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Ousmane Sembène, “o pai do cinema africano”

O mundo conhece a África pelo olhar deste cineasta senegalês. Visionário, ele chama a atenção ao focar suas lentes nas questões sociais e políticas do continente.

Senegal
Ousmane Sembène (Imagem: Reprodução)
Ousmane Sembène (Imagem: Reprodução)

Anos 1960. Com o padrão de cultura norte-americano ditando as regras do fazer cinema no mundo, qualquer produção da sétima arte vinda de outro lugar enfrentava forte  resistência. Um desafio ainda maior para os países do continente africano que, na época, iniciam suas produções em paralelo ao processo de descolonização.

Em cena, três ingredientes”: carência  de recursos financeiros, carência de recursos técnicos e a criatividade de talentosos diretores. 

Entre eles, surge o pioneiro, premiado escritor e diretor Ousmane Sembène, que vive 84 anos, de 1923 a 2007. Reconhecido como “o pai do cinema africano, ele defende a importância de a África contar suas próprias histórias, para que outros não o façam, garantindo a preservação da identidade africana. 

Garota negra

Seu longa-metragem de 1966, La Noire de… (Black Girl), considerado o primeiro grande filme produzido por um cineasta africano, conquista o grande prêmio no Festival Internacional de Cinema de Cannes de 1967.

Na época, ele declara:

“É bom estar em Cannes, mas gostaria que a África criasse algo próprio. Não devemos ser convidados eternos. Cabe a nós criar nossos próprios valores, reconhecê-los e levá-los por todo o mundo. Não estamos sozinhos no mundo, mas somos o nosso próprio sol. Não me defino em relação à Europa. Na escuridão mais escura, se o outro não me vê, eu me vejo. E certamente eu brilho!” 

La Noire de… conta a história de uma jovem africana levada para ser babá dos filhos de um casal francês, só que ela é escravizada, forçada a viver confinada, sem amigos, sem salário, sem direito à própria vida. E é para este inexistir que Sèmbene chama atenção. Seu enquadramento traz para o primeiro plano a dor, os questionamentos, a desilusão de quem foi enganado.

Politicamente crítico, o filme – cinema autoral – surpreende pela relevância do conteúdo social. 

Mão na massa

Antes de enveredar pela sétima arte, no entanto, Sembène percorre um longo caminho. Trabalha como pescador e estuda na Escola de Cerâmica de Marsassoum, em  Casamansa, no Senegal, onde nasceu. 

Larga a escola na quinta série e decide seguir seu sonho de se tornar o cronista de uma nova África, indo para Dakar, capital e maior cidade do seu país.

Ousmane Sembène durante gravação (Imagem: Kino Lorber)
Ousmane Sembène durante gravação (Imagem: Kino Lorber)

Antes de transformar o sonho em realidade, entretanto, trabalha como pedreiro, encanador e aprendiz de mecânico até, em 1939, ser convocado para o exército francês. 

Em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial, ingressa no Exército Livre das Forças Francesas e, dois anos depois, desembarca na França pela primeira vez, permanecendo lá após a desmobilização.

Assim, de soldado torna-se estivador e, em seguida, sindicalista.

O escritor

Os anos 1950 nos mostram Sembène dominando o francês – ele aprende sozinho a ler e escrever – e publicando, em 1956,  seu primeiro romance, Le Docker Noir (Black Docker), baseado em suas experiências em Marselha.

Com problemas na coluna, Sembène vive da literatura.

Foto de Ousmane na capa do livro Tribal Scars (Imagem: Reprodução)
Foto de Ousmane na capa do livro Tribal Scars (Imagem: Reprodução)

Entre suas obras,  “Ô pays, mon beau peuple!” (Ó país, meu povo lindo), de 1957, que se passa em sua pequena aldeia e conta os desafios de um casal interrracial;    Les Bouts de bois de Dieu” (Pedaços de Madeira de Deus), 1960, com o olhar para uma greve ferroviária dos trabalhadores africanos e as tentativas de combater o colonialismo;  “Voltaïque”,  um volume de contos, de 1962; e “L’Harmattan”, de 1964, com acontecimentos sociais e políticos reais na África Ocidental em 1958, quando da mobilização das massas na campanha pelo “Não”, contra a independência imediata do Senegal, proposta pelo governo francês logo após a Guerra da Argélia – o país era colônia da França desde o século XVII.

Na telona, em 10 filmes

O interesse de Sembène pelo cinema acontece por volta de 1960 pelo seu desejo de ser ouvido, de atingir o povo africano, um povo que não tinha acesso a livros de qualquer idioma e que não sabia falar francês – só 20% dominavam o idioma. 

