documentando seus estudos em livros até pouco antes de sua morte, em fevereiro de 1986 – nosso pioneiro estava na cidade de Dakar, capital do Senegal, dormindo.
  • Dez anos depois, no 1° Festival Mundial das Artes Negras de Dakar é consagrado o autor africano mais influente do século XX .
  • Em 8 de fevereiro de 2008, na sua aldeia, é construído um mausoléu para perpetuar sua memória.


Fontes: Geledés, Afrokut, Alma PretaSBHC, Periódicos UFSM, Wikipedia, Geledes – Cheik, Ciência Hoje, Cheikh Anta Diop e as Origens do Racismo

Escrito em outubro 2023 – atualizado em julho de 2024

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