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Madame Satã, uma travesti artista militante

Figura lendária da Lapa carioca, viveu entre luz e sombra, arte e luta. Nascido João Francisco dos Santos, foi muito mais do que as histórias de malandragem sugerem. Artista, capoeirista, cozinheiro, e acima de tudo, um militante que não aceitava injustiças. Sua vida é testemunho de resistência, criatividade e coragem.

Madame Satã é história. E história importante de ser contada. A artista nasce 12 anos depois da assinatura da Lei Áurea, a tal que “libertou” para o abandono  o povo preto. E com 7 anos de idade, foi trocado por uma égua, para garantir que seus 17 irmãos comessem – o pai morreu e a mãe, viúva, deu esta solução. Mas, quando foi trocado por uma égua, existia a promessa de que iria estudar. Na vida real, entretanto, se torna escravo em uma fazenda. Foge com dona Felicidade, mulher que pelo nome indicava que o mundo iria sorrir, só que ela o transforma em escravo doméstico em sua pensão. Foge de novo, sozinho, é mais um menino de rua no Rio de Janeiro. E, depois, malandro, ladrão, proxeneta,  protetor de crianças abandonadas, artista.

Na sua sede de vida se defendia do mundo usando, principalmente, golpes de capoeira. E se saiu bem! Madame Satã, com sua identidade ambígua e fluida, não faz parte das estatísticas de negros mortos pela polícia – viveu até os 75 anos.

Muitos dos 27 anos e dez meses que passou na cadeia, contudo, têm a ver com a sua luta contra a violência policial e contra a homofobia – ele não aceitava apanhar da polícia nem ser “xingado de viado”:

“Essa mania da polícia chegar, bater e começar a fazer covardia, eu levantava e pedia a eles pra não fazer isso. Afinal de contas, se o sujeito estiver errado, eles que prendam, botem na cadeia, processem, tá certo. Agora, bater no meio da rua fica ridículo. Afinal, nós somos seres humanos” – disse em entrevista ao jornal O Pasquim, aos 71 anos de idade, quando denunciou que a violência maior era contra pobres, negras e homossexuais, suas três identidades.

Declaração que não perde atualidade e que também o coloca como ativista LGBTQI+ pioneiro.

Aos 13 anos, já tinha experiências hetero e homossexuais, embora afirmasse “gostar  mais de ser bicha”-  como consta do livro Memórias de Madame Satã, escrito por Sylvan Paezzo, de 1974.

Outras de suas frases que contam como ele estava no mundo são:

“Eu sou bicha porque eu quero e não deixo de ser homem por isso.”

“Sou viado. Mas homem que é homem resolve no soco de esquerda,

se defende na canhota.”

João era capoeira – outro crime “criado” em 1890 com o “fim” da escravidão – e também se apresentava como Benedita Itabajá da Silva, Josefa e se tratava por “minha pessoa” no lugar do “eu” – como conta o premiado Madame Satã, o premiado filme de ficção, inspirado em sua vida e que leva o seu nome, de Karim Aïnouz, de 2002, com Lázaro Ramos, em início de carreira, no papel principal.

Este é um resumo da história de Madame Satã, nascido João Francisco dos Santos no dia 25 de fevereiro de 1900, “arquétipo da malandragem carioca, embora fosse pernambucano de Glória do Goitá, figura emblemática da vida noturna e marginal do Rio de Janeiro, que residia e frequentava a boemia da Lapa, sendo, na primeira metade do século XX, talvez seu personagem central” – como consta de matéria publicada no site da Fundação Palmares.

No meu olhar – que pode ser considerado romântico -, vejo um malandro, um cafetão que, como todos, é luz e sombra, vivia os extremos entre o bem e o mal: protegia prostitutas, adotava crianças – criou seis -, tinha sensibilidade de artista e a violência de quem mesmo livre foi abandonado, escravizado, enganado. Sentia uma raiva profunda, crescente, por saber-se sem direitos. Raiva que se misturava com o sonho de brilhar nos palcos, ser respeitado:

“Minha pessoa vai virar um artista consagrado” – dizia.

