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Lei de Cotas, nossa revolução silenciosa

- Tania Regina Pinto

Cartazes de manifestações pró-cotas em São Paulo

Desde 13 de novembro de 2023, está em vigor a lei que reformula e amplia o sistema de cotas, que garante a reserva de vagas nas universidades e institutos federais para estudantes negros, pardos, indígenas, com deficiência e de baixa renda da escola pública. Entre as mudanças, a redução da renda familiar para reserva de vagas e a inclusão de estudantes quilombolas como beneficiários.

  • O que este artigo responde:
  • O que é a Lei de Cotas?
  • O que mudou depois da revisão da Lei de Cotas?
  • Quem tem direito à Lei de Cotas?
  • Desde quando a Lei de Cotas está em vigor?
  • A Lei de Cotas não vai acabar nunca?

Divisor de águas na luta negra, a Lei 12.711 – Lei de Cotas Sociorraciais nas Instituições Federais de Ensino Superior -, tem proporcionado um momento histórico ao povo preto. Nunca se aprendeu, se produziu e se debateu tanto  sobre desigualdades raciais no Brasil. Nunca fomos tão a fundo no nosso existir como nascidos em África, o berço da humanidade, das filosofias, da matemática, das ciências… 

Conhecendo a história

Em 2001, o IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística confirmou: apenas 2,2% dos jovens pretos e 3,6% dos jovens pardos frequentavam faculdades e universidades. 

A informação só fez tremular, ainda mais, a bandeira do movimento negro pela democratização do ensino superior. Na sequência, outros grupos sociais se engajaram na luta pelo direito à educação. 

Agora, os políticos – de novo e como sempre – querem dizer que tudo é problema social, que a miséria não tem cor, que não existe racismo no Brasil?!?!

Não basta roubarem nossa liberdade, nosso viver, nossa cor, nossa arte, querem roubar nossas demandas, para não terem que abrir mão dos próprios privilégios, conseguidos não por mérito, mas pela cor que acham que detém. 

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Conhecida como “Lei de Cotas”, ela determina que todas as 69 universidades federais e os 38 institutos federais de educação, ciência e tecnologia reservem no mínimo 50% das vagas de cada curso para estudantes que concluíram o ensino médio em escolas públicas.

Dentro da quantidade total destinada aos cotistas, as vagas devem ser preenchidas por estudantes autodeclarados pretos, pardos e indígenas e por pessoas com deficiência em proporção no mínimo igual à proporção respectiva desses grupos no estado em que a instituição está localizada a partir do censo mais atualizado do IBGE.

Metade dessas vagas reservadas, ainda, deve ser destinada a estudantes de famílias com renda mensal igual ou menor que 1,5 salário mínimo per capita. 

Apesar de a população negra aparecer majoritariamente em todos os índices que medem a pobreza nacional, muitos políticos estão preocupados com o risco de que negros com dinheiro usufruam da lei. Daí estarem apresentando projetos para que seja retirada a questão racial, que a originou.

E a loucura da tese da branquitude é que a cor da fraude é branca. São pessoas brancas que têm roubado vagas, mentindo em sua autodeclaração racial. Expediente utilizado também por mais de 40 mil candidatos nas eleições de 2018, que mudaram a cor da pele. E, ainda, por um terço de famílias das classes A e B que solicitou auxílio emergencial durante a pandemia de covid 19.

Desocupados

Um ano e meio de pandemia. Educação paralisada. Povo preto, mais uma vez, penalizado e o Poder Legislativo preocupado com a revisão da Lei de Cotas, uma ação que não é de sua competência.

O portal do MEC – Ministério da Educação, quando da aprovação da lei, em 29 de agosto de 2012, determinou uma avaliação com os resultados obtidos ao completar dez anos de vigência, ou seja, em 2022, para o seu aprimoramento.

Aloísio Mercadante, então ministro da Pasta, destacou:

“A política de ações afirmativas é sempre feita de forma temporária com o objetivo de corrigir uma desigualdade, uma distorção”.

Por isso, inclusive, o decreto ainda instituiu um comitê de acompanhamento e avaliação das reservas de vagas nas instituições federais de educação superior e de ensino técnico de nível médio, formado por dois representantes do Ministério, dois representantes da Seppir, um membro da Fundação Nacional do Índio, podendo ser convidados representantes de movimentos sociais.

“Não é competência do Poder Legislativo, mas do Poder Executivo, elaborar um plano de monitoramento para avaliar a implantação da Lei de Cotas”, insiste a professora Nilma Lino Gomes, referência no campo das políticas afirmativas, autora do livro “Movimento Negro Educador” e que já esteve à frente da Seppir. 

Nilma Lino

Nilma Lino, primeira reitora negra em universidade federal do país

Mesmo assim, somam-se projetos de deputados e senadores sobre o assunto. A deputada Professora Dayane Pimentel, do PSL da Bahia, por exemplo, em 2019, apresentou o Projeto de Lei (PL) 1531, eliminando o critério racial da reserva de vagas, mas mantendo os benefícios para pessoas em vulnerabilidade social e para pessoas com deficiência. 

