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Futebol, preto no branco

– Primeiros Negros

São Paulo Railway 4 x 2 Gás Company: o primeiro jogo de futebol no Brasil (Imagem: Reprodução)

Nos apropriamos do futebol deles. Mas eles ainda não se conformaram. Tudo começa no fim do século XIX e não tem data para acabar!

18 de fevereiro de 1894, após concluir os estudos, o jovem Charles William Miller, um brasileiro filho de escocês, retorna da Inglaterra e traz na bagagem duas bolas, um par de chuteiras, uniformes, uma bomba de encher bola e um livro de regras do futebol jogado na Inglaterra.

Um ano depois, em 14 de abril de 1895, na Várzea do Carmo, na região do Brás, em São Paulo, Charles Miller realiza a primeira partida de futebol no Brasil, entre os funcionários da Gas Company of São Paulo e a São Paulo Railway Company.

O futebol vira moda, como sinônimo de modernidade que vem da Europa. Os campos de futebol são um prolongamento da elite. O acesso aos clubes e às quatro linhas do gramado é proibido a pessoas negras. Nas arquibancadas, abria-se uma ou outra exceção.

O novo esporte desbanca o turfe e o remo como preferências nacionais. Conquista brancos e pretos. Os primeiros assistem os jogos nos estádios e comemoram o resultado das partidas com uísque. 

Enquanto isso, os negros levam o jogo para a rua, o transformam por meio de uma nova linguagem corporal, criam um dos mais fortes elementos de identidade nacional e celebram com cachaça.

Quem compara é Carlos Alberto Figueiredo da Silva, autor do livro Racismo no futebol.

"Racismo no Futebol", por Carlos Alberto (Imagem: Reprodução)

A escravidão havia sido abolida faziam 7 anos.

A República dava seus primeiros passos. 

As tensões entre ex-senhores e ex-escravizados não estava pacificada.

Futebol era coisa de gente de pele branca, “coisa de bacana”, de rico, para a classe privilegiada, para jovens estudantes de medicina… Jamais um esporte de pobres, gente da classe baixa…

Por isso, uma pergunta ocupava a mente da elite:

Como pode negros e operários serem jogadores de futebol, um esporte para brancos?!

Alma racista

O jornalista esportivo e escritor Mário Filho trata do assunto racismo no futebol em 1947, quando lança o livro O Negro no Futebol Brasileiro. Ele historia sobre o doloroso ingresso de negros em campo, na época em que o Brasil se vendia ao mundo como o país convivência harmoniosa entre negros e brancos, da democracia racial.

"O Negro no Futebol Brasileiro", por Mário Filho (Imagem: Reprodução)

Na época, não era comum jogar bananas nos jogadores, embora os nossos já fossem xingados de “macaco” nos estádios.

O apelido de Macaca, da Associação Atlética Ponte Preta, aliás, tem sua raiz no racismo. O primeiro negro a jogar futebol por um clube brasileiro é Miguel do Carmo. Isso porque ele é também um dos fundadores do time de Campinas, no interior de São Paulo.

A história desse pioneirismo começa em 11 de agosto de 1900. Miguel tem 15 anos e junto com outros garotos e rapazes do bairro da Ponte Preta, funda o clube.

Por permitir atletas negros e operários em sua equipe, os adversários passaram a chamá-los de macacos e macacada – essa é a origem do apelido e da mascote do clube: macaca.

Em outras palavras, a ousadia valeu. O apelido pejorativo e racista foi ressignificado.

Libera arquibancada

Enquanto isso, no Rio de Janeiro, em 1905, é fundado por trabalhadores ingleses da Companhia Progresso Industrial do Brasil, uma fábrica de tecidos, o Bangu Athletic Club.

O time é formado por cinco ingleses, três italianos, dois portugueses e um operário negro por nome Francisco Carregal, tecelão da fábrica.

E o Bangu , ainda, “aboliu” a proibição de pobres e mal vestidos de assistirem aos jogos da arquibancada, área que antes era destinada apenas aos brancos “distintos” – pobres e negros só podiam assistir o jogo da chamada “geral”, de onde mal dava para se ver a partida. 

No mesmo ano, é criada uma liga para impedir que atletas negros sejam inscritos nas equipes. E o Bangu, mais uma vez, resiste: não aceita tirar os jogadores negros do time e é excluído da entidade.

“O que distinguia o Bangu do Botafogo e do Fluminense, era o operário. O Bangu, clube de fábrica, botava operários no time em pé de igualdade com os mestres ingleses. O Botafogo e o Fluminense, não, nem brincando, só gente fina” – escreve Mário Filho.

“Pó de arroz”

O apelido “pó de arroz”, do Fluminense, é outro caso de prática de racismo, aumentada por birra da torcida por o jogador Carlos Alberto, do América, ter ido jogar em outro time carioca, o Fluminense.

O jogador estreia pelo tricolor em 29 de março de 1914, na vitória por 3 a 0 sobre o São Cristóvão. Logo se torna titular. Carlos Alberto é negro, mas sua cor não causa alarde.

Chega o 13 de maio de 1914 e Carlos Alberto tem uma prova de fogo: vai enfrentar o antigo time. A torcida americana começa a provocá-lo, gritando “pó de arroz”, se referindo ao produto branco que o atleta usava no rosto depois de fazer a barba.

