“Privilégio branco”? Chega!
- Tania Regina Pinto
Contraste social entre a favela de paraisópolis e os condomínios do morumbi (Foto original: Tuca Vieira)
Entre aspas para contar que não é para todos. Não é de comer, mas é servido à mesa nos restaurantes. Está presente na área de Recursos Humanos das empresas e até no banco dos réus diante da Justiça.
“Privilégio branco” porque o Brasil é um país racista. Toscamente racista, porém eficiente na execução da tarefa e eficaz ao atingir o objetivo. Mas isso vai acabar. Vamos escurecer as coisas, reconhecer o próprio racismo – que nos afeta como o sol e a chuva, indiscriminadamente -, vamos compreender que neste “sistema” não existem ganhadores.
Que ninguém se iluda. Nossas vidas, apesar de todo o preconceito, de toda a discriminação, estão entrelaçadas. É uma história – de verdades e mentiras – que nos une e nos confunde!
As primeiras inverdades
O Brasil não foi descoberto, não tem pouco mais de 500 anos. Os europeus nunca foram civilizados. Ao contrário, como selvagens, invadiram um continente inteiro – a exceção são a Libéria e a Etiópia. E, não satisfeitos, sequestraram, torturaram, escravizaram e mataram pessoas. Gente como eles, só que com a cor da pele diferente.
Séculos depois de uma vida de ócio pessoal – sendo cuidados, alimentados e sustentados pela mão-de-obra negra e indígena -, quando não havia mais como conter as rebeliões, estes mesmos europeus assinaram uma lei para negar o protagonismo do povo negro na luta pela liberdade.
O marketing era a liberdade ampla, geral e irrestrita. Mas sem direito a nada: nem Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, seguro de vida, indenização por trabalhos forçados, maus tratos, assassinatos…
Nunca houve liberdade concedida. Nossa liberdade é conquistada, dia a dia, desde que nossos ancestrais foram sequestrados e jogados nos chamados “navios negreiros”.
E foi dessa forma que surgiu a branquitude…
Versão ‘portuguesamente’ nacional porque a expressão – nunca é demais esclarecer – é sinônimo de privilégio , de poder, conquistado por conta da pele não negra e não por mérito.
No Brasil, judeus e árabes são considerados brancos. Na Europa, não. Só que branco também é raça.
É verdade que não são poucos negros e brancos que afirmam em alto e bom som que o racismo não existe. E não há pesquisa que os faça mudar de ideia nem denúncias nem vídeos ou mesmo a própria existência de leis que identificam a sua prática como crime hediondo e inafiançável – Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989.
As políticas públicas – conquista do povo preto para toda a sociedade – também costumam ser apontadas como sinônimo de um Brasil não racista. Mas vale a pergunta: por que estas políticas são necessárias e por que, todo o tempo, os políticos se esforçam por negar as questões raciais que são feridas abertas no país?
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Negar o racismo é a maior prova da sua existência. E todos se contradizem…
Estudo exclusivo encomendado pela revista Veja ao Instituto Paraná Pesquisas, de agosto de 2020, indica que 61% dos entrevistados admitem que o Brasil é um país racista, enquanto 34% negam o problema, apesar de 40% dos entrevistados já terem presenciado cenas de preconceito racial! Os números não fecham! Mas é só um detalhe.
Racismo é mais que cenas de preconceito. No Brasil, 56% da população – ou mais, os dados são do último Censo, de 2010 – se identificam como preta ou parda. A própria classificação já é uma variável do crime – não se diferencia brancos claros de brancos escuros!
Vamos aos fatos…
Das profundezas
Pandemia de Covid-19: um estudo liderado por pesquisadores da PUC-Rio, divulgado em maio de 2020, constata que pessoas sem escolaridade têm taxas três vezes maiores de morte (71,3%) em relação àquelas com nível superior (22,5%).
Combinando raça e índice de escolaridade, tira-se o véu: pretos e pardos sem escolaridade morrem quatro vezes mais pelo novo coronavírus do que brancos com nível superior (80,35% contra 19,65%). E levando em conta a mesma faixa de escolaridade, pretos e pardos apresentam proporção de óbitos 37% maior, em média, do que brancos.