A justificativa da parlamentar é tornar o programa de cotas exclusivo para pessoas pobres independentemente de sua raça. PL do deputado Dr. Jaziel, do PL do Ceará, foi na mesma direção.

Vale a Lei nº 5.465, de 3 de julho de 1968, a “Lei do boi”, uma lei de cotas para alunos brancos preencherem vagas nas escolas agrícolas do país, que propunha incentivar o homem do campo a se formar nos cursos de agronomia, medicina veterinária e técnico agrícola, com o objetivo de resolver o problema da baixa produção!

Pela continuidade

Na mesma Câmara Federal, tramita o PL 5384, de dezembro de 2020, da deputada Maria do Rosário, do PT do Rio Grande do Sul, junto com mais sete parlamentares, que torna permanente a política de cotas em universidades.

No Senado Federal, outro petista gaúcho, Paulo Paim, meses antes, apresentou o PL 4656, que prevê que, no lugar da revisão única em 2022, a Lei de Cotas seja reavaliada permanentemente a cada dez anos

Caso o preenchimento de vagas pelos grupos beneficiados seja menor do que a proporção desses grupos nos estados em pelo menos uma instituição de ensino, a lei é automaticamente prorrogada por mais dez anos em todo o país. Se, por outro lado, todas as universidades federais e instituições federais de ensino técnico de nível médio alcançarem a meta, a lei poderá ser suspensa a partir de cinco anos após essa constatação.

Fala povo negro!

Quanto a nós, povo brasileiro preto, o que pensamos? O que vamos fazer?

“Precisamos articular grupos, redes, artistas, para construir uma narrativa a favor da continuidade da Lei 12.711, para o seu aprimoramento”, propõe a ativista Nilma Lino, lembrando que em 2022, o presidente será o mesmo que está no poder agora.

Nunca é demais destacar a caixinha de surpresas que é o Congresso Nacional, seus líderes, chamados representantes do povo, mas que tendem a legislar em causa própria. Eles sempre nos surpreendem com votações na calada da noite, com aprovação de códigos, como o eleitoral, com mais de 900 artigos, sem qualquer debate prévio…

Com a Lei de Cotas, tudo pode acontecer.

Uma pesquisa simples na internet informa que são muitos os projetos de lei em tramitação, que são absorvidos uns pelos outros…

O site da Câmara Federal, em 21 agosto de 2021, por exemplo, informava sobre um projeto que amplia o prazo de 10 para 30 anos, a partir de 2012, e outro que propõe que o prazo seja de 20 nos, para a revisão do programa, a contar da vigência da lei, ou seja, em 2032.

Além disso, eles estabelecem que a avaliação deverá ser realizada pelo Poder Executivo, como, por exemplo, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – Inep.

O projeto está tramitando em “caráter conclusivo” e será analisado pelas comissões de Direitos Humanos e Minorias, de Educação e de Constituição e Justiça e de Cidadania.

E, assim, nunca vale o que está escrito.

Na ponta do lápis

De acordo com o IBGE, as políticas afirmativas fizeram de negros a maioria entre os estudantes no ensino superior:

50,3% dos matrículados em 2018.

Já os dados levantados pela plataforma Quero Bolsa a pedido do UOL, a partir dos resultados do Censo da Educação Superior, indicam que o percentual de alunos negros no ensino superior subiu quase 75% entre 2014 e 2018 – eram 1,7 milhão os matriculados no ensino superior em 2014 e se aproximaram dos três milhões, quatro anos depois, passando de 22,1% para 35,8% do total dos universitários.

Um outro estudo, do Inep, divulgado em 2019, se refere a aumento de 39% na presença de estudantes pretos, pardos e indígenas vindos de escolas públicas nas instituições federais de ensino superior nos quatro primeiros anos de aplicação da Lei de Cotas.

Fotografia e filme

Todos sabemos que os números não dizem tudo. Eles são apenas fotografias de momentos. E o que importa, o que precisamos, é o filme destes dez anos.

É inquestionável que os estudantes negros, nesta década, conquistaram um lugar na história como desbravadores, revolucionários. Isso porque quando se é negro, passar no vestibular não é o suficiente. É desafiador manter-se em sala de aula, caminhar pelos corredores, chegar à escola… 

Daí a importância de se avaliar a jornada, a qualidade do percurso, a formação profissional, a inclusão no mercado de trabalho, a saúde mental dos estudantes negros em contato com o racismo, a convivência em espaços antes proibidos. E é preciso considerar, também, os objetivos da lei, para aprimorar o processo de implantação.

Raça e classe?

A política de cotas não são unanimidade em nenhum lugar do mundo – de um lado os explorados; de outro, os exploradores, sempre. 

