A primeira romancista moçambicana conquista este pioneirismo ao publicar “Balada de Amor ao Vento”, um romance editado em 1990.
“Se a literatura escrita por mulheres já é um mundo diferente, imaginemos, o que pode ser o mundo visto por uma mulher africana, moçambicana. Esse estranho e mágico mundo é o que oferece em seus livros Paulina Chiziane, a primeira romancista negra de Moçambique.”
Assim escreveu Adelto Gonçalves, doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo, em artigo especial para o Jornal Opção.
Paulina Chiziane é a primeira romancista moçambicana e conquista este pioneirismo ao publicar seu primeiro livro, o romance Balada de Amor ao Vento, editado em 1990.
Escrita urgente
Mas ela escreveu, também, Ventos do Apocalipse, de 1999; O Sétimo Juramento, de 2000; As Andorinhas, de 2009; Na mão de Deus e Por Quem Vibram os Tambores do Além, ambos de 2013, Ngoma Yethu: O curandeiro e o Novo Testamento, de 2015. Todos com a marca da sua literatura: mulheres que vão à luta e os valores europeus que sangram a África, ainda.
Em O Alegre Canto da Perdiz, de 2008, por exemplo, além das questões que marcam a secular submissão da mulher ao universo masculino em certas sociedades africanas, a autora leva o leitor a confrontar-se com a questão do reducionismo praticado por quem olha a África de fora e procura apresentar a sua história e sua literatura como se o continente fosse um só país.
Neste livro – escreve, no posfácio, o professor Nataniel Ngomane, doutor em Letras pela Universidade de São Paulo – , Paulina, com certeza, é a voz que mais alto se eleva para recuperar temas “esquecidos” por aqueles autores africanos, de expressão portuguesa, cujas raízes remontam ao colonialismo, como o racismo, a assimilação, a subjugação de valores africanos aos valores europeus, a poligamia, as relações de subserviência não só no lar, mas entre nações e grupos étnicos.
Em 2016, Paulina Chiziane decide abandona a escrita: cansada das lutas travadas ao longo da carreira, mas publica, em 2017, O Canto dos Escravizados, 2017.
A leitura
Mas cinco anos depois, em 2021 – com todos os seus livros foram lançados em Portugal -, o reconhecimento pela sua produção literária se materializa com a conquista do Prêmio Camões – instituído pelos governos de Portugal e do Brasil e atribuído aos autores que contribuíram para o enriquecimento do património literário e cultural da língua portuguesa.
E ela, de novo, como pioneira, se torna a primeira mulher africana a receber um prêmio que existe desde 1988! Uma premiação com um ‘quê’ de trágico. E não só pela demora…
Os escritores africanos escrevem para os leitores de outros países, que podem comprar livros, uma vez que, em razão dos altos índices de analfabetismo e dos baixos níveis socioeconômicos, as tiragens nos países africanos de língua portuguesa são ínfimas, inclusive em sua terra natal, Moçambique.
Sobre o inédito reconhecimento, Paulina contou de seu sentimento:
“Meu Deus! Eu já não contava com essas coisas bonitas!'(…) Não foi fácil começar a publicar sendo mulher e negra. Depois de tantas lutas, quando achei que já estava tudo acabado, vem esse prêmio…”
A criança
Paulina Chiziane nasce em 4 de junho de 1955 em Manjacaze, na província de Gaza, ao sul de Moçambique e vive no campo até os sete anos idade, quando muda para os subúrbios da cidade de Maputo. Lá, estuda Linguística na Universidade Eduardo Mondlane, mas não conclui o curso.
No campo, quando criança, falava a sua língua materna, o chope. Mas, ao mudar para a cidade tem de aprender o português na escola da missão católica (apesar de ser de família protestante) e é obrigada a falar o ronga nas ruas, língua nativa de Maputo.
“Sou chope, o meu pai era alfaiate de esquina, só depois arranjou uma barraca. A minha mãe sempre foi camponesa, às vezes ficava uma semana sem vir à casa, a tratar da machamba (plantação de mandioca)” – contou ela, certa vez.
O ser político
Aos 20 anos, Paulina canta o hino da independência moçambicana, grita contra o imperialismo, contra o colonialismo e, depois, com a guerra civil (1975-1992), que arrasa o país, desencanta-se. Seus livros falam do país destruído, da miséria do povo, da superstição, dos rituais religiosos e da morte.
Antes de ser romancista, Paulina participa ativamente da vida política de Moçambique. Quando jovem, é militante na Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) e chega a ser eleita nas primeiras eleições multipartidárias em 1994. Mas troca a vida partidária – cheia de contradições e machismo – pela escrita, pelo trabalho na Cruz Vermelha e à publicação das suas obras.
Sua atividade literária, entretanto, se inicia dez anos antes, em 1984, quando publica contos na imprensa do país.
Atualmente, ela vive e trabalha na Zambézia, região africana em que se deu com maior intensidade a miscigenação, a ponto de ser conhecida como o Brasil da África, e que é cenário do livro, O Alegre Canto da Perdiz.
Prêmio Camões
Em maio de 2023, Paulina Chiziane confirma seu pioneirismo, como a primeira mulher africana a receber, oficialmente, o Prêmio Camões, maior premiação da língua portuguesa, em Lisboa, Portugal. Na oportunidade, ela defendeu a necessidade de descolonização da língua portuguesa:
“É na língua portuguesa que eu expresso os meus sentimentos e me afirmo diante do mundo. Mas eu gostaria que a língua fosse de todos (…) A língua portuguesa, para ser definitivamente nossa, precisa de um tratamento, de uma limpeza, de uma descolonização”.
Como exemplo, a escritora citou a palavra “matriarcado”, que tem como significado no dicionário “costume tribal africano”, em contrapartida, “patriarcado” significa “tradição heróica dos patriarcas”.
“Somos usurpados, os africanos, por estes e por aqueles, porque os rastros da nossa história foram apagados através dos tempos. Estamos à deriva, não sabemos bem quem somos e, por isso, somos facilmente manipulados pelo mundo. O autoconhecimento tem de ser a chave para o sucesso de quem quer que seja.”
Nome de disciplina
A escritora moçambicana, em 2024, vai para Varsóvia, na Polónia, e vive um momento singular: inaugura a Cátedra Paulina Chiziane, um marco significativo na promoção da literatura africana no cenário internacional.
Nomeada em sua homenagem, a cátedra reconhece a vasta contribuição da autora para a literatura moçambicana e seu papel na defesa da identidade cultural e das vozes femininas, oferecendo um espaço dedicado ao estudo da literatura como meio de construção de identidades culturais, sociais e de gênero.
No evento, se destaca a importância da literatura como ferramenta para expressar as complexidades humanas, especialmente em sociedades pós-coloniais, e reafirma a visão de Paulina Chiziane de que a escrita vai além da arte, serve também para redefinir identidades e promover o diálogo intercultural e a reflexão crítica sobre o mundo contemporâneo.
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Fontes: Adelto Gonçalves, doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo, artigo publicado no jornal Opção; Wikipédia, Mundo Negro, Revista da Lusofonia
Escrito em dezembro de 2015, última atualização em 21 de outubro de 2024.
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