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Escola Comunitária Maria Gregória, pan-africanismo para crianças

O que este artigo responde:
Quem foi Maria Gregória?
O que é uma escola pan-africanista?
Qual a pedagogia de uma escola pan-africanista?
Como funciona uma escola de educação infantil pan-africanista?
Por que é importante contar a história e a cultura da África para crianças do Brasil?
A Escola Maria Gregória dos Santos tem convênio com a Prefeitura?
Como se dá a relação de uma escola pan-africanista com a comunidade?

Fachada da Escola Comunitária Maria Gregória (Imagem: Divulgação)
No alto, o casal Melquiades e Maria Gregória, a primeira sede da escola.
(Imagem: Divulgação)

A história e o fazer pedagógico da primeiro escola de educação infantil pan-africanista do Brasil, um espaço de transformação de vidas, de fortalecimento da comunidade, que promove a afirmação da identidade racial, eleva a auto-estima particular e coletiva, desenvolve o respeito às diferenças e potencializa, em cada criança, competências, habilidades e valores essenciais para a sobrevivência e, principalmente, para a vivência humana.

“É preciso uma aldeia para educar uma criança.”
Provérbio africano

Tudo se concretiza na Comunidade da Mangueira, na Ribeira, Cidade Baixa de Salvador, onde Maria Gregória dos Santos e Melquiades dos Santos foram viver, quando chegaram do Quilombo do Cangula, em Alagoinhas, interior da Bahia.

Nas décadas de 1960 e 1970, a Comunidade da Mangueira, considerada a maior favela da América do Sul, era habitada por uma maioria de pessoas de origem africana nascidas no Brasil – a “população negra”, como nos define o colonizador .

Quilombo do Cangula

A inspiração para a construção da Escola Comunitária Maria Gregória dos Santos, aliás, tem sua raiz na comunidade quilombola do Cangula, onde dona Maximiana, mãe de Maria Gregória, já compreendia a educação como fundamental para o desenvolvimento do indivíduo e de sua comunidade.

Quando as aulas da Prefeitura eram suspensas, Maximiana pegava o pouco que tinha e ganhava da roça para pagar aula particular para os seus filhos, entre eles Maria Gregória que sonhou ver a sua única filha, Maria Elisabete, construir uma escola – ela pariu sete meninos.

Sonho remodelado

A dificuldades, no entanto, fizeram com que mãe e filha “adaptassem” o sonho… E, em 2007, Maria Gregória e Elisabete plantam a semente ao desenvolverem atividades socioeducativas com crianças e pré-adolescentes da comunidade, utilizando o material que haviam preparado para a instituição de ensino que não conseguiram abrir.

Uma vez por semana, as duas promoviam reuniões com cânticos, preces, contação de histórias, dinâmicas em grupo e um lanche no final. Com o passar do tempo, os encontros na comunidade foram enriquecidos com atividades pedagógicas direcionadas para cada faixa etária, dos 3 aos 12 anos, com temas baseados na realidade local. A mudança dinamizou o projeto, atraindo mais crianças e os vizinhos passaram a colaborar com material para todas as atividades.

Trenzinho do Xuxú em frente a Escola Comunitária Maria Gregória (Imagem: Divulgação)
Trenzinho do Xuxú em frente a Escola Comunitária Maria Gregória (Imagem: Divulgação)

Nesse período, Maria Elisabete, filha de Maria Gregória, fazia parte do CNNC – Conselho Nacional de Negros e Negras Cristãos, com reuniões de estudos que pensavam o cristianismo a partir de um Messias negro.

Bete – como é mais conhecida a Maria Elisabete – conta que havia muitas divergências nos debates do CNNC, mas é a partir deste compartilhar de ideias que, muitos anos depois, acontece a escolha política do Pan-Africanismo.

Luto e uma nova consciência

Com a morte de sua mãe, Maria Gregória, às 23h46 do último dia do ano de 2010, tudo paralisa:

“Quando minha vó, minha mãe, meu tio pensaram a escola, a gente não sabia como seria. Eu não tinha maturidade… O desligamento do universo religioso cristão, a vivência do luto de minha mãe, tudo foi me lapidando para o processo de entender a lógica perversa imposta ao povo preto no mundo, massacrando, maltratando…

Passado um tempo – conta Bete -, as crianças, os jovens foram procurá-la. Queriam as atividades de volta. Era o segundo semestre de 2012. Maria Gregória não estava mais entre eles, mas Bete sentia a presença da mãe, querendo a tão sonhada escola

O desafio, que parecia intransponível, era criar fisicamente a escola. Por isso, Bete decide fazer um ritual que aprendeu quando era evangélica, mas que considera de origem africana:

“Resolvi fazer um jejum de cinco dias em busca de respostas. Fazia apenas uma refeição por dia depois do pôr do sol… No primeiro dia, meu irmão me ligou e conversando com ele, eu perguntei: ‘Onde eu faria uma escola?’ E ele respondeu: ‘Lá em casa mesmo, na nossa casa’ – que era onde nossos pais moravam. Falei com meus outros irmãos e todos concordaram. Ao final do jejum, estava tudo resolvido”.

