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Democracia Racial: fato ou fake?

- Tania Regina Pinto

7 de julho de 1978, ano de criação do MNU (Imagem: Jesus Carlos)

Gilberto Freyre, num tempo em que não existiam redes sociais, criou uma das mais longevas mentiras da história, o mito da democracia racial.

“Um mito é uma narrativa de caráter simbólico-imagético, ou seja, o mito não é uma realidade independente, mas evolui com as condições históricas e étnicas relacionadas a uma dada cultura, que procura explicar e demonstrar, por meio da ação e do modo de ser das personagens, a origem das coisas.”

É assim que a Wikipédia define esta composição das vogais ‘i’ e ‘o’ com as consoantes ‘m’ e ‘t’. E no Brasil, dia a dia, percebemos o mal que todo e qualquer mito pode fazer ao nosso viver.

Nosso foco, entretanto, será o mito da democracia racial, criação do sociólogo e historiador pernambucano Gilberto Freyre, exaltada pelo presidente-ditador Getúlio Vargas e utilizada como marketing nacional.

A mesma autodefinida “enciclopédia livre” nos ensina que “Democracia é um regime político em que todos os cidadãos elegíveis participam igualmente – diretamente ou através de representantes eleitos – na proposta, no desenvolvimento e na criação de leis, exercendo o poder da governação através do sufrágio universal”. Bonito, não é mesmo?!

No passado, eu diria, “o papel aceita tudo”. Hoje, nós sabemos, a rede mundial de computadores também aceita tudo! E o mito da democracia racial está na lista das fake news que “deram certo”, na contramão de todas as necessidades negras.

Começa que a democracia no Brasil é falha. Negros e negras não estão representados e a falsa cordialidade é facilmente identificável pela cor da Justiça, da Política, da Polícia, da Economia, do Agronegócio…

A peça original

A luta negra pela desconstrução da ideia de que vivemos em uma sociedade igualitária, solidária e acolhedora tem sua raiz no livro Casa Grande e Senzala, publicado em 1933, que vende a ideia de negros, brancos e índios desfrutando as riquezas do Brasil!!!

Registre-se que Gilberto Freyre, de família rica e tradicional, autor da primeira obra sobre as relações entre senhores e escravizados no Brasil, em nenhum momento utiliza o termo “democracia racial”. O que ele faz, nas páginas de seu livro, é descrever relações amistosas entre brancos, negros e índios baseando-se na miscigenação do povo brasileiro, característica pouco comum em outros países que tiveram pessoas escravizadas de origem africana.

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Ele se refere a um sistema de relações de poder do período colonial – que permanece nos dias atuais – onde a mulher negra aparece na base da pirâmide e do rancor que as senhoras, brancas, tinham por essas mulheres escravizadas serem as preferidas, por seus maridos, para a prática sexual.

Resumindo: na visão equivocada de Freyre, os estupros e as relações abusivas dos senhores, tratando as mulheres negras e indígenas como objetos, era indicativo de ausência de preconceito.

Racismo científico

Na cabeça (?!) do autor, a mistura provocava o melhoramento racial (leia-se: clareamento da pele negra) e o “enriquecimento” genético dos brasileiros!

Mas todos sabemos que não existe inferioridade biológica, incompetência, incapacidade intelectual, vagabundagem e, sim, ignorância branca, arrogância branca, orgulho branco, vaidade branca, inveja branca, preguiça branca… Tudo na base do racismo para sustentar a insustentável mentira de ser superior.

Leia nossa edição “Gente Preta Genial“, sobre invenções negras.

Profissionais qualificados

O processo de escravização do povo preto não foi aleatório. Não se pense que os mercadores chegavam no continente africano e laçavam quem aparecesse no caminho. Eles iam à procura de profissionais especializados.

Para Minas Gerais, a demanda era de negros provenientes da costa oeste africana, onde havia muitas faculdades e um exército de 200 mil homens, profissionais com conhecimento técnico para extração de ouro e prata.

“Essa aparente irracionalidade do tráfico parece nunca ter existido”, esclarece Eduardo França Paiva, professor de história da Universidade Federal de Minas Gerais. “A maior parte dos escravizados que entra na região de mineração é proveniente de regiões mineradoras muito antigas do continente africano”.

Boa parte da arquitetura barroca de Minas também é herança negra de Moçambique, que tem cidades inteiras construídas com o que conhecemos como pedra sabão. É técnica africana, mas durante muito tempo se divulgou que era técnica europeia!

