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Racismo ambiental, apartheid climático

- Primeiros Negros

Retrato do racismo ambiental: jovens em meio a lixo sescartado em comunidade (Imagem: Reprodução Instituto Claro)

A relação entre crimes ambientais e violências étnico-raciais. Fenômeno que se manifesta de diferentes formas mas, em geral, se relaciona ao modo como as questões ambientais afetam desproporcionalmente, em especial, os marginalizados e discriminados, a maioria do povo brasileiro.

Crianças negras levam tiro da polícia. Assim como morrem de toxoplasmose em áreas insalubres, contaminadas em lixões industriais e vão morrer ainda mais na seca, de fome e em processos de imigração. Genocídio não é só a morte por tiro, é toda a lógica de exclusão baseada na nossa identidade racial, que faz com que nossas vidas sejam descartadas dentro do sistema. Seja no tiro direto, seja pelo não acesso a tratamentos de saúde, por contaminação do meio, pelo não cuidado com doenças psicológicas etc etc etc”

Esta é a escrita da ativista Stephanie Ribeiro, em uma de suas colunas para a revista Marie Claire, sobre o conceito de racismo ambiental e a importância de a população negra se preocupar com os impactos da ação humana no meio ambiente.

Comunidades são usadas como locais de descarte de resíduos tóxicos, depósito de lixo e outros tipos de poluição, sem que sejam consultadas e/ ou informadas sobre os riscos associados. O saldo são problemas de saúde, problemas econômicos, questões sociais, como a desvalorização imobiliária e a falta de acesso a recursos.

Água, esgoto e lixo

No Brasil, a desigualdade no acesso à água tratada, coleta e tratamento de esgoto é um fato. Dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento informam que são cerca de 40 milhões os brasileiros sem água tratada e mais de 100 milhões sem coleta de esgoto.

A Síntese de Indicadores Sociais (SIS), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), totaliza 72,1% de residências, onde mora uma maioria de pessoas brancas, com acesso aos serviços de água, esgoto e coleta de lixo. Já onde moram pessoas pretas (“negros e pardos” na classificação do IBGE), o índice é 54,5%

A consequência aparece no DataSUS: entre 1996 e 2014, 97.897 óbitos de pessoas pretas em função das chamadas Doenças Relacionadas ao Saneamento Ambiental Inadequado (DRSAI).

“É como se 40 aviões caíssem anualmente com uma tripulação negra a bordo, tendo o Estado como piloto, as instituições sociais como copilotos e a sociedade como comissária de bordo (…)” – compara estudo da Universidade Federal do Espírito Santo.

Acesse a edição ANTIRRACISMO, são 32 artigos sobre as diversas faces da luta.

“É assim que o racismo ambiental afeta diretamente a vida das pessoas. A cada um real investido em saneamento básico, economiza-se quatro reais em saúde. É opção do Estado não investir nessas vidas, negligenciar essas vidas, nossas vidas, acusa a ativista negra Keit Lima, na série Jornada Antirracista.

Ciclo vicioso

“Pessoas negras moram mais longe, ficam mais tempo no transporte público para chegar no trabalho e são mal remuneradas. Morrem mais cedo, por causa da violência policial, mas também por doenças evitáveis. Qual a diferença entre quem vive no centro e quem vive na periferia? O acesso à saúde. Enquanto houver racismo, não haverá justiça ambiental” – alerta Ana Sanches, pesquisadora da temática Racismo Ambiental e Ecologismo Decolonial. 

O preconceito reforça a pobreza, mantém o povo preto em condições inadequadas de competição. A denúncia de existência de racismo ambiental exige que se vá além da pauta do meio ambiente. Implica buscar justiça climática:

Lutar por Justiça ambiental é necessariamente discutir raça e território. A desigualdade social no Brasil é alicerçada no racismo estrutural”, reforça a ativista Keit Lima.

O debate

Mas a denúncia não é de hoje! Racismo ambiental começa a ser pauta de debate, na década de 1980, quando a população negra da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, se mobiliza contra um depósito de resíduos tóxicos.

