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Ballroom: resistência e celebração

Você já ouviu falar da cultura Ballroom? Este movimento fascinante, nascido no coração da comunidade LGBTQIAP+ nos Estados Unidos, é muito mais do que apenas dança e moda; é um grito de resistência, um abraço caloroso de aceitação e um palco brilhante para expressão autêntica. Desde os seus primórdios nos anos 1920 até o seu florescimento nos anos 1980, o Ballroom tem sido um refúgio para aqueles marginalizados pela sociedade, um lugar onde todos podem brilhar.

A primeira ‘sub’cultura de resistência LGBTQIAP+, um espaço para ser quem se quer ser, de existência plena.

Lendas do ballroom posam juntas.
Lendas do ballroom posam juntas. No fundo: Angie Xtravaganza, Kim Pendavis, Pepper Labeija, Junior Labeija. No meio: David Ultima Xtravaganza, Octavia St. Laurent, Dorian Corey, Willi Ninja. Na frente: Freddie Pendavis. (Imagem: Janus Films, 1990)

Durante os anos de 1980 um movimento agita o cenário da cultura underground nos Estados Unidos. Considerado uma ‘subcultura’ LGBTQIAP +, o Ballroom – conhecido também como “Ball Culture” – é sinônimo de resistência e celebração. 

Traduzida, a palavra significa o “salão de baile” e, a princípio, o movimento era apenas uma festa para a comunidade. Isso no começo do século passado. 

Comenta-se que, nos anos 1920, nos Estados Unidos, pessoas LGBTQIAP+ se encontravam e vestiam roupas do gênero oposto. Tal prática, porém, era condenável. Daí haverem poucos registros.

O Ballroom de hoje surge em meados dos anos 1950, nos bailes que reúnem pessoas que não são aceitas em outros lugares, que celebram a vida que o resto do mundo não considera digna de celebrar.

Nessa época, 70 anos atrás, o ápice da festa eram os desfiles, nos quais quem concorria representava, na passarela, um tema sugerido pelos organizadores do evento. No final, sempre uma pessoa branca vencia.

A resistência Ballroom não contemplava a questão de raça. Ou melhor, contemplava utilizando a lente racista da segregação explícita em vigor nos Estados Unidos e ‘travestida’ no Brasil. 

Mãe negra LGBTQIAP+

Tudo muda com o surgimento e a indignação de Crystal Labeija, uma mulher trans e negra, que performa em Balls e escancara o racismo questionando as premiações sempre brancas.

Crystal Labeija (Imagem: reprodução)
Crystal Labeija (Imagem: reprodução)

Inicialmente, ela era conhecida na cena drag de Manhattan como Crystal LaAsia. Mudou seu nome para Crystal Labeija por suas amigas latinas a chamarem de “La Belleza” – ‘Labeija’ é a sonoridade da expressão ‘a beleza’, em espanhol.

Uma curiosidade que tem o toque da crueldade: naquele tempo era ‘comum’ drag queens – performance temporária, sem ligação com a orientação sexual – e pessoas trans – que não se identificam com o gênero assinalado na certidão de nascimento -, que performavam em balls, branquearem seus rostos com maquiagem para terem alguma chance de vitória na competição.

Crystal Labeija tornou-se conhecida por questionar a mesa de jurados durante as competições. Seus discursos são repetidos até hoje na comunidade LGBTQIAP+, como o clássico: “I have the right to show my color, darling. I am beautiful and I KNOW I’m…”

Em bom português: 

 “Eu tenho o direito de mostrar a minha cor, querida! Eu sou linda, e EU SEI que sou linda!” 

A competição, marcada por este discurso, está no documentário do Miss All-America Camp Beauty Pageant, intitulado The Queen. Ele registra a indignação de Crystal Labeija ao perceber que a queen branca Rachel Harlow estava sendo favorecida.

Em 1972, junto de Lottie LaBeija, outra drag queen negra, Crystal promove o primeiro Ball somente para pessoas negras e latinas:

 Crystal & Lottie LaBeija presents the first annual House of Labeija Ball at Up the Downstairs Case on West 115th Street & 5th Avenue in Harlem, NY.

(*O primeiro Ball anual da ‘House of Labeija’ seguido do endereço de onde o baile seria realizado)

Este o evento pioneiro que desencadeou todo o sistema da cultura Ballroom como conhecemos hoje. 

Daí surge a expressão “house” – não como indicativo de ‘casa’, mas de contexto familiar. 

Crystal é a primeira mãe. Sua casa, o lar – a House of Labeija, a primeira família, a primeira House da cultura Ballroom. A primeira de muitas… A partir dela, surgem dezenas de outras famílias encabeçadas por pessoas negras e latinas da comunidade LGBTQIAP + que sediam bailes e competem entre si.

Mother, Father and Children

Ser negro, ser negra, cis, LGBTQIAP+… Cada palavra, cada letra da sigla transmite uma informação que, em nossa sociedade, representa uma discriminação a mais… fora as outras ligadas a classe, poder político, econômico, limitações físicas, religiosidade…. Diferenças são riquezas, entretanto, no mundo em que vivemos vítimas e algozes se confundem. 

As comunidades negras e latinas dos Estados Unidos sabem, desde sempre, o que é o preconceito,a segregação racial, mas isso nunca as impediu de serem homofóbicas. 

“Quando você é gay, você monitora tudo. Monitora como aparenta, como se veste, como fala, como age. ‘Será que me viram? O que pensam de mim?’

– Junior Labeija em Paris is Buring (1991)

É daí que surge, também, a necessidade de se ressignificar não a estrutura familiar, mas o conceito de família, como sinônimo verdadeiro de acolhimento e orientação. 

As famílias da cultura Ballroom reproduzem a hierarquia familiar, o suporte de uma estrutura doméstica e é composta de pai ou mãe e filhos, chamados ‘crianças’. Uma casa é a família que a pessoa escolhe… Que dá amor, dá abrigo e um lar para quem precisa. E também impõe regras de boa convivência.

House of Xtravaganza (Foto: Timothy Greenfield-Sanders)
House of Xtravaganza (Foto: Timothy Greenfield-Sanders)

Todos vivem juntos, sob a proteção dos mais velhos. E o todos se refere às pessoas LGBTQIAP + expulsas de suas famílias biológicas, que vivem uma situação difícil com os pais por conta de sua sexualidade ou já se encontram em situação de rua.

 “Nós como pessoas gays podemos escolher nossa família e as pessoas que nos cercam.”

Rupaul Charles em Rupaul’s Drag Race (2013)

As casas, com suas famílias, se desafiam em bailes em busca de troféus, de visibilidade, de viver o sonho da glória, de entrar para a história. Existe uma simbologia implícita: as casas se desafiam para que a família exista. 

Entre as mais famosas, na cena estadunidense, que se tornaram lendárias, além da House of Labeija, Aviance, Ninja, Dupree, Mizrahi, Miyake Mugler, Comme Des Garcons, Lanvin, Balenciaga, Prodigy, Icon, Nina Oricci e West.

Algumas – como Channel e Xtravaganza – possuem o nome de grandes marcas e designers para afirmar sua opulência, já que o visual está entre um dos valores mais importantes em uma família.

Nos bailes, também, há os que não integram nenhuma família, mas que querem competir. São intitulados “free agents”. Geralmente utilizam “007” após o seu nome, ao invés do sobrenome de alguma house.

The category is…

Durante um baile, as mães ou pais escolhem um ou mais de seus filhos para competir nas categorias anunciadas pelo Mestre de Cerimônia, o MC, responsável por alinhar as categorias com o tema do baile. 

As disputas incluem de desfiles a batalhas de dança, de vogue – que mais que uma dança inspirada na pose das manequins da revista de moda e estilo de vida americana Vogue, criada em 1892, é uma afirmação.

Legacy Voguing Ball, no New York Union Square Club, Nov. 27, 1991. (Imagem: QX/ASSOCIATED PRESS)
Legacy Voguing Ball, no New York Union Square Club, 1991. (Imagem: QX/ASSOCIATED PRESS)

Nos desfiles tudo pode ser representado: mulheres finas da alta costura, homem de negócios de Wall Street, estilo de vida dos ricos e famosos… A passarela é o espaço da fantasia, o lugar de representações ficcionais, de performar a vida dos outros, fazer isso com maestria e impressionar os jurados.

“Na vida real, você não pode conseguir um emprego como executivo a menos que tenha formação educacional e oportunidade. Agora, o fato de que você não é um executivo é meramente por causa da posição social da vida … Em um Ballroom, você pode ser o que você quiser.”