Na época, seu pai estava doente, com Mal de Alzheimer – o que representava um impedimento a mais, à medida que era ela quem cuidava do “paínho”, como se recorda.

Projeto Aquarela

No mesmo 2013, ela iniciou o Projeto Aquarela, levando profissionais das mais diversas áreas de atuação para contar de seu dia-a-dia de trabalho. Entre eles, o advogado José Raymundo que, encantado com a proposta, insistiu para que ela “institucionalizasse a ideia”. Isso, sem saber que havia um sonho de família a ser realizado.

Bete demora um pouco para entender a “conspiração do Universo” até que percebe o “caminho” na insistência de José Raymundo e responde:  

“Mas não pode ser uma simples escola. Tem de ser comunitária e com recorte racial”.

José Raymundo dá o suporte para a criação da escola. Juntos, ele e Bete cuidam da parte burocrática. Mas, antes, ele convida professores, pessoas com vivência de  escola comunitária e organizações não-governamentais para uma reunião que acontece três meses depois, onde conseguimos fazer o esboço dos passos a seguir. 

Em 1° de maio de 2014, o grupo se reúne para pensar uma escola comunitária que tornasse possível o atendimento a um público maior e com educação formal – diferente do que havia sido feito até então.

Só depois da morte do senhor Melquiades – em julho de 2014 -, o foco se volta para a criação da escola.

Durante o processo, na elaboração do Projeto Político Pedagógico – obrigatório para o registro de uma escola formal -, no pensar a criança negra e a comunidade, se confirmam os ideais do Pan-Africanismo para a nova instituição, ideologia que ela conheceu no CNNC, com o teólogo e historiador Valter Passos.

Maria Gregória, uma realidade

Em 2 de março de 2015, começa a funcionar na casa onde Maria Gregória e Melquiades viveram, por 50 anos, a Escola Comunitária Maria Gregória dos Santos e o sonho se torna realidade, atendendo crianças de 1 a 5 anos.

Atividade na Escola Comunitária Maria Gregória (Imagem: Divulgação)
Atividade na Escola Comunitária Maria Gregória (Imagem: Divulgação)

Desde 2016, a Escola Comunitária Maria Gregória dos Santos é conveniada com a Secretaria Municipal de Educação de Salvador, um motivo a mais para fazer cumprir as metas impostas/propostas pelo Estado.

E menos de uma década depois de sua fundação, em janeiro de 2024, a escola amplia o olhar e inicia a jornada no Ensino Fundamental com a primeira turma do 1° ano, em uma sede maior, com possibilidade de aulas de natação, mas sem sair da comunidade, da Ribeira.

Filosofia pedagógica

Ádila Carvalho Neves, coordenadora pedagógica da escola, explica que mais que uma pedagogia de ensino, o pan africanismo é uma forma de se relacionar, de estar e viver em comunidade, compreendendo-se africano e agente de formação de sujeitos ativos que assumem papéis dentro da sociedade e não à margem.

“Toda a relação com a comunidade é pan-africana. Quer dizer, o Pan-Africanismo não está apenas na forma de construir e aprender sabedorias como ‘conteúdo didático’. O Pan-Africanismo está na relação com as famílias, com o entorno, com os profissionais que contribuem com a escola, com o tempo e o que vivenciamos nele. Somos uma escola comunitária e vivenciar a comunidade escolar possibilita o processo formativo dos profissionais assim como das famílias e das crianças”.

A própria Ádila se coloca como exemplo ao contar que, antes de assumir a coordenação pedagógica, atuava como professora na Maria Gregória e que adquiriu consciência racial em sala de aula, trabalhando o despertar das crianças para a questão.

O casal Melquiades e Maria Gregória (Imagem: Divulgação)
O casal Melquiades e Maria Gregória (Imagem: Divulgação)

Espírito da Intimidade

Na prática, este aprender juntos se estende às famílias a partir das atividades interativas enviadas para as crianças fazerem em casa. “A ideia é que o mesmo conhecimento dado na escola seja compartilhado”, indica Ádila. “E sempre tem um retorno das famílias na agenda das crianças”.

