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Quando a gente nasce negro, é tudo para ontem

por Tania Regina Pinto

2020 e 2021 se confundem. Na verdade, 2020 é um ano que ainda não passou na sua efervescência, nos seus desafios, o que inclui conter atitudes racistas, pelo menos. E, para nos fortalecer para a luta, vale muito ecoar a voz de Leandro Roque de Oliveira, homem negro, 35 anos, filho de dona Jacira, nascido e criado na zona norte da capital paulista. 

Um acrônimo, uma cor e uma palavra-sigla-nome são o suficiente para definir o dono da voz que vai reproduzir-se nas próximas linhas, de olho no passado para construir o futuro.

O acrônimo:

Enquanto Minha Imaginação Compuser Insanidades Domino a Arte.

A cor?

– AmarElo.

O nome, artístico?

E M I C I D A

– Fusão das palavras “MC” – de mestre de cerimônias – e “homicida”, por conta de suas vitórias nas batalhas de improvisação, que lhe deram a fama de “matador” dos adversários através das rimas.

A união na cor

Voltando à cor, AmarElo trata do amor que une, fortalece, resgata e que dá título ao documentário sobre cultura e história negra, daquele que é considerado uma das maiores revelações do hip hop do Brasil do início do século XXI e que fechou, com chave pretíssima, nosso 2020, inspirando mentes e emocionando corações.

Emicida: AmarElo – É Tudo pra Ontem  tem pressa de fazer acontecer, como avisa o título deste mergulho no ser negro em diáspora neste país.

A gravação de um show, que aconteceu em novembro de 2019 no Teatro Municipal de São Paulo, serve como fio condutor desta produção do Laboratório Fantasma. 

AmarElo é história, sociologia, autobiografia, ancestralidade. Mostra como o negro transforma, desde sempre, dor em arte, dor em potência, dor em grandeza na luta pelo direito de sonhar, de existir.

Retrospectiva

Ecoar a voz de Emicida é relembrar, trazer para o hoje, a certeza de que não há raça, tom de pele, conta bancária ou diploma capazes de mudar a realidade de vidas e histórias negras e brancas entrelaçadas, para o bem e para o mal, ainda. “Estamos em tudo que é Brasil”.

Nós, negros, não temos problema com as religiões de matrizes cristãs, apesar da ideia distorcida do cristianismo, do racismo religioso que nos fez acreditar que não tínhamos alma! “Deus não é cristão” – repito Paulina Chiziane, a primeira romancista negra moçambicana.

Paulina Chiziane com mãos juntas

Paulina Chiziane (Imagem original: divulgação)

E Emicida também aborda o tema. E abre espaço para o pastor e para o padre, para a madre e para a mãe de santo, para santos e orixás. Exu, aliás, é quem – como se deve – abre os trabalhos e avisa o que vai acontecer nos 87 minutos de AmarElo, com um antigo ditado iorubá:

“Exu matou um pássaro ontem, com a pedra que arremessou hoje.”

Somos muitos

Aqui, via AmarElo, é possível ecoar, ainda, outros tons, outras sonoridades, outras formas de dizer, como a voz da periferia: “Tudo que nóis tem é nóis”.

É verdade que a proposta – escancarada todo o tempo e questionada por críticos, com prós e contras – é de integração, mas todo o tempo, também, é evidente a consciência de que não existe integração real sem igualdade, sem equidade, o que reforça o mantra dos becos e vielas:

“Tudo que nóis tem é nóis.

“Tudo que nóis tem é nóis.

“Tudo que nóis tem é nóis.

“Tudo que nóis tem é nóis…”

O privilégio branco continua firme e forte – até porque não basta a branquitude ter consciência de que este privilégio é real. O desafio é abrir mão. E, para isso, é preciso atitude antirracista, é preciso reparar, devolver o que foi apropriado, o que foi negado, para além das redes sociais, para além do mundo digital.

A potência do ato

AmarElo, além do tom e da fala, ostenta o corpo, a ginga, os cabelos, o pensar  e o  sentir de um negro em lugar de privilégio, reescrevendo a história do Brasil, subvertendo a norma culta com sua linguagem coloquial, a partir de um palco que guarda todo o simbolismo de ter sido, sempre, reservado ao clássico, ao requintado, à realeza, à branquitude. ´

Não por acaso este é o espaço onde tudo acontece …

“Para além da presença digital, temos que ocupar espaços reais!” –  avisa Emicida.

Ocupar o palco do Teatro Municipal de São Paulo – com seu estilo arquitetônico semelhante e inspirado na Ópera de Paris -, 41 anos depois de termos tomado as escadarias externas deste mesmo teatro, em manifestação histórica contra o racismo, com a criação do Movimento Negro Unificado, em plena ditadura militar, é sem dúvida sinônimo de potência. 

