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“Baiana do acarajé”, pioneirismo e ancestralidade maculada

- Tania Regina Pinto

Acarajé é comida de Xangô e Iansã, de orixás, comida de santo, dos deuses do fogo. Não é “bolinho de Jesus” como querem os evangélicos, nem “fast-food” como quer o comércio. Tem gênero – feminino; religião – candomblé, e raiz – liberdade.

Mais que culinária, a  Baiana do Acarajé é figura icônica povo afro-brasileira. Em sua história, a preservação do culto aos orixás e a comercialização dos bolinhos de feijão com dendê para financiamento e manutenção de terreiros e para a compra de cartas de alforria para o resgate da liberdade dos escravizados. 

O que este artigo responde:
Quem são as primeiras empreendedoras do Brasil?
Acarajé é comida sagrada?
É verdade que só as baianas são autorizadas a fazer o acarajé?
Baianas do acarajé vendem só acarajé?
O que é a Baiana do Acarajé?
Qual é a origem do acarajé?
Quais são os ingredientes principais do acarajé? .
Qual é o papel da Baiana do Acarajé na cultura afro-brasileira?
Onde é mais comum encontrar a Baiana do Acarajé?
Por que os senhores de escravizados  permitiam que as baianas vendessem acarajé?

Ser baiana do acarajé é trabalho concedido pelos orixás às mulheres. Ser baiana do acarajé é profissão centenária, baiana, feminina, ancestral.

Até o final do século XIX, com seus bolinhos de feijão-fradinho fritos em azeite de dendê – de sabor único, recheado com camarão, cebola e outros temperos –, estas empreendedoras dos tempos da escravidãoassumiram a luta para comprar a liberdade roubada dos negros, garantiram o sustento de senhores de escravos e de suas próprias famílias, decretada a abolição, financiaram terreiros de candomblé.

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Pessoas de todas as religiões e sexo biológico se permitem ganhar a vida vendendo acarajé. É escancarado o desvirtuamento ancestral e histórico desta prática – que conta quem somos – e a tentativa permanente de nos esmagar utilizando a estratégia do esquecimento, do não registro.

A história do acarajé integra a luta da mulher negra, do povo preto, por liberdade e narra a trajetória das primeiras empreendedoras do Brasil, as baianas de tabuleiro.

Drible nos grilhões

A comercialização do acarajé tem início no período da escravidão com as chamadas escravas de ganho que trabalhavam nas ruas para as suas senhoras (geralmente pequenas proprietárias empobrecidas), desempenhando diversas atividades, entre elas, a venda de quitutes nos seus tabuleiros.

Elas vendiam de tudo: de mingaus a peixes fritos, de acarajés a bolos. Embora tivessem que repassar grande parte do lucro para suas proprietárias, as escravas de ganho podiam ficar com um pouco do que recebiam.

Baiana do acarajé
Arte: Candido Vinícius sobre foto de Ruso Tomosky/Flickr

E foi assim que elas deram continuidade ao comércio ambulante de produtos comestíveis que praticavam quando viviam na África. