Negra, gay, travesti, rainha, prostituta, revolucionária, ícone do movimento transgênero e precursora do movimento gay nos anos 1960.
Por Lyllian Bragança
O que este artigo responde: Quem foi Marsha P. Stonewall? Qual é o pioneirismo de Marsha P. Stonewall? Qual foi o papel de Marsha P. Stonewall no movimento pelos direitos LGBTQ+? Além de seu ativismo, o que mais Marsha P. Stonewall fez? Por que Marsha P. Stonewall é especialmente significativa na história dos direitos LGBTQ+?
Marsha P. Johnson carrega a história de um bebê do sexo biológico masculino, batizado Malcolm Michaels, filho de Malcolm Michaels Sr. e Alberta Claiborne, nascido na cidade de Elizabeth, Nova Jersey, em 24 de agosto de 1945.
Marsha P. Johnson carrega a história de uma mulher trans, drag queen, prostituta, que perto de completar 24 anos, no dia 28 de junho de 1969 – inspiração para o Dia Internacional do Orgulho Gay -, está na liderança de uma série de protestos em busca de direitos para a comunidade gay, em Nova York, conhecida em todo o mundo como a Revolta de Stonewall.
E tudo acontece no então ostensivamente segregado Estados Unidos da América, país que proibia negros de frequentarem o mesmo banheiro, a mesma escola, o mesmo bebedouro dos brancos; país em que homens gays brancos discriminavam gays negros e transgêneros de todas as raças.
No mês e ano em que Malcom vem ao mundo, explodem as bombas atômicas americanas sobre Hiroshima e Nagasaki, no Japão, pondo fim à Segunda Guerra Mundial.
Quando ela se rebela – de Malcom à plenitude de Marsha -, fazia pouco mais de um ano da morte de Martin Luther King Jr. e quatro anos da morte de Malcom X, dois líderes negros assassinados pela mesma América.
Não eram tempos de paz. As questões raciais estavam postas. E Marsha inclui entre elas o debate sobre igualdade, equidade e racismo dentro do movimento gay.
Jornada por visibilidade
Malcolm Michaels Sr., operário de produção da multinacional General Motors, e Alberta Claiborne, empregada doméstica, frequentavam a Igreja Episcopal Metodista Africana, em Nashville, com seu filho. Ou melhor, com sua filha, muito religiosa desde pequena.
Sim. Aos 5 anos de idade, a criança já se identifica como menina e só para de usar vestidos, temporariamente, devido o assédio dos meninos da vizinhança.
Durante entrevista, em 1992, Marsha conta ter sido estuprada por um menino de treze anos, o que a levou a permanecer assexual até os 17 anos.
Concluído o Ensino Médio, em 1963, ela decide ir para Nova York com uma mala de roupas e 15 dólares no bolso. Lá, vive sua história inteira, como garçonete, moradora de rua, prostituta, modelo, artista, cuidadora, ativista, ícone, lenda.
No início da sua jornada de sobrevivência, conhece Sylvia Rivera, na época uma menina trans porto-riquenha, de 12 anos, que tenta ganhar a vida na cidade grande, como ela – as duas se consideram mãe e filha.
Depois desse encontro, Malcom acredita ser possível existir a partir da sua essência e constrói sua vida em torno do sexo e da liberação gay.
Figura popular na cena gay e artística de Nova York, posa para obras do artista e fotógrafo norte-americano Andy Warhol.
Rainha do Village
Em 1966, no Greenwich Village – epicentro do movimento de contracultura da cidade nos anos 1960, também conhecido como West Village ou, simplesmente, Village -, as duas assumem suas identidades trans e se adaptam às ruas da cidade, tornando-se as vozes dos direitos civis para mulheres e homens trans.
Assim nasce a drag queen Black Marsha, depois Marsha P. Johnson.
Johnson, do restaurante Howard Johnson’s, de Manhattan.
P., de “Pay it no mind”, que pode ser traduzido como: “não ligue para isso”, “não preste atenção”, “é problema seu, não meu”.
Marsha se identifica como gay, travesti e rainha das ruas, drag queen. E, de acordo com Susan Stryker, professora de gênero humano e estudos de sexualidade na Universidade do Arizona, sua expressão de gênero, talvez, possa ser chamada com mais precisão de gênero não conforme, tendo em vista que nunca se identificou com o termo trans.
A definição de “travesti” usada por Marsha não é a mesma utilizada na literatura atual. Para ela, o termo se referia a “homens e mulheres homossexuais vestidos com roupas do sexo oposto”.
Nos anos 1960 era proibido se vestir de drag!
Rebelião de Stonewall
28 de junho de 1969, Greenwich Village, rua Christopher, bar The Stonewall Inn, mais uma batida policial acontece, reflexo da opressão que sofriam as minorias por parte do Estado. “Quando cheguei, estava o caos. Gays viravam carros nas ruas, bloqueando o trânsito”, registra uma entrevista de Marsha, apesar de ela ser sempre lembrada como alguém que iniciou o contra-ataque.
Uns dizem que ela jogou um copo de vidro na janela que ficava atrás do bar. Outros, que ela subiu em um poste e jogou um saco com um tijolo dentro de um carro da polícia, quebrando o pára-brisa…
Silvia Rivera, em entrevista, conta que os policiais invadiram o bar, jogaram as queens na viatura, sacaram armas e coquetéis molotovs começaram a voar… A noite – conhecida como a Rebelião de Stonewall – foi de carnificina e o movimento por direitos começou no dia seguinte.
Diante do ódio e do desprezo da sociedade, surgiram manifestações e marchas espontâneas pelos bairros gays de Greenwich Village por cerca de uma semana depois, para exigir reconhecimento econômico, jurídico e aceitação.