O termo é criado pelo químico Benjamin Franklin Chavis Jr, líder negro do Movimento de Direitos Civis, a partir de suas investigações e pesquisas entre a relação de resíduos tóxicos e a população negra norte-americana.

Empresas escolhiam territórios onde viviam populações negras, empobrecidas, para despejar dejetos químicos. Em outras palavras, além da degradação ambiental, estavam matando vidas negras.

Daí a definição de Benjamin Chavis:

“Racismo ambiental é a discriminação racial no direcionamento deliberado de comunidades étnicas e minoritárias para exposição a locais e instalações de resíduos tóxicos e perigosos, juntamente com a exclusão sistemática de minorias na formulação, aplicação e remediação de políticas ambientais”.

O fato é que existe uma lógica de poder na escolha de áreas que serão exploradas e como essas áreas serão exploradas, danificando a vida e saúde de povos marcados por sua identidade racial, como negros, indígenas, latinos e asiáticos.

Apartheid climático

Entre os séculos XVI e XXI muita coisa mudou, é verdade. O conceito de racismo ambiental e suas aplicações são mais diversos, inclusive no que diz respeito à identidade racial das vítimas. Negros, entretanto, continuam fora do debate ambiental. Daí – vale insistir – a importância de se ampliar a visão, a compreensão sobre a origem do termo e como ele abre margem para várias discussões e propostas de políticas públicas.

Inúmeros cientistas alertam para uma série de mudanças climáticas com impactos diretos na vida e sobrevivência humana. Algumas das possíveis consequências são:

  • Ondas de calor pelo mundo;
  • Secas e incêndios;
  • Ciclones devastadores e simultâneos;
  • Chuvas e enchentes;
  • Um milhão de espécies em risco de extinção.

Especialistas da Organização das Nações Unidas usam termos como “apartheid climático”, imaginando uma realidade escassa – seca, cheia de conflitos, ausência de comida, muito calor… 

Cada região do planeta será afetada de um modo diferente, conforme sua posição física, econômica e social. Mas países com mais recursos, mesmo muito afetados, poderão lidar melhor com os danos. países que enfrentam dívidas e economia instável sofrerão muito mais.

Território nacional

No Brasil, o racismo ambiental tem origens profundas na própria história, incluindo o período da escravização do povo preto e a ocupação territorial dos povos indígenas. 

Durante a colonização, as áreas mais ricas em recursos naturais foram tomadas e exploradas sem consentimento ou compensação das comunidades locais.

Grupo Quilombola Quingoma pede demarcação de território em Lauro de Freitas (Imagem: Reprodução | B News)
Grupo Quilombola Quingoma pede demarcação de território em Lauro de Freitas (Imagem: Reprodução | B News)

Exploração que continua no pós independência do Brasil pela elite branca e rica que se apropria das terras e dos recursos.

Nos dias atuais, o racismo ambiental se perpetua com a ocupação de terras indígenas e quilombolas por empresas agropecuárias; a exploração de recursos naturais em áreas protegidas; a poluição de rios e lagos em comunidades carentes, e a exposição a substâncias tóxicas em comunidades próximas a indústrias químicas.

O preço do feminino

Quem mais sofre com eventos climáticos extremos?

“A mulher preta”, responde a pesquisadora Ana Sanches que é, também, assessora do Instituto Polis, doutoranda no programa de Mudança Social e Participação Política da Universidade de São Paulo e ativista na rede antirracista Quilombação. 

São as mulheres negras – e em especial as mães soloas principais atingidas pelo racismo ambiental, insiste a pesquisadora. E sua constatação reforça o que ela mesma diagnosticou ao estudar o que chama de “injustiça energética” no Brasil: é a mulher preta (de novo) quem mais sofre com a falta de energia, seja por falta de infraestrutura ou por não conseguir pagar a conta de luz:

“Quando olhamos a formação das famílias brasileiras nas periferias, tem um recorte grande de mães solo, morando em áreas consideradas de risco, com menos infra estrutura e má remuneração. E são as mais afetadas na produção de energia, com a construção de hidrelétricas, combustíveis fósseis… A questão energética é outra faceta do racismo ambiental”.