E o mesmo expediente valia para a escravização de homens necessários para investimento em agricultura.

O continente africano teve a sua mão de obra qualificada roubada!

A África foi a solução para todos os problemas europeus de falta de gente para as embarcações, para povoar e trabalhar nos lugares “descobertos”, para garantir a alimentação de todos…

Não contar esta história nos deixa sem referências negras nas ciências, nas artes, na política, na academia… Não contar esta história deixa brasileiros e brasileiras sem as verdadeiras referências de formação do povo. E isso faz parte da estratégia de não compartilhamento de poder.

A linha dura

Mas voltemos à fake news da democracia racial…

Vivia-se a ditadura Getúlio Vargas e o autoproclamado presidente torna-se garoto-propaganda da farsa, “vendendo” para o mundo a feijoada como símbolo do Brasil racialmente democrático – o feijão, o negro; arroz, o branco; a couve, a mata e o índio; a laranja, o ouro.

E esta “estratégia de marketing” rende frutos até hoje e faz parte das contradições do Brasil que adora dizer que odeia preto, ama pretas, samba, jogadores de futebol, Nossa Senhora Aparecida…

E esta democracia racial se presta, também, a nos fazer sentir naturalmente inferiores, pois vivemos num mundo sem igualdade nem equidade, permanecendo, a maioria, nas favelas, nos presídios, nas ruas…

 

História pra branco dormir

O Brasil foi o último grande país ocidental a extinguir a escravidão. E – como a maioria dos outros países – não criou um sistema de políticas públicas para inserir os escravos libertos e seus descendentes na sociedade.

democracia racial manifestantes

Sem emprego, sem moradia digna e sem condições básicas de sobrevivência, o fim do século XIX e a primeira metade do século XX do Brasil são marcados pela miséria e sua resultante violência entre a população negra e marginalizada.

Os recém-libertos foram habitar os locais onde ninguém queria morar, como os morros, na costa da região sudeste, formando as favelas. Proibidos, por lei, de comprar terras ou propriedades.

O sistema

Mas este é apenas um dos muitos tentáculos para se compreender o racismo estrutural, sistema de invisibilidade e inviabilidade do povo preto no que diz respeito a direitos, no que diz respeito à vida.

A negação de nossa origem dentro do continente africano é outro tentáculo. Diante da possibilidade de libertar os escravizados, do medo de ter de enfrentar pedidos de indenização por perdas e danos – como fizeram os franceses obrigando os escravizados no Haiti a os indenizarem por terem reconquistado a própria liberdade -, o abolicionista Rui Barbosa, então ministro da Fazenda, se desfaz de toda a documentação fazendária, não para “queimar” a história da escravidão, mas as notas fiscais de compra e venda de escravos. Tudo para que o Estado não tivesse que indenizar os escravocratas com a promulgação da lei áurea.

Sem vergonha

O geógrafo Milton Santos, certa vez, em entrevista à rede BBC, contou que teve “a sorte de ser negro em pelo menos quatro continentes (…) e em cada um desses é diferente ser negro e é diferente ser negro no Brasil! (…) Aqui, de um modo geral, ninguém têm vergonha de ser racista, mas tem vergonha de dizer que é racista…”

Este jeito racista de ser brasileiro – comentou Milton Santos – sempre comprometeu a análise da co-existência nacional.

“Não é o olhar para a África que vai ajudar na produção de uma política brasileira para o negro nem um olhar para os Estados Unidos que vai permitir a produção de uma política. É o estudo do negro dentro da sociedade brasileira”, propunha o geógrafo em sua militância.

Quando o jornalista Roberto D’Avila perguntou a ele sobre o ressentimento dos negros em relação a sociedade branca, Milton Santos respondeu que “são os brancos que têm o ressentimento com relação os negros que conseguem acender socialmente… Isso porque ressentimento que tem eficácia é de quem tem poder”.

O genocídio da população indígena, com a invasão de suas terras e desmembramento de suas aldeias, que acontece até hoje, também faz parte dessas ações sistêmicas que promovem e sustentam a exclusão racial em nosso país.

E, agora, cá estamos nós, colocando os pingos nos ‘is’ e combatendo uma das piores fake news da história nacional, que só perde mesmo para a que conta a história da carochinha do descobrimento do Brasil.

Quem pode imaginar o descobrir-se uma terra ocupada por aproximadamente três milhões de índios?

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Poder para negros e indígenas.

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