Ela enegrece a imprensa ao se apresentar e na análise da notícia. É, como diz, “uma adição de diversidade” em um universo dominado por uma classe média masculina e branca.
Mulher negra de origem humilde, premiada, jornalista de economia, com lugar de fala em um dos maiores conglomerados de comunicação do mundo, Flávia Oliveira tem tudo para ser muito admirada por sua presença no mundo, com seu sorriso largo e aquela aura de alguém que a gente quer ter por perto…
Apesar da aridez de sua área de especialização no jornalismo, da frieza das estatísticas, balanços e decisões governamentais que sempre noticia, Flavia Oliveira é uma negra jornalista negra, como legítima representante da Baixada Fluminense, candomblecista – que não abre mão de usar roupa branca na sexta-feira, dia de Oxalá – , apaixonada pela escola de samba Beija Flor, de Nilópolis.
Mais detalhes pessoais
Ela tem 52 anos de idade e completa 30 de carreira em 2022. É avó de Martin e mãe de Isabela. As duas, todas as terças-feiras, apresentam o podcast Angu de Grilo, onde a jornalista-mãe é chamada de FlaviaOl (seu endereço no Twitter).
Forjada na luta antirracista, estagiou em jornal de subúrbio – Duque de Caxias, descobriu-se parente, ainda que de segundo grau de uma das mais combativas e apaixonantes defensora dos Direitos Humanos da região e teve, ainda, duas colegas de trabalho reconhecidas pelo seu engajamento político.
Antes de se formar pela Universidade Federal Fluminense em 1992, Flavia profissionalizou-se como técnica em estatística pela Escola Nacional de Ciências Estatísticas.
Na Imprensa, construiu sua carreira profissional nas Organizações Globo, trabalhando em praticamente todas as plataformas midiáticas – jornal, TV, rádio e internet.
Filha de mãe solo, nascida e criada no Irajá, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro, não passou fome nem conheceu a miséria. Apesar da origem humilde, recebeu todas as assistências e estímulos necessários para profissionalizar-se.
A fonte de pesquisa para que o seu ofício se cumpra é o capitalismo, mas Flávia não anda de mãos dadas com o sistema. Autointitula-se “jornalista de socioeconomia” e escancara seu ativismo nos comentários sobre indicadores sociais, empreendedorismo, segurança pública, desigualdades de gênero e raça.
Sem nós
Quando se inicia no jornalismo, Flávia já critica a ausência de diversidade da imprensa brasileira. Em especial, nos grandes veículos. E, quando passa a integrar este universo dominado por uma classe média masculina e branca se percebe como “uma adição de diversidade”.
“A constituição das empresas jornalísticas brasileiras nasce de um país segregado. Quem tinha poder de compra para consumir informação? Era a classe média das grandes cidades. Então fazia sentido você produzir um tipo de notícia que só seria consumida por um determinado tipo de leitor, pertencente às mesmas estruturas de poder”, avalia Flávia em entrevista ao Fórum Grita Baixada .
A partir da década de 1970, lembra a jornalista, acontece o aumento da escolaridade feminina e das mulheres no mercado de trabalho. Posteriormente, com o sistema de cotas, assistimos o crescimento da presença de jovens negros da periferia nas universidades. Jovens que, além de consumidores de informação, se transformam em produtores de suas próprias informações.
Mesmo a Rede Globo muda e aumenta a presença de jornalistas negros na redação. Em termos de proporcionalidade, entretanto, ainda não estamos representados.
A presença feminina no jornalismo também deve ser considerada uma vitória, mas não uma vitória negra! Todo o processo é voltado para o aumento da diversidade, mas privilegia mulheres brancas.
Letramento
Flavia reconhece o enorme déficit de escolaridade e de qualidade de formação do povo brasileiro. Mas não acredita na ausência da educação formal como sinônimo de ausência de caminhos para o povo negro. Para ela, este é um modo europeu de compreender o que é educação, compreensão da vida, letramento:
“Nunca tivemos tantas oportunidades de compartilhar e produzir mensagens e conteúdos dentro das mais variadas formas: áudios, vídeos, memes, pequenos cartazes. Cada um de nós virou um produtor de conteúdo, mas poucos têm essa missão como ofício. É fundamental não nos rendermos a uma dimensão de carência que é a baixa escolaridade.”