Inspiração policial

João, filho de Firmina dos Santos e Manoel Francisco dos Santos, o mais temido malandro da Lapa carioca, foi “batizado” artisticamente dentro de uma delegacia de polícia, quando tinha 38 anos e já vivia a condição de ex-detento.

Na verdade, esta história acontece um pouco depois de ele sair da cadeia e decidir participar do concurso de fantasias carnavalescas do bloco Caçadores de Veados, no Teatro República.

Com uma roupa inspirada em um morcego típico de sua terra natal, João – de capa, máscara e lantejoulas -, conquista o primeiro lugar. Vira notícia.

Passados alguns dias, vida normal, seguida de prisão por crime de vadiagem  – criação do Código Penal, em 1890, no pós-abolição para seguir impedindo o viver negro.

João é detido com um grupo de travestis, recusa-se a dar seu nome, mas é reconhecido como o vencedor do “concurso das bichas”. Imediatamente, o delegado associa sua fantasia ao filme “Madam Satan”, de Cecil B. DeMille, em cartaz na época, e o ficha como “Madame Satã”.

Não demora, a história se espalha pela cidade. E, em pouco tempo, o apelido se integra à lenda.

Na imagem vemos Angela Brooks, interpretada pela atriz Kay Johnson, fantasiada de diaba para conquistar o marido.
Cena do filme “Madame Satã”, de Cecil B. DeMille

Passos na rua

Aos 13 anos, João conquistou a liberdade das ruas, seu lar. E fez de tudo em nome da sobrevivência: cometeu pequenos furtos, trabalhou como vendedor ambulante, garçom, cozinheiro, aprendiz de malandro…  

Seu primeiro “professor”? Sete Coroas, cafetão muito conhecido na Lapa, que lhe ensinou também truques com a navalha. Quando morreu, em 1923, Sete Coroas deixou João no seu lugar.

Mas, na época, João já sonhava em ser artista. Sonho que nasceu em seu coração aos 22 anos, por conta da temporada no Rio da companhia francesa Ba-ta-clan, com seu teatro de revista.

A aparição de estreia da primeira travesti artista do Brasil acontece no teatro Casa de Caboclo, na praça Tiradentes, em 1928, com a Mulata do Balacochê no espetáculo Loucos em Copacabana.

E ele aparece rebolando – inspirando-se na amiga Bituca, que se torna conhecida como Carmem Miranda, em um número clássico de seu repertório, Mullher de Besteira”. Queria ser a  Josephine Baker made in Brazil, de quem se dizia “devoto”. Mas sua primeira prisão interrompeu a carreira que mal começava.

Tudo aconteceu após a sua segunda apresentação. João respondeu com dois tiros de pistola à provocação de um vigilante noturno que o chamou de “viado”. Condenado a 16 anos de reclusão, saiu um pouco antes.

No xilindró

Xilogravura feita por Erivaldo que mostra Madame Satã lutando capoeira com um policial.

Entre 1928 e 1965,  foram quase 28 os anos de entra-e-sai da prisão, por conta dos 10 processos, de um total de 27, nos quais foi condenado.

Seus crimes? Homicídios, agressões, furtos, desacatos, resistências a prisão, ultraje ao pudor,  porte de arma… 

Fora da prisão, mas com ficha criminal, sem estudo e com desejo de vingança permanente dos policiais, João não saia da mira da lei.

Sua identificação em um dos processos, com data de 12 de maio de 1932, dá a exata medida de quem ele era para a polícia:

“Desordeiro. Pederasta passivo. Usa suas sobrancelhas raspadas e adota atitudes femininas, alterando até a própria voz. Não tem religião alguma. Fuma, joga e é dado ao vício da embriaguez. Sua instrução é rudimentar (…). É de pouca inteligência. Não gosta do convívio da sociedade por ver que esta o repele, dados seus vícios. É visto sempre entre pederastas, prostitutas, proxenetas e outras pessoas do mais baixo nível social. Ufana-se em possuir economia, mas como não afere proventos de trabalho digno, só podem ser essas economias fruto de atos repulsivos ou criminosos. Já responde vários processos e sempre que é ouvido em cartório provoca incidentes e agride funcionários da polícia. É indivíduo de temperamento calculado, propenso a crimes.  Inteiramente nocivo à sociedade.”