Imagem: Jeferson Delgado

E Emicida – perto de completar 7 anos de idade naquele 7 de julho de 1978 – conta de seu sentir no tempo presente:

“Um Emicida não surge do nada. É (resultado de) uma série de outras movimentações, que aconteceram na cultura, na política, na intelectualidade brasileira, de gente que expandiu o entender deste país.” 

E ele inicia um desfraldar de bandeiras de ativistas negros…

Abdias do Nascimento – ator, artista plástico, poeta, político, criador do Teatro Experimental do Negro para o fortalecimento dos valores da cultura afro-brasileira.

Lélia Gonzalez – pioneira em tratar a questão da interseccionalidade, das barreiras que se multiplicam se somos negros, negras e mulheres, negros e homossexuais, negras e homossexuais… Por isso, crescemos ouvindo que “temos de ser três vezes melhores para sermos tratados como iguais, quem sabe”…

Abdias do Nascimento e Lélia Gonzalez

Abdias do Nascimento e Lélia Gonzalez

Sem esquecer outros militantes que vieram antes deles, no século XIX e início do século XX, se organizando das formas que fossem possíveis:  Os negros, desde sempre, se organizam em coletivos”, como irmandades religiosas, grupos de resistência para a compra de alforrias, associações, clubes…  

Assim chegamos nas candidaturas coletivas. Assim construímos, geramos sonhos que fortalecem a geração negra atual.

“Eu não sinto que eu vim. Eu voltei. E, de alguma forma, meus sonhos e minhas lutas começaram muito antes da minha chegada.”

Tebas e muitos outros

Nossa cor sempre roubada aparece em AmarElo quando o rapper liga os refletores e os direciona para uma parte significativa da história do Brasil negro, tornada invisível, deliberadamente apagada.

Com animações e uma linha do tempo, o documentário resgata alguns exemplos da presença negra não reverenciada nos museus, nos livros, nas salas de aula…

 “Não tem um prédio importante que não tenha uma mão negra que trabalhou para ele ser erguido”, comenta Emicida e, logo constata, que fomos a “cabeça de obras” (a expressão é minha) também.

Em outras palavras: não exploraram só a nossa força física, mas nosso intelecto! 

Tebas, “nome de uma quebrada no Egito Antigo” – capital do Império Novo, antes de Cristo, de 1550 a 1070 –, é referência ao primeiro arquiteto paulista, negro, escravizado, decisivo na renovação estilística pela qual São Paulo passou no século XVIII.

Tebas, o arquiteto

Me lembro do Carnaval de 1974 na capital, de a escola de samba Paulistano da Glória entrar na avenida reverenciando “Tebas, o escravo” no samba enredo do compositor Geraldo Filme:

“Tebas, negro escravo

Profissão: Alvenaria

Construiu a velha Sé

Em troca pela carta de alforria

 

Trinta mil ducados que lhe deu padre Justino

Tornou seu sonho realidade

Daí surgiu a velha Sé

Que hoje é o marco zero da cidade

 

Exalto no cantar de minha gente

A sua lenda, seu passado, seu presente

 

Praça que nasceu do ideal

E braço escravo

É praça do povo…”

É isso. O negro escravizado teve de comprar sua liberdade e, além da antiga Catedral da Sé, construiu as torres da Igreja do Carmo, o primeiro chafariz da cidade, com sua habilidade em talhar blocos de pedra bruta, numa época em que tudo se construía com a limitação da técnica de taipa.

E existem outros negros Brasil afora: Aleijadinho, Mestre Valentim, os irmãos Rebouças, Teodoro Sampaio, Enedina Alves

Nas palavras de Emicida:

“Quem sempre lutou para que a beleza e a arte tivessem vida no concreto frio foram os negros”.

Luta pela alma

E o rapper vai além quando mergulha na cultura negra. 

Registra, para que não se apague da memória, a retomada do centro da cidade de São Paulo – o Largo São Bento, pelo hip hop –, depois de o povo negro ter sido jogado nos extremos da capital.

Celebra o pioneirismo da madrinha do rap, Leci Brandão, a primeira mulher negra, homossexual a participar da ala de compositores de uma escola de samba.

Homenageia o baterista, percussionista, cantor e compositor Wilson das Neves. 

Dialoga com os Oito Batutas, do Rio de Janeiro de 1911, formado por  Pixinguinha na flauta, Donga e Raul Palmieri no violão, Nelson Alves no cavaquinho, China no canto, violão e piano, José Alves no bandolim e ganzá e Luis de Oliveira na bandola e reco-reco. Essa turma, uma maioria de homens negros e pobres, desceu  o morro, para brilhar em Paris, enquanto no Brasil se vivia a Semana de Arte Moderna, no centenário da Independência do Brasil, em 1922.