A pandemia de Covid-19 matou 55% dos negros e 38% dos brancos que foram internados – lembrando que ‘direito à internação’ é privilégio da branquitude.
Ainda sobre morte destaque-se as estatísticas de assassinatos: 75% das vítimas de homicídio no Brasil são negras. E, para corroborar com a nossa presença negra nas covas dos cemitérios, o caso do menino negro, de 5 anos, Miguel Otávio Santana Silva, que morreu após cair do 9º andar por descuido de Sari Corte Real, a patroa, branca, da sua mãe.
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Mirtes Renata de Souza era empregada na casa de Sari e levou seu filho ao trabalho porque as escolas estavam fechadas. Deixou seu filho aos cuidados da patroa porque tinha de levar o cachorro para passear. Mas crianças dão trabalho e a patroa colocou o menino de 5 anos, sozinho, dentro de um elevador.
A polícia acusou a patroa por homicídio culposo. Ela desembolsou R$ 20 mil e responde pelo crime em liberdade!
Imaginemos, só imaginemos, uma situação inversa: a criança branca, filha da patroa. Onde estaria a empregada hoje? Privilégio branco, branquitude ou, como desabafou Mirtes na época dos fatos:
“Se fosse eu, meu rosto estaria estampado, como já vi vários casos na TV”.
Alguém duvida?
Longa caminhada
A consciência do racismo estrutural avança, mas há muito para cada um fazer. E são necessárias mais políticas públicas para que se avance no combate ao problema. É necessária mais educação, mais organização, mais comprometimento, mais acolhimentos de nós por nós mesmos.
As transformações recentes na consciência brasileira indiscutivelmente têm como marco a implantação das cotas raciais para as universidades que, em 2022, completam dez anos e devem ser revisitadas, avaliadas e aprimoradas, como determinada a lei.
Leia o artigo Lei de Cotas, a nossa revolução silenciosa
Instrumento de reparação histórica, a Lei 12.711, representa o início de um tempo em que mais se aprendeu, se produziu e se debateu sobre desigualdades raciais no Brasil, impulsionando a formação de intelectuais negros em áreas antes ocupadas em sua totalidade por brancos, das mais diversas tonalidades, como economia, direito, medicina e sociologia.
Um estudo formulado pelos pesquisadores Adriano Senkevics e Ursula Mello para o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira mostra que houve aumento de 39% de pretos, pardos e indígenas nas universidades entre 2012 e 2016.
No mundo do trabalho
Mas as mentiras da “abolição da escravatura” e da “democracia racial” garantiram e garantem, ainda, a porta trancada nas áreas de de recursos humanos de muitas empresas brasileiras, a ponto de o assunto só entrar em pauta após políticas de inclusão de mulheres, pessoas com deficiência e homossexuais.
Os negros, hoje, representam 35% do quadro funcional das 500 maiores empresas do país e apenas 4,7% das posições de liderança, segundo estudo do Instituto Ethos.
Ao mesmo tempo, nos presídios, somos 62%, “naturalmente” sem acesso a Justiça, míope para a igualdade racial.
Enegrecer a política
Nos números colhidos pelo Paraná Pesquisas- e publicados na revista Veja – chama atenção, ainda, o fato de 67% das mulheres admitirem a existência do racismo, contra 54% dos homens – são as “minorias” começando a abrir os olhos. Sim, porque o poder é branco e masculino e a maioria da população é feminina e negra.
Quer dizer, o poder real é de negros e mulheres. Sermos vistos, vistas, tratados e tratadas como minoria é parte da estratégia do racismo estrutural, do machismo. É a maioria da população, em números, que faz girar a economia, que tem o poder cidadão do voto. Nas urnas, vale quem somos, um a um, uma a uma.
Não somos minoria. Nas próximas eleições, por exemplo, podemos transformar o nosso viver em sociedade. Temos de exigir compromisso político com pautas raciais de todos os candidatos que dependam do nosso voto para se eleger. E isso vale para o povo preto de todas as idades e para todos os não negros antirracistas.
Como escrevi no começo do texto, na desigualdade, todos perdem, inclusive os que acreditam estar ganhando.
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#vamosenegrecerapolítica
#EleiçõesNegras2022
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