E explica:
“A maior taxa de analfabetismo está concentrada na população com 60 anos ou mais. Mas mesmo essas pessoas mais antigas são capazes de aprender, incorporar e absorver conhecimento. Tanto que eles retornam ao mercado de trabalho após a aposentadoria, voltam a sustentar famílias. A história oral é uma forma de transmissão de conhecimento ancestral, sofisticada, eficiente e nos trouxe até aqui. Daí é que temos que nos perguntar como as comunidades quilombolas e indígenas sobrevivem ‘iletradas’?”
Quer um exemplo?
Flavia Oliveira é filha de uma geração de mulheres iletradas que avançaram no seu tempo, migraram, saíram do Nordeste – sua mãe era baiana -, se inseriram no mercado de trabalho da forma que era possível. “O fato de essas pessoas não saberem ler ou escrever não significa que elas sejam merecedoras de uma informação de baixa qualidade. A informação pode – e deve – ser produzida de uma forma que elas compreendam.” Este é, aliás, o papel dos meios de comunicação.
Top
Flavia sente o peso da responsabilidade de ser quem é. Mas é, para ela, um “peso prazeroso”, de se saber uma referência, de ter esse reconhecimento.
“Sou procurada por jovens estudantes, tento ser bastante acessível, até porque isso diz respeito à minha própria trajetória, que transcende uma mobilidade social que não está posta para todos os brasileiros. Sou a exceção que confirma a regra e tento não ser cínica em relação a isso. Não posso dizer ‘se eu consegui, qualquer um consegue’.
Havia uma pressão natural, onde ela morava, para que os jovens de 17, 18 anos começassem a trabalhar desde cedo para ajudar em casa. Sua mãe, entretanto, pensava diferente e só tinha ela para cuidar.
Na primeira vez que passou no vestibular, na Universidade Gama Filho, não cursou porque não tinha como pagar. Sua mãe, então, a matriculou em um cursinho preparatório e, na segunda tentativa, conseguiu entrar para a Universidade Federal Fluminense.
“Eu tenho consciência dos meus privilégios e das pequenas peças que me tornaram essa exceção. Eu não tinha irmãos, portanto eram menos bocas para comer. Não sou uma negra retinta num ambiente muito racista que é a sociedade brasileira. Tenho um tom de pele mais discreto e menos ostensivo…”
Ativismo
E por saber tudo disso, ela reafirma diariamente o seu compromisso de denunciar assimetrias e desigualdades, de levar um ponto de vista que passe por essa experiência de vida que teve e não tem mais.
Desde que se tornou independente – há sete anos -, sem relação de trabalho celetista com as empresas, Flávia se permite dividir o tempo entre o trabalho jornalístico convencional e o ativismo pelas mulheres, pelos jovens negros favelados, contra o racismo e a intolerância religiosa.
“Acho importante eu aparecer de cabelo crespo na GloboNews falando de economia. Sei que estou quebrando um estereótipo. Muitos perguntam assim pra mim. “Você é jornalista de quê? De cultura, de sindicato?” “Ué? Você não é passista de escola de samba?” (pergunta de forma bem irônica). Quando respondo que sou de economia, é um espanto.”
“Quer dizer… – pontua – não posso me dar o desplante de ser uma “preta fútil, preta patricinha” 24 horas por dia. Eu não tenho esse direito, porque o Brasil é desse jeito. Ou tenho? Não sei. Eu sei que preciso falar sobre a objetificação e sexualização da mulher preta, dos altos índices de feminicídio que atingem muito mais as mulheres pretas e periféricas, da falta de representatividade nos poderes, sobre as declarações racistas feitas por autoridades.
Em contrapartida, às vezes, eu gostaria muito de ser entrevistada sobre Economia, mas através da ótica da acumulação e não apenas da inclusão. Sobre vinhos, sapatos, viagens internacionais. Mas, normalmente, são pessoas brancas que fornecem esse tipo de depoimento.”
Jornalista econômica
Na Economia, você se adequa a algumas correntes de pensamento. Temos os monetaristas e os desenvolvimentistas. Flavia, se tiver de se inserir em um desses grupos, é mais desenvolvimentista, da escola que trata de modelos de criação de trabalho.
Sua rotina inclui ler muito sobre decisões tomadas pelas equipes econômicas, tendências e processos que se desenvolvem a partir dessas decisões, evitando, ao máximo, se apaixonar por uma alguma linha que possa ser ideologicamente mais identificável, a ponto de não enxergar as deficiências.