Muito do que se aprende na escola pan-africanista, muito do que se aprende de África, está presente no dia a dia da comunidade, mas ninguém sabe! Um exemplo incrível são os adinkras – conjunto de símbolos que pertence ao povo Ashanti, atualmente localizados, a maioria, nos países Gana, Burkina Faso e Togo, na África Ocidental.

Alunos da Escola Comunitária Maria Gregória (Imagem: Divulgação)
Alunos da Escola Comunitária Maria Gregória (Imagem: Divulgação)

Mas, por conta dos processos das diásporas africanas, os adinkras também estão presentes em outros lugares do globo, como os portões das casas da Cidade Baixa, em Salvador…

Depois que as crianças fizeram atividades com os adinkras, começaram a identificá-los pela cidade…

A Escola Comunitária Maria Gregória é um local de transformação de vidas, que promove afirmação da identidade racial desde a primeira infância, eleva a auto-estima, desenvolve o respeito às diferenças, potencializa competências, habilidades e valores essenciais para se viver a própria humanidade.

Por estar inserida na comunidade, nos remete ao princípio de aldeia, tão bem delineado no livro O Espírito da Intimidade, de Sobonfu Somé. Mesmo as crianças das primeiras turmas, hoje jovens, adultas, ainda têm a Maria Gregória como parte de seu dia a dia. São a extensão de uma mesma família.

Olhar africano

O Pan-Africanismo tem a África como foco, o resgate da história e da cultura da África e a sua inclusão no cotidiano, no crescer, no amadurecer da criança baiana.

O ponto de partida é a compreensão da educação como instrumento de humanização, de interação e inclusão social. Em outras palavras, uma instituição de ensino com um currículo que inclui a luta pelo direito à vida digna.

O processo é iniciar, já na primeira infância, a construção de sabedorias em base africana para que a criança – diferente do adulto africano em diáspora que se desconstrói e se descoloniza -, seja regada e nutrida pela potência e conhecimentos afro referenciados antes do enfrentamento e do combate ao racismo.

Leia o artigo Escola Comunitária Maria Gregória, o fazer pedagógico pan-africanista, com propostas de atividades.

Cenário permanente

O Brasil está entre os países que têm o maior índice de homicídios e de encarceramento de pessoas de origem africana, em especial os jovens – meninos negros excluídos da sociedade pelo racismo institucional que, ao invés de se tornarem protagonistas das suas histórias, vem ao mundo com o futuro definido pelo sistema de exclusão forjado no modelo escravocrata de construção do país.

Escola Comunitária Maria Gregória (Imagem: Reprodução)
Escola Comunitária Maria Gregória (Imagem: Reprodução)

Implodir esse modo imposto pelo Estado de “conceber a existência negra” é o desafio e a Educação Infantil é ponto de partida. Isso porque os primeiros anos de vida de todo ser humano são determinantes na formação do caráter.

Todo trabalho tem de começar do zero. A Educação Infantil criada pelo Estado é uma agência social que reproduz o racismo. Há escassez de atividades que trabalhem a questão étnico-racial – a criança negra inicia a sua jornada às margens, não é vista, não é contemplada, não se sente pertencente. E a consequência prática é a negação da identidade e o auto-ódio, que passam a fazer parte do inconsciente individual e coletivo.

E Maria Elisabete, a diretora, conclui:

“Eu fui uma criança preta, eu sou retinta, eu lido com o racismo desde sempre. Mas o que fez a diferença na  minha vida foi todo o amor que recebi dos meus pais. Tive uma educação cheia de carinho e cuidado. Minha mãe teve sete filhos e eu fui a única menina, a oitava. Fui muito amada, desejada, cuidada. Tive uma base de afeto que me ajudou a enfrentar o racismo lá fora e eu acredito que é o afeto, trabalhado de forma pedagógica, que fortalece as crianças para que, adultas, realizem as transformações necessárias na estrutura deste racismo doentio. É a partir do afeto que o ser humano se fortalece. E a Escola Maria Gregória, que é afeto, abraça crianças pretas e não pretas, abraça a todas.”

Fontes: Escola Comunitária Maria Gregória dos Santos/Betemel, blog Escola Comunitária Maria Gregória dos Santos, FacebooK-Quilombo de Alagoinha, Nova Escola – Campos de Experiência, UFM

Escrito em maio de 2024 e atualizado em junho de 2024

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