Depois de estudar na Escola de Cinema de Moscou, Sembène retorna à África e dirige três curtas-metragens, todos refletindo um forte compromisso social. 

Ele faz cinema político, se refere à construção de uma identidade própria, reflete sobre a posição da mulher, os problemas do colonialismo, do racismo, da corrupção e do autoritarismo instalados após a independência.

Cartaz de "Mandabi", dirigido por Ousmane Sembène.
Cartaz de “Mandabi”, dirigido por Ousmane Sembène.

Nosso pioneiro visionário e ativista, imbuído de uma filosofia artística, mostra ao mundo a África pelos olhos dos africanos. 

 Ao todo são dez filmes e muitos prêmios, como com “Mandabi”  e  “Le camp de Thiaroye“, os dois no Festival de Veneza.

Além de La Noire de… , o primeiro de todos, celebrado em Cannes, compõem sua obra:

Mandabi, de 1968 –  The Money Order / A Ordem de Pagamento /Le mandat/  O Mandato – seu segundo longa-metragem, uma comédia da vida cotidiana e da corrupção em Dakar, filmado na língua wolof, dialeto da África Ocidental, principalmente do Senegal. É a história de um muçulmano que vive tranquilo, com suas duas esposas e sete filhos, até receber a correspondência de um sobrinho que mora na França. Trata-se de uma ordem de pagamento. Ao saber da novidade, os vizinhos buscam, cada um a seu modo, tirar proveito da situação

Emitai, de 1971 – com crítica às relações coloniais da Europa com a África em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial. Na época, a França envia uma ordem à aldeia de Casamance para expropriar todo o arroz cultivado na região. Só que com os maridos na guerra, as mulheres se veem obrigadas a resistir às investidas da armada francesa.

Xala, de 1975 – escrito por ele em 1973, leva para as telas a história de um homem de negócios senegalês, em idade avançada, que passa a ter uma terceira esposa, o que lhe confere status. O problema é que após  a grande festa organizada para selar o matrimônio, na  noite de núpcias, o noivo ancião contrai o “xala” – perda da potência sexual por tempo provisório. 

Ceddo, de 1977  – considerado uma das grandes obras do diretor, traz um relato ambicioso, de cunho mais histórico, no qual uma tribo se depara com a expansão do islamismo, ao mesmo tempo em que colonizadores brancos rodeiam a área. O filme recebe forte censura devido à crítica ao Islã, mas  ganhou o Festival Internacional de Berlim.

Camp de Thiaroye, de 1987 – baseado em fatos reais, retrata um evento ocorrido em 1944, quando tropas francesas massacraram um acampamento de veteranos de guerra africanos rebeldes.  

Guelwaar, 1993 – documentário sobre a vida religiosa conturbada do Senegal, conta a confusão que surge quando os corpos de um muçulmano e de um católico são trocados no necrotério. 

Faat Kiné, 2001 – comédia dramática, seu penúltimo filme e o mais leve  de sua carreira, com estreia no Pan African Film Festival. A trama é ambientada na Dacar dos dias modernos e tem como centro das atenções a poderosa Faat Kiné. Como pano de fundo, uma visão crítica do Senegal moderno pós-colonial e do lugar das mulheres nessa sociedade.

Moolaadé, 2004 – prêmio de Un Certain Regard em Cannes, misto de comédia e melodrama, faz crítica a uma das maiores atrocidades contra as mulheres, a mutilação genital.

Inspiração 

Sua vida de tão genial também ocupa as telas do cinema. Em 2015 é lançado o  documentário “Sembène!”, dirigido por Samba Gadijgo e Jason Silverman.

A narrativa apresenta seus conflitos de juventude em Casamance, no sul do Senegal, sua mudança para a França, ao mesmo tempo em que traça os paralelos com sua produção literária e  cinematográfica.

A obra celebra, também, o ativismo de Sembène nos processos de independência e descolonização da África,  usando o cinema como ferramenta.  

Samba Gadjigo, um dos diretores do documentário, cresce admirando livros e filmes de Sembène e, na vida adulta, como acadêmico, tem a oportunidade de se tornar tradutor e o mais importante especialista do trabalho do mestre senegalês

Existem mais de 100 horas de raras imagens de arquivo.


Fontes: Revista Ursula, Sembeneblog, Ingresso.com, FestivaldoRio, Guia Folha, Aya Laboratório, Plano Crítico

4 comentários em “Ousmane Sembène, “o pai do cinema africano””

  1. Adorei conhecê-lo. Mas existe algum lugar na internet que os filmes dele ( o o sobre ele de 2015)estejam disponíveis em boa qualidade?

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