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‘Corra!’, melhor roteiro do Século XXI

- Tania Regina Pinto

Cena de Corra! com o ator principal, Daniel Kaluuya

Get Out!, em inglês, é um filme de preto, com preto, que escancara a inveja e a fragilidade branca, identificáveis no racismo de cada dia.

*Este texto está cheio de spoilers, se não quiser saber, sugerimos assistir o filme antes de ler ♥

Para escrever sobre este longa de suspense e terror psicológico, terror para o povo negro, escrito e dirigido por Jordan Peele, escolhido como o número 1 dos 101 melhores roteiros de filmes do Século XXI – até 2021 – , pelo Sindicato de Roteiristas dos Estados Unidos (Writers Guild of America, WGA), uso como lente o livro “Memórias de Plantação”, da escritora e teórica negra, nascida em Lisboa, Grada Kilomba.

 “O colonialismo é uma ferida que nunca foi tratada. Uma ferida que dói sempre, por vezes infecta, e outras vezes sangra.”

(informa a contracapa)

E é disso que trata Corra!, da inveja e do desejo de ser e de ter o sujeito negro, da contradição de se querer destruir o outro a quem se admira.

Fomos brutalizados, animalizados, desconectados de nós mesmos para sermos possuídos.

Não poucas vezes ouvimos pessoas dizendo que queriam ter nossos cabelos, corpos, pele – não por acaso o ficar ao sol, encaracolar os fios, os botox e apropriações culturais, históricas, de toda sorte…

O racismo surge na forma de paixão pelo ‘exótico’ e pelo ‘primitivo’ – escreve Grada Kilomba nas páginas 158, 159 e 160. 

O desejo de tornar-se negra, tornar-se negro, o desejo pela negritude está na fantasia de que nós, negros, estamos mais próximos da natureza e da autenticidade e, portanto, temos acesso a algo que brancos e brancas perderam – propõe a ativista antirracista bell hooks.

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Tais projeções, no entanto, são dimensões que tornam a vida excitante e formam a  base da inveja racial, inconsciente, onde há o desejo “de possuir alguns dos atributos do outro e, ao mesmo tempo, o desejo de que o outro seja destruído”.

E aí vale lembrar  o estupro racial e o linchamento – durante o colonialismo – como os exemplos mais cruéis dessa inveja. O ato de possuir e violar o corpo da mulher negra era prática comum, assim como o linchamento de homens negros acusados de terem tido relações sexuais com mulheres brancas ou de terem meramente falado com elas, assobiado, ou tentado se aproximar. 

O psiquiatra, filósofo e político Frantz Fanon – lembra Grada Kilomba – escreve que o sujeito negro é usado como contrapartida para o sujeito branco, como uma imagem espelhada que é reduzida ao corpo físico.

O filme

Corra! é uma reencenação de um passado colonial, mas também uma realidade traumática de apropriação dos nossos corpos, absolutamente atual, e deixa implícitas e/ou explícitas – depende do olhar de quem assiste – questões como:

Quem é o ladrão?

Quem é o violento?

Quem é o selvagem?

Quem é o não civilizado?

Quem é mau?

Com a fantasia branca de ser negro – em toda a sua potencialidade – Corra!, como no racismo, cirúrgica e violentamente nos separa da nossa identidade, nos priva de nossa conexão, nos fazendo existir a partir de quem não somos.

E esta representação – de negros sem expressão, espectadores – se escancara na ausência de vida dos serviçais, afroamericanos, que agem como autômatos, sem direito à fala, o que confirma a boca como órgão a ser oprimido – lembremos Anastácia, além de ser uma metáfora para a posse.

O roteiro

Chris (Daniel Kaluuya) é um jovem negro, fotógrafo, apaixonado, que vai viajar para  conhecer a família da namorada – ele está ressabiado, ela é branca. Mas, ao chegar, é acolhido pelos pais da moça – uma psiquiatra e um neurocirurgião – de forma excessivamente amorosa, o que causa certo estranhamento.

O casal pergunta sobre sua família. Ele hesita, mas revela que foi criado só pela mãe, que já morreu.

Durante a conversa, também, os sogros percebem que Chris é fumante e a futura sogra se oferece para curar o seu vício com uma sessão de hipnose.

Cena da sessão de hipnose em Corra!

Cena da sessão de hipnose em Corra!

Até certo ponto da trama, somos levados – assim como Chris – a tentar compreender a lógica daquelas pessoas, que contam que votaram em Barack Obama nas duas vezes em que ele se elegeu presidente da República – uma prova (?) de que são antirracistas.

A fina camada de respeito e civilidade em relação ao negro assusta, como no nosso dia a dia. A exceção branca é  Jeremy, o filho do casal, estudante de medicina, que chega de repente, é  arrogante, ofensivo, faz comentários preconceituosos sobre o cunhado e o desafia para uma luta.

Em Corra! a inquietude é constante, o que mantém todos curiosos quanto à natureza das coisas, incluindo a reunião dos amigos (todos brancos) que tratam, às vezes veladamente, noutras mais explicitamente, Chris como alguém a quem se deve admirar pelo fenótipo.

Eles fazem perguntas invasivas – como as que ouvimos sobre nossos cabelos, se os lavamos etc etc – e todos parecem objetificar seu corpo, a ponto de tocá-lo sem qualquer pudor. Isso sem falar do pedido da namorada no início da festa para que ele sorria o tempo inteiro (igualzinho ao tempo em que éramos vendidos).

O filme nos deixa em permanente estado de alerta, experimentando sensações, sentimentos, acionando nosso instinto de sobrevivência… A qualquer momento, tudo pode acontecer!

O melhor

Corra! é concebido, em 2017, sem restrições, apesar de o próprio conceito de ‘escrever para a tela’ estar em crise existencial. O sistema de estúdio deu lugar ao streaming, onde tudo, não importa a fonte, compete pelos globos oculares. 

E é o filme de estreia de Jordan Peele na direção solo de um longa-metragem. E, ainda, lhe valeu o Oscar de Melhor Roteiro Original, além da indicação nas  categorias Melhor Filme, Melhor Diretor e Melhor Ator, para Daniel Kaluuya.

Se tornou um enorme sucesso internacional, tendo sido um dos filmes mais comentados e aclamados dos últimos anos.

Afrofuturismo às avessas, Corra! trabalha com a possibilidade de se transplantar um cérebro branco para um corpo negro, roubando o talento do cérebro negro – no caso de Chris, seu talento para a fotografia -, mantendo presa no fundo da consciência a mente negra, que não terá controle sob si mesma.

Metáfora?

Mais que uma metáfora sobre o racismo, Jordan Peele com seu roteiro trata da impunidade dos chamados “cidadãos exemplares” – sempre brancos! Aborda privilégios e contrastes sociais gritantes, sublinha que os que estão nas posições de poder não se incomodam de sacrificar os outros em benefício próprio. 

O filme expressa o medo e os inúmeros perigos aos quais como negros em diáspora estamos sujeitos, ainda, e deixa estampada a hipocrisia de uma sociedade que finge ser progressista, mas apenas esconde o preconceito, ao mesmo tempo que perpetua a opressão.

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3 comentários em “‘Corra!’, melhor roteiro do Século XXI”

  1. Lucila Helena Oliveira

    Os spoilers estimulam a curiosidade para que vejamos na íntegra lá película. Excelente abordagem!

  2. Pingback: PN Retrô 2022

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