Homem de bem

Uma vez, quando saiu da prisão, decidido a mudar de vida, João adotou uma menina, e abriu seu primeiro negócio: uma lavanderia. Mas a polícia não acreditou no novo João, tentou incriminá-lo pela morte de um homossexual, o torturou por três dias para que confessasse o crime. Não deu certo. E a lavanderia também não.

Aí, ele abriu uma pensão. A ideia era oferecer abrigo para as meretrizes, pausa para o descanso mesmo. Mas o sucesso chamou atenção da polícia – as autoridades acreditavam que a pensão, na verdade, era um prostíbulo.

Chamado para depor – explorar, estimular ou facilitar a prostituição era crime -, levou um tapa do delegado, revidou, apanhou dos policiais. Foi  absolvido no caso da pensão, mas condenado a um ano e 6 meses por agressão.

De outra feita, cumprida a pena, decidiu aventurar-se na capital paulista. Atirou em policial, cumpriu 13 meses na prisão e assinou um termo de compromisso de que não voltaria ao estado nos próximos dez anos.

De volta à cena carioca no auge dos anos 1950, decide fazer um teste no teatro novo da cidade. É aprovado e passa a imitar Carmen Miranda no palco.

Terminada a temporada no Rio, a peça segue para São Paulo. Ele vai junto e não tem problemas enquanto atua no interior. Ao chegar na capital, porém, o sucesso do espetáculo chama a atenção da polícia que o expulsa de novo.

Anos mais tarde, após deixar a prisão pela última vez, a imitação de Madame Satã como Carmen Miranda vira show na boate Cafona’s.

Dois anos antes de morrer, aos 74 anos,  Madame Satã ainda trabalhava – no  musical Lampião no Inferno, escrito por Jairo Lima, interpretava o próprio Satanás.

Indigência

Madame Satã morreu de câncer pulmonar em 12 de abril de 1976 – estava internado como indigente em um hospital público no Rio de Janeiro – sem direito a manchetes nos  jornais diários da cidade onde viveu. Pesava 46 quilos.

Em seu enterro, um último desejo realizado: partir com seu chapéu panamá e  com duas rosas vermelhas sobre o caixão.

Ainda hoje, Madame Satã é referência, inspira e incomoda.

Sua história foi utilizada pela companhia mineira Grupo dos Dez  para debater a homoafetividade da população negra; se revelou em dois filmes – Madame Satã e Rainha Diaba;  transformou-se em cifras na música Carangueijo da Praia das Virtudes, seu apelido, da Nação Zumbi, e é caminho para a reflexão sobre aspectos da sociedade brasileira O Rei da Lapa: Madame Satã e a Malandragem Carioca – Uma história de violência no Rio de Janeiro dos anos 30-50, de Gilmar Rocha.

Seu nome artístico marcou toda uma geração paulistana, na década de 1980, com um “inferninho underground”, cena do rock na cidade, e em  2015, a escola de samba Portela o homenageou no desfile pelos 450 anos da cidade do Rio.

Sobre o incômodo , registre-se que em outubro de 2020 seu nome foi apagado da lista, que celebra Personalidade Negras, no site da Fundação Cultural Palmares, de onde reproduzo o texto abaixo, nas aspas: 

Tudo remete à ironia de Madame, o “exímio cozinheiro e grande folião, que na boemia, além da malandragem e da marginália, conviveu e fez amizade com muitos artistas que integraram a Era de Ouro das rádios nacionais (…)”.

“A figura de Madame Satã mesclava a virilidade, que constitui a persona do malandro, sua homossexualidade e as performances artísticas nos carnavais.

E some-se o fato de ter sido casado com a mesma mulher desde seus 34 anos.”

Conheça mais figuras negras LGBTQI marcantes da nossa história clicando aqui

Fontes: Fundação Palmares, Itau Cultural, Wikipedia, Revista Hibrida, YouTube

Escrito em 23 de maio de 2021

6 comentários em “Madame Satã, uma travesti artista militante”

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