O país que deu certo?!

O samba é raiz e presença em quase todos os ritmos. “A fusão do samba com o rap, por exemplo, sai da zona norte de São Paulo” – lembra o artista. O samba é a alma do Brasil. O samba é o país que deu certo”, arrisca Emicida, ao abrir espaço para a história da primeira escola de samba, a “Deixa falar”, de Ismael Silva.

“Escola de samba” porque, na época, existia a “escola normal” no mesmo bairro do Estácio, no Rio de Janeiro. Enquanto em uma, se formavam professoras; na outra, se inventavam instrumentos de percussão, como o surdo e o tamborim – isso porque sambistas já nascem formados.

Só que não, ainda!

O problema é que livros e cadernos não levavam ninguém para a prisão, ao passo que “instrumento musical de tarraxa, na mão de preto, era considerado arma”, conta um dos entrevistados no documentário. E não precisava nem estar tocando! E o enquadramento era no crime de vadiagem! Demorou muito para sambista ser considerado artista

E o Leandro – o garoto “homicida” das batalhas de ontem, forjado no discurso virulento, colérico -, que vive dentro do artista-empresário de hoje, volta à cena só um pouquinho: 

  • “O Brasil é um país que mata gente preta sem constrangimento
  • “Aqui, existe pele alva e pele alvo.”
  • “Eu não sou o alvo do racista, eu sou o pesadelo do racista.
  • “Temos que ser 10 vezes melhor para jogar num campo que já é minado.”
  • “É subalterno ou subversão.”

Privilégio negro

Do ponto de vista histórico, privilégio negro é diferente de privilégio branco. Privilégio negro é conquista. Privilégio branco é sequestro, tráfico, exploração. Emicida, hoje, ocupa lugar de privilégio negro – por isso, honra os que vieram antes e lhe permitiram sonhar.

Dono de grife, gravadora, produtor e empresário, Emicida é sincero:

“Não vou fingir que moro no barraco. Seria constrangedor fazer isso à esta altura do campeonato. Não vou fingir que passo fome. Trabalhei muito. Tenho origem muito pobre”.

O álbum AmarElo, lançado em 2018, o primeiro em quatro anos, revela toda a expansão de seus próprios horizontes, indo além do rap e da rima, cantando melodias, abrindo-se para a MPB, chegando onde está.

E ele conta mais no documentário, que é sobre a sua jornada também.

Tudo de preto para nós

AmarElo foi presente de Natal para mim, inspiração para seguirmos na construção de uma sociedade melhor, mais fraterna, menos racista, mais respeitosa, menos misógina, menos machista, civilizada à africana. 

Ninguém vai deixar de ser quem é do dia para a noite. Não é assim que crenças, pré-conceitos, valores são desconstruídos. Não é assim que vamos desconstruir, tijolo por tijolo, séculos e séculos de racismo estrutural, machismo estrutural, homofobia estrutural, misoginia estrutural… 

Mas todos, do dia para a noite, conscientes de quem somos – racistas, misóginos, homofóbicos, machistas e mais – podemos conter o ódio que habita em nós. Sempre, só por hoje.

Mulheres, negros, homossexuais, transexuais, crianças… Temos direito à vida. E tem lugar para todo mundo neste planeta.

A palavra é RESPEITO pelo existir de todos, todas, todes.

Que tudo seja preto, pretíssimo daqui para frente.

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5 comentários em “Quando a gente nasce negro, é tudo para ontem”

  1. JOSE WILSON EZEQUIEL

    Uma correção: a escritora negra mencionada, Paulina Chiziane,é nascida em Moçambique, na África. Ela tem vindo ao Brasil com alguma frequencia, para lançar os livros dela e participar de feiras literárias. Os livros têm sido publicados pela Nandyala Editora, de BH.

  2. Muito bom e reflexivo toda essa pesquisa que nos traz conhecimento e fortalecimento.
    Pelo um país ou população menos racista e tolerante.
    Isso eu ouço desde criança dentro de casa que nós negros precisamos ser duas vezes melhores e sempre temos que mostrar que somos competentes, qualificados, capazes ou outras provas.
    E devemos muito aos que antecederem a gente com suas lutas e gritos de vitórias e dores para vivermos um pouco melhor nós dias atuais e fazer valer e reconhecer esse legado da história que muitas vezes e negado, apropriado, destorcido para enfraquecer e nós tornar sempre escravos, sem alma, sem história.

  3. Pingback: É ancestral e grita Liberdade! • Primeiros Negros

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