Gentrificação

Ana Sanches propõe um olhar para o que ocorre sistematicamente no país, a partir das chuvas no litoral norte de São Paulo, que aconteceram em fevereiro de 2023 e que entram para a história com um volume de água que supera todos os desastres dos últimos anos.

Para ela, mais uma demonstração de que todo desastre ambiental é, ao mesmo tempo, um desastre humanitário, sanitário, econômico, social, urbanístico…

“Se pensarmos no contexto de formação sócio espacial das cidades do litoral norte e olharmos para quem são as populações mais afetadas, negras e indígenas, estamos diante de um caso de injustiça e racismo ambiental”.

E ela descreve o cenário e fala do perfil dos protagonistas – “principais” e “coadjuvantes”:

 “Temos uma região de gente com alto poder aquisitivo afetada pelas chuvas. Pessoas que têm casas de veraneio em condomínios fechados. Pessoas que têm carro, contratam helicóptero, podem repor os bens materiais que perderam…”

Elas não são as afetadas, expostas, a enchentes, deslizamentos, à seca, às doenças e às mortes causadas pela poluição, pelo excesso de calor e pelo excesso de frio. Mas são elas, as mais ricas, que vão ter acesso aos lugares mais seguros da região, depois da catástrofe climática, no que se tem chamado de “gentrificação climática”.

As casas soterradas são as das pessoas que trabalham para as pessoas com alto poder aquisitivo, que vivem em construções de pau a pique ou madeira, em ocupações territoriais nos morros, de forma inadequada, porque é onde têm condição de morar.

Comparação óbvia: apesar de as pessoas serem vítimas do mesmo evento climático, algumas vão poder comer e beber e outras não; algumas irão para áreas mais seguras e outras ficarão sem teto

E os mais ricos e os mais pobres – outra obviedade – possuem identidades raciais muito bem definidas.

Vício ou virtude?

As áreas inadequadas, passado o susto dos pobres, passam a se tornar interessantes para a classe média e/ou elite… Quem não foi expulso pelas águas, vai acabar expulso pela especulação imobiliária… Outras áreas, de nativos, serão envolvidas no mesmo processo.

Em outras palavras: os ricos vão mudar para áreas mais frescas, menos inóspitas e com menores impactos de desastres. 

E neste círculo vicioso dos que se acostumaram a se apropriar do que não lhes pertence surgem os “refugiados climáticos”, as pessoas que terão de sair de suas terras, sua origem e cultura para sobreviver em lugares devastados ou improdutivos por conta das mudanças climáticas advindas desse processo do colapso ambiental.

Mas imaginando um círculo virtuoso, Ana Sanches propõe o repensar do Plano Diretor das cidades e articular o poder público para realizar a distribuição de terra:

“O planejamento urbano não pode mais acontecer pelo viés da especulação imobiliária, a preocupação tem que ser moradia”.

A nível global, Ana defende, ainda, a necessidade de financiamento para projetos de adaptação climática, com os países mais ricos, que tanto exploraram nossos recursos naturais, assumindo a responsabilidade de financiar adaptações climáticas.

E tal conceito – indica a pesquisadora – pode e deve ser usado no cenário urbano, como da capital paulista, onde todos os 15 distritos com mais de 50% dos moradores autodeclarados negros ficam em regiões periféricas da cidade.

Os dados do Mapa da Desigualdade 2022, pela Rede Nossa São Paulo e o Instituto Cidades Sustentáveis, se baseiam em dados do último censo demográfico do IBGE.

“Fomos ensinados que a questão ambiental está lá na Amazônia. Só que a população urbana também se relaciona com o meio ambiente e faz parte do ecossistema”, finaliza a pesquisadora.

Acesse a edição ANTIRRACISMO, são 32 artigos sobre as diversas faces da luta.

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Abril 2023

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