O principal argumento contrário é que, como para metade dos cotistas o fator “renda” não é considerado, pessoas negras, indígenas ou com deficiência que figuram em classes econômicas mais altas podem ingressar nas instituições de ensino por meio das cotas, deixando de fora pessoas mais vulneráveis.

Formatura Thelminha BBB

Thelma Assis em sua formatura na universidade de medicina. A vencedora do Big Brother Brasil 20 não tinha nenhum colega negro em sua turma. (Imagem: Arquivo pessoal)

Há quem defenda que o principal problema da população pobre no acesso à universidade ainda é a má qualidade da educação básica e que cotas universitárias para pessoas negras não seriam a solução.

É a velha tese do “problema social”, combinado com a negação do racismo do estrutural a ponto de, muitos, se “confessarem” com dificuldade de aplicar critérios raciais em nossa população miscigenada desde a sua origem.

Falar em dificuldade de se estabelecer fronteiras raciais por conta da miscigenação em um país em que o racismo se manifesta pelo fenótipo – se não fosse triste e por demais dolorido, seria cômico.

Sim, raça e classe.

Na defesa das cotas raciais, a necessidade de reparação histórica aos povos negros e indígenas. Desde a invasão do Brasil, tudo favorece pessoas brancas simplesmente pela cor da pele.

Assim como pagamos o ônus de ser descendentes de pessoas que foram escravizadas; os brancos devem assumir o ônus de serem descendentes de pessoas que escravizaram outros seres humanos, de maneira vil. Não dá para mascarar este fato da vida real, da verdadeira história brasileira.

Não existe privilégio negro. Existe privilégio branco, que despreza o mérito e enaltece a cor da pele. Até porque o esforço, nesta terra, foi e é sempre negro!

Não cabe a pergunta sobre quais grupos têm direito à educação. Ação afirmativa tem como fundamento a compreensão de que pessoas negras são, de todos os tempos, discriminadas na sociedade brasileira.

A favor das cotas, ainda, a ‘posse’ de um espaço que, muitos jovens negros, sempre acreditaram inacessível. Saber que existem cotas reservadas, é a garantia de um lugar até então negado. 

Dez anos de vigência da lei de cotas não corrigem nem resgatam 348 anos de tráfico, tortura, liberdade e vida de pessoas negras no Brasil – uma referência tão-somente ao período ‘oficial’ do regime escravocrata.

Em síntese

A Lei de Cotas mudou a ‘cara’ da universidade pública no país: ela está mais negra, mais indígena, mais popular e diversa. 

A Lei 12.711 obrigou a universidade a repensar o seu lugar, a abrir espaço para outras formas de construir conhecimento acadêmico, contemplando os saberes, a ancestralidade negra.

Hoje, praticamente todas as instituições de ensino superior públicas destinam vagas para o sistema de cotas em seus processos seletivos.

Mas sobram problemas relacionados à desigualdade educacional. É preciso melhorar a qualidade da educação básica, para aumentar o índice de aprovação no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).

É preciso criar estratégias que garantam aos estudantes cotistas se manterem financeiramente no ensino superior. E, uma vez formados, tenham possibilidades de acesso ao mercado de trabalho e com garantia de salário igual ao dos não-negros. 

Há muito a aprimorar. É urgente avaliar com respeito e critério como manda a lei.

No Congresso Nacional

Em 13 de novembro de 2023, foi sancionada a Lei 14.723, que reformula e amplia o sistema de cotas no ensino federal, transformando em obrigatórias, iniciativas que já são praticadas de modo isolado por algumas instituições.A revisão da lei, após 10 anos de sua implantação, já era prevista, acontece com um ano de atraso e terá de ser avaliada, ainda, pelo Senado Federal

A revisão da lei, após 10 anos de sua implantação, já era prevista e aconteceu com um ano de atraso. Entre as mudanças, a redução da renda – metade das vagas reservadas aos cotistas será destinada aos estudantes com renda familiar de até um salário mínimo por pessoa, atualmente é de um salário mínimo e meio – e a inclusão de estudantes quilombolas nas cotas das universidades e institutos federais de ensino

O projeto traz, ainda, um novo critério para o preenchimento das cotas. Primeiro, os candidatos cotistas concorrem às vagas da ampla concorrência. Só se a nota não for suficiente para ingressar por meio desta modalidade, irão concorrer às vagas destinadas aos seus subgrupos (pretos, pardos, indígenas, quilombolas, pessoas com deficiência e alunos da escola pública).  

Os estudantes que optarem pelas cotas terão prioridade para receber bolsa de permanência e outro tipo de auxílio estudantil. Além disso, pelo projeto de lei, as instituições deverão promover ações afirmativas de inclusão para os interessados em fazer pós-graduação, um avanço significativo, especialmente porque a redação não prevê necessariamente a modalidade de cotas.

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Ler, na coluna Sem Mordaça, o artigo Justiça para o povo preto, sobre o efeito danoso da Lei Antidrogas no povo preto.

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6 comentários em “Lei de Cotas, nossa revolução silenciosa”

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