Dorian Corey em Paris Is Burning (1991)

Ao final, os jurados convidados, pessoas com notoriedade e conhecimento sobre a cena, levantam as placas com o número de pontos. Aqueles que conseguirem só notas 10 levam os troféus para casa.

Uma das características mais fortes e presentes nas categorias apresentadas em um ball são as poses, no meio ou no final de uma batalha.. Reproduzir com os corpos hieróglifos egípcios ou capas de revista, por exemplo, são formas de dizer que aqueles corpos possuem seu valor.

A cultura Ballroom foi criada para o acolhimento. Não são os corpos que são julgados, a aparência, mas a arte, a performance, o belo não limitado ao padrão eurocêntrico, de gênero ou de biótipo.

“Servir um carão é como fazer o seu adversário engolir as próprias palavras.”
Octavia St. Laurent em Paris is Burning (1991)

*Carão” é o rosto ‘inexpressivo’ que informa a que veio, aquela “cara de paisagem”.

Quanto às categorias, são as mais variadas: Face, o ‘carão’; Best Dressed (melhor vestido); Body – o corpo mais belo; Hands Performance – a melhor história contada apenas com movimentos das mãos; Bizarre – a roupa mais criativa e fora do comum de acordo com a temática, e Realness – a roupa que mais traduz a realidade de acordo com a temática proposta.

Vamos dançar?

Nas pistas, as batalhas de dança têm categorias específicas: 

Oldway (estilo antigo) – primeiro estilo que surgiu na cultura, onde não há muitas acrobacias e rapidez, mas movimentos precisos, formando ângulos retos e simétricos com os membros do corpo.

New way (estilo novo) – de meados dos anos 1990, um pouco mais rápido do que o Oldway, inclui os movimentos de hand illusions (ilusões de mãos) e exige um pouco mais de flexibilidade.

Vogue Femme – que rouba a cena, com movimentos que representam a feminilidade de forma exagerada e se divide em diversas classificações, do soft, gracioso e delicado, ao dramatics, mais agressivo.

No Vogue Femme, o performer deve incorporar os cinco elementos principais em sua apresentação. São eles:

Hands performance: As mãos devem ser utilizadas para “contar uma história.”

Catwalk: O desfilar fazendo poses não deve ser esquecido.

Duckwalk: ou andar com os joelhos flexionados, agachado, que é outra maneira de se movimentar na passarela.

Floor Performance: A performance no chão enquanto realiza outros movimentos da dança.

Spins & Dips: Giros/piruetas e quedas, como mergulhos no chão, que chamam muito a atenção do público. 

*Imagens de Alex Mugler para Boiler Room

Pajubá 

Com um jeito de vestir, de andar e de se comportar obviamente há de ter um jeito de falar. No Ballroom, surge uma linguagem própria – gírias utilizadas pela comunidade LGBTQIAP + a maioria em inglês – utilizada em todo o mundo todo.

No Brasil, temos a linguagem “Pajubá”, mais usada pelas travestis. Mas também nos apropriamos de expressões em inglês como reading e shade, com significados para além da tradução ao pé-da-letra..

Reading, em tradução livre ballroom, é insultar alguém diretamente.

Shade é indireta, destaque sutil à característica da pessoa insultada. 

E insultos, às vezes pesados, fazem parte da cena ballroom.

“Shade vem de Reading. Reading veio primeiro. Reading é a verdadeira arte do insulto.”

Dorian Corey em Paris Is Burning (1991)

Willi Ninja (Foto: Chantal Regnault)
Willi Ninja (Foto: Chantal Regnault)

“Shade é eu não te chamar de feia, mas eu não preciso porque você sabe que é feia… E isso foi um shade”

Dorian Corey em Paris Is Burning (1991)

Willi Ninja, mother da lendária House of Ninja e nomeado padrinho do vogue, dizia que as batalhas de vogue eram uma forma de jogar um “shade” no adversário apenas com movimentos, sem proferir uma palavra.

Preto cria, branco co*** 

A cultura Ballroom, assim como outras diversas culturas criadas por pretos, é fonte de inspiração e sucesso – para não dizer apropriação.

O que chamamos de moda conceitual – roupas espalhafatosas, incomuns e inutilizáveis -, por exemplo, poderia ser facilmente um desfile da categoria Bizarre no Ballroom.

No mundo da dança e da música muitos artistas já utilizaram as batidas musicais para vogue, como Cunt, de Kevin Aviance, e The Ha, de Masters at Work.

A cantora Madonna popularizou a cultura Ballroom nos anos 1990, mas depois que o hit saiu das paradas as pessoas do verdadeiro Ballroom foram esquecidas.

O documentário Paris is Burning, de 1991, que retrata a cena Ballroom nos anos 1980, conta com figuras consideradas lendárias como: Dorian Corey, Freddie Pendavis, Kim Pendavis, Pepper LaBeija, Octavia St. Laurent, Venus Xtravaganza e Willi Ninja. Dirigido por uma mulher branca, é o mais aclamado e utilizado como fonte de pesquisa e inspiração.

A categoria é: Representatividade importa

A série com maior elenco trans da história da televisão, Pose, dá visibilidade para a população preta e latina do Ballroom, retrata a vida de pessoas da cena Ballroom entre os anos 1980 e 1990 em Nova Iorque, as confusões entre houses rivais, a epidemia da aids, preconceitos raciais e de gênero.

Cena de Pose em que se mostra o juri do baile (Imagem: Netflix)
Cena de Pose em que se mostra o juri do baile (Imagem: Netflix)

A série dramática traz pioneirismos à população LGBTQIAP+:

  • Billie Porter, o primeiro prêmio Emmy de um ator negro e gay, 
  • Mj Rodriguez, a primeira mulher trans negra a concorrer a um Emmy de melhor atriz.

Além de Pose, o mundo do streaming estreou Legendary, em 2020, um reality show de performance de vogue, no qual houses reais se enfrentam em diversas categorias, com Leiomy Maldonado no júri e Dashaun Wesley como apresentador, considerados, respectivamente, rainha e rei do vogue na atualidade.

O multipremiado reality show de competição entre drag queens, Rupaul ‘s Drag Race também possui muitas referências e inspirações.


Conheça também a trajetória da Madame Satã, ativista que marcou a história do Brasil.

Fontes: Redbull, Bilboard, 

Ballroom: A Dança da Resistência e da Celebração LGBTQIAP+

A cultura Ballroom, também conhecida como “Ball Culture”, emergiu como uma poderosa forma de expressão para a comunidade LGBTQIAP+ nos Estados Unidos, particularmente entre pessoas negras e latinas. Originada como festas e competições de dança, a cultura evoluiu para incluir “balls” (bailes) onde participantes competem em várias categorias, desde vogue até “realness”, desafiando normas de gênero e celebrando a diversidade. Figuras icônicas como Crystal Labeija desempenharam papéis cruciais na luta contra o racismo dentro do movimento, levando à formação de “houses” ou famílias, que oferecem suporte e comunidade para seus membros. Hoje, a cultura Ballroom continua a ser um espaço vital para resistência, celebração e afirmação da identidade.

O que é a cultura Ballroom? A cultura Ballroom é uma expressão única da comunidade LGBTQIAP+ que combina dança, moda e performance em competições de baile, conhecidas como “balls”, celebrando a diversidade e a resistência contra a marginalização.

Quem foi Crystal Labeija? Crystal Labeija foi uma mulher trans negra e figura icônica na cultura Ballroom, conhecida por sua luta contra o racismo e a segregação nos bailes, e por fundar a House of Labeija, a primeira “house” ou família dentro da cultura Ballroom.

O que são “houses” na cultura Ballroom? “Houses” são grupos ou famílias dentro da cultura Ballroom que funcionam como redes de suporte para seus membros, muitas vezes proporcionando um senso de pertencimento e comunidade para pessoas LGBTQIAP+ marginalizadas por suas famílias biológicas.

Como a cultura Ballroom desafia as normas de gênero? Através de categorias como “realness”, a cultura Ballroom desafia e subverte as normas de gênero tradicionais, permitindo que os participantes expressem sua identidade de gênero de maneira autêntica e celebrada, independentemente de se alinharem ou não com as expectativas sociais.

Qual é o impacto da cultura Ballroom hoje? A cultura Ballroom continua a ser um espaço vital para a expressão e celebração da identidade LGBTQIAP+, influenciando a moda, a música e a dança mainstream, ao mesmo tempo em que oferece uma comunidade de suporte para aqueles que ainda enfrentam marginalização e discriminação.

3 comentários em “Ballroom: resistência e celebração”

  1. Pingback: Moda e som em diálogo atemporal! • Primeiros Negros

  2. Pingback: da negatividade de heterotopias queerfuturistas | ruína acesa

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