E, mais uma vez, a ofensa é ressignificada e a torcida tricolor se torna “pó de arroz” com muito orgulho. 

Disfarce na cor

Mas existe uma outra versão dos fatos, na qual se relata que a diretoria do Fluminense obrigava Carlos Alberto a passar pó de arroz antes das partidas, para que a cor da sua pele não chamasse atenção.

E uma terceira versão em que se afirma que o jogador, com medo de ser descoberto, no vestiário, fazia maquiagem colocando pó de arroz no rosto. O problema é que, no decorrer da partida, o suor entregava o disfarce. Daí o apelido para provocá-lo.

Sobre o uso do pó de arroz tem outra história, a de Francisco Gomes Carregal, o primeiro negro a jogar no time do Bangu, a quem não bastava vestir o uniforme do time e calçar chuteiras para entrar em campo. Antes, ele – e outros boleiros negros contratados depois – tinha de usar touca para esconder o cabelo crespo e se maquiar com pó-de-arroz para clarear a pele e conseguir atravessar a catraca do clube!

Jogo duplo

Uma inovação radical no futebol acontece com o time do Vasco da Gama, que chega da Segunda Divisão com uma equipe multirracial e conquista o título da Primeira Divisão do campeonato carioca enfrentando equipes formadas apenas por brancos. 

A favor da branquitude – registra Mário Filho em seu livro -, um dirigente vascaíno da época escancarou a relação de exploração dos negros:

“Entre um preto e um branco, os dois jogando a mesma coisa, o Vasco fica com o branco. O preto é para a necessidade, para ajudar o Vasco a vencer.”

Em outra vez, no Torneio de Natal, entre São Paulo e Rio, na capital paulista, muitos brancos se recusaram a jogar, exatamente por o jogo ser no dia de Natal de 1916. Os cariocas, então, completaram o time com jogadores negros e venceram – 9 x 1! 

Apesar do resultado, após o jogo, os cariocas disseram que a seleção vitoriosa não representava o verdadeiro Rio. Isso porque cariocas brancos “jamais deixariam seus parentes solitários numa noite de Natal. Só negros e mulatos são capazes de agir assim”.

Craque negro

Em 1917, o Diário Oficial carioca publica a “lei do amadorismo”, uma medida que, de forma velada, estabelece regras que culminariam na exclusão de jogadores negros do futebol brasileiro.

Mas surge, em 1919, o primeiro grande craque do futebol brasileiro, Arthur Friedenreich – ele tem creditado em sua estatística cerca de 1319 gols! -, negro de olhos verdes e cabelos crespos, filho de um neto de alemães com uma mulher negra que, sempre, antes de entrar em campo alisava o cabelo e usava uma toca para disfarçar sua origem africana. Precisava parecer menos negro!

Friedenreich, do Paulistano (SP), se torna ídolo depois de fazer um gol contra o Uruguai, que dá o primeiro título à Seleção Brasileira, o Sul-Americano, de 1919.

“E o povo descobria, de repente, que o futebol deveria ser de todas as cores, futebol sem classe, tudo misturado, bem brasileiro”.
(escreve Mário Filho)

Com a vitória da equipe brasileira no Campeonato Sul-Americano, a imprensa passa a dar grande destaque ao futebol, que entra no gosto dos políticos também.

O então presidente do Brasil, Epitácio Pessoa, em 1921, “recomenda” que seleção não leve jogadores negros para a Argentina, onde se realizaria o Sul-Americano.

Justificativa?

Projetar no exterior uma “outra imagem” nossa, composta “pelo melhor de nossa sociedade”!

Jogo preto

Nesse período, entre os anos 1920 e 1930, em algumas cidades, os negros, impedidos de disputar os torneios, criaram suas próprias ligas. São Paulo chegou a contar com 12 clubes disputando o campeonato informal. Mas, uma vez no ano, os melhores jogadores de cada liga se encontravam.

Se em 1916, o Vasco não fazia jogo duplo sobre a presença negra em campo; em 1923, apostou na negritude e conquistou o título de Campeão Carioca, um dos troféus mais importantes da história do clube, ao mesmo temppo que se tornou o primeiro clube dos quatro grandes do Rio a jogar com 12 atletas negros no elenco.

No ano seguinte, quando o Vasco tentou disputar a primeira divisão carioca, a associação futebolística condicionou sua participação na liga à retirada de doze negros de seu time. O Vasco se recusou a cumprir a medida e preferiu competir entre os times pequenos.

Preto x Branco

Entre 1927 e 1939, sempre no dia 13 de maio — data da assinatura da não-lei da abolição, de três linhas — ocorria o clássico “preto x branco”. 

O negro Arthur Friendenrich, considerado o melhor jogador brasileiro antes de Pelé, chegou a participar do desafio, mas vestindo a camisa dos brancos.

A partir dos anos 1930, com a profissionalização do futebol, acabou a reserva de mercado para os “brancos de família distinta”: o talento venceu a cor da pele. Agora, os desafios são outros.

Leia o artigo Futebol e Racismo, sobre violência no futebol e ativismo nas redes sociais.

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Escrito em maio de 2023

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1 comentário em “Futebol, preto no branco”

  1. Laurenil Machado da Silva

    Legal!
    Surpreso, meu artigo usado como uma das fontes.
    Racismo no futebol, é bola fora.
    É uma luta de todos.

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