E cita o Bolsa Família como um exemplo de programa econômico com o qual se identifica, mas sobre o qual não deixa de ter um olhar crítico também:
“O Bolsa Família foi uma grande engenharia de política social do Brasil. Mas o programa demorou a incorporar os jovens…”
Outro exemplo é a Lei de Cotas, que tem de ser prorrogada daqui um ano:
“Eu sou muito entusiasmada pela política de cotas, mas em que medida isso transbordou para se criar oportunidades de inserção no mercado de trabalho? Muitos jovens e adultos negras e negros periféricos se graduaram na universidade, mas não conseguiram bons empregos com boas remunerações.”
Racismo e Economia
A área em que escolheu atuar, Flávia tem consciência, privilegia determinados grupos em detrimento da maioria do povo. “A estrutura econômica serve apenas a uma parcela da população”. Ela está a serviço da manutenção das desigualdades, num contexto, também, de racismo ambiental, com a ausência de indicadores de serviços básicos para toda a população.
“Pobreza hoje em dia não é apenas viver com um ¼ do salário mínimo. Trata-se não apenas de perda ou insuficiência de renda, mas um montante de processos de deterioração do estado de bem estar social. São as chamadas variáveis da pobreza multidimensional” – ensina a jornalista de socioeconomia.
“Você pode ganhar R$ 5 mil reais por mês e morar na Rocinha. Se na sua rua não tiver saneamento básico, coleta regular de lixo, acesso à água potável, energia elétrica, você está inserido numa dimensão de pobreza que tem consequências sobre a sua saúde e a saúde da sua família.”
“Não ter laje ou ter uma parede repleta de infiltrações, a habitação ser de reboco, pau a pique, também são fatores multidimensionais de pobreza pela ótica da Economia. Tudo isso tem a ver com racismo e privilégio de classe”.
E Flávia responde a dois questionamentos que, gostaria, seus colegas de profissão se apropriassem:
1. Como é que nós estamos entre as 10 maiores economias do mundo e somos o octogésimo lugar em índices de desenvolvimento humano?
2. Como é que temos uma das mais amplas e sofisticadas redes de serviços do mundo, mas temos ao mesmo tempo uma das maiores populações de desempregados do planeta?
Currículo
Nossa jornalista, única, é de 2 de agosto de 1969, carioca e na carteira de identidade assina Flavia Oliveira da Fraga. Sua carreira como jornalista profissional se inicia no Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro. Depois, é Globo.
Primeiro, o jornal impresso, onde trabalha como repórter de economia de 1994 a 2000; como editora de suplementos especiais de 2001 a 2005, e colunista de Negócios & Cia, a partir de agosto de 2006.
Desde 2009, é comentarista de economia do programa Estúdio i, na Globonews, canal por assinatura. Em abril de 2011, ocupa o posto de comentarista de finanças pessoais e economia doméstica nos programas Bom Dia Rio e RJTV, da Globo Rio.
A pandemia só fez aumentar sua carga de trabalho, como comentarista da CBN e dos programas Em Pauta e Jornal das Dez, também na Globonews.
Reconhecimento profissional
2001 – Prêmio Esso de Jornalismo, na categoria Melhor Contribuição à Imprensa, com a série de reportagens Retratos do Rio
2002 – prêmios Fiat Allis de Jornalismo Econômico, Ayrton Senna e Imprensa Embratel, pelo caderno Pirataria S/A, junto com Nelson Vasconcelos
2003 – Prêmio Imprensa Embratel, pelo caderno Exclusão Digital, junto com Vasconcelos; Prêmio Jornalismo para Tolerância, da Federação Internacional de Jornalistas, por seu trabalho como co-editora do suplemento A Cor do Brasil, no jornal O Globo, e Prêmio Elizabeth Neuffer da Associação dos Correspondentes da ONU – Organização das Nações Unidas, pela série de reportagens sobre desenvolvimento humano, junto com a jornalista Luciana Rodrigues
2021 – Finalista no Troféu Mulher Imprensa, e no Prêmio dos Mais Admirados Jornalistas de Economia e Finanças
*Este texto foi extraído das três horas de conversa que Fábio Leon teve com a jornalista Flávia Oliveira para o Fórum Grita Baixada em 31 de janeiro de 2020, intitulado “Não existe cortina de fumaça e, sim, um projeto de governo“.
Acesse a entrevista completa, realizada pelo Fórum Grita Baixada.
Complementos: Wikipédia e Geledés
Escrito em 8 de dezembro de 2021
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A Flávia Oliveira é uma jornalista top!