Pioneira no bar
E pensar que Marsha é uma das primeiras drag queens a ir ao The Stonewall Inn… Ela conta que parou na entrada do bar, apenas para homens gays, e perguntou:
“O que acham? Sou homem ou sou mulher?”
Como ninguém respondeu, ela resolveu entrar. E só depois dela começaram a permitir a entrada de mulheres lésbicas e drag queens.
Muito agradável, o Stonewall Inn era de propriedade da máfia – na época, gays não podiam frequentar bares. Mas a máfia subornava a polícia e controlava os bares gays da cidade.
Detalhe: a mesma máfia que estava por trás do Festival da Libertação, que acontecia todo ano na rua Christopher, logo após a Parada Gay e que, de tempos em tempos, era confrontada pela liderança do movimento, por só visar lucro e não dar contrapartida à comunidade.
A mesma máfia que, suspeita-se, seja responsável pela morte de Marsha.
À la Rosa Parks
Sempre houve preconceito na comunidade queer – termo guarda-chuva para minorias sexuais e de gênero, que não são heterossexuais -, especialmente nos anos 1960, quando muitos homens gays brancos desprezavam os gays, drags e trans negros – quem denuncia é o colunista do NewNowNext, Michael Musto, em entrevista para o site New York Gritt.
Quer dizer, a segregação racial era extensiva. Racistas, os gays brancos geravam conflitos internos no movimento que reivindicava direitos, igualdade, equidade e respeito também para lésbicas, transgêneros…
Entre 1980 e 1992, Marsha viveu com seu amigo gay e colega de ativismo Randy Wicker. E em entrevista em março de 2019 para o site New York Gritt, Randy assume que era preconceituoso. Ele a convidou para passar uma noite em sua casa, porque estava muito frio, e ela nunca mais foi embora.
E ele afirma, ao relembrar esse tempo: “Marsha foi uma grande educadora para mim. Eu era transfóbico, não tinha noção de gênero”.
No Dia do Orgulho Gay, desde sempre, travestis vão na linha de frente na luta contra a polícia, sem se importar de levar paulada na cabeça. E desde sempre, também, são esquecidas na hora das reivindicações e discriminadas dentro do movimento.
Marsha P. Johnson era considerada a Rosa Parks do movimento gay – em uma referência a ativista que em 1955 se recusou a obedecer a lei de segregação que existia no transporte público em Montgomery, Alabama.
Generosidade
Junto com a latina Sylvia Rivera, Marsha funda a Star House – Street Travestite Action Revolutionaries (Ação das Travestis de Rua Revolucionárias), um abrigo para jovens gays, trans e drag queens sem teto, que viviam nos arredores de Greenwich Village. E as duas mantinham o espaço se prostituindo.
Mesmo soropositiva, Marsha cuidava de doentes terminais, fazia visitas nos hospitais e apoiava grupos ativistas de combate à epidemia de Aids, defendendo o direito para tratamento do HIV.
Questão de Justiça
Foram quase 57 anos de vida.
Em 6 de junho de 1992, segunda-feira: Marsha é encontrada morta, no rio Hudson, perto da rua Christopher. A polícia afirma ter sido suicídio. A autópsia se refere a afogamento ou possível homicídio. Líderes da comunidade, por duas vezes, conseguiram reabrir o caso para mais investigações – em 1992, por pressão do vereador Thomas Duane, e em 2012, pela pressão popular.
A dúvida permanece não por acaso. Marsha convivia com o assédio e a violência policial – foram mais de 100 prisões acompanhadas de espancamento, tortura e ameaças de morte, por tiro ou no rio Hudson…
Sua saúde mental não era boa. Ela tinha alterações de humor – diagnóstico de esquizofrenia -, apesar de ser reconhecida como uma pessoa bem humorada e cheia de vitalidade.
A Morte e Vida de Marsha P. Johnson, documentário original Netflix, do diretor David France, esmiúça o caso e propõe-se investigar a interrupção de sua vida, mas não de sua história fundamental para a comunidade LGBTQIAP+ nos dias de hoje.
Lá como cá, desde sempre, mulheres trans são assassinadas sem que seus casos sejam solucionados – no ano de sua morte, foram feitos 1.300 registros de crime por violência, de acordo com o Projeto Anti-Violência de Nova York (AVP).
Leia o artigo Visibilidade Trans, Políticas Públicas.
Forever
A ativista negra americana Elle Hearns, em 2016, abre as portas do Instituto Marsha P. Johnson, para manter seu legado e apoiar a comunidade transgênera, em especial as mulheres negras trans.
O governo de Nova York, em 2018, lança o projeto “She Built NYC” – para reduzir a disparidade entre monumentos de homens e mulheres na cidade – e anuncia, em maio de 2019, a construção de um monumento em sua homenagem.
Em 2020, pela primeira vez, um parque da principal cidade norte-americana, Nova York, em Williamsburg, no Brooklyn, ganha o nome de uma personalidade LGBTQ. É um parque estadual, à beira-mar, para Marsha, com arte pública contando sua história e seu trabalho de luta pela igualdade.
Marsha será lembrada para sempre por suas roupas cintilantes, extravagantes, plumas, paetês, maquiagem perfeita, mas principalmente por seu desejo de mudança e por sua generosidade.
Marsha tinha quatro irmãos e duas irmãs.
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Fontes: RollingStone, YouTube, Wikipédia, Uol, A Morte e Vida de Marsha P. Johnson, documentário Netflix, Uol-Parque.
LGBTQIAP+ o significado de cada letra da sigla: L, G e B: lésbicas, gays e bissexuais; T: travestis, transexuais e transgêneros; I: intersexuais; Q, A, P e +: queer, assexual, pansexual e identidades não binárias.
Escrito em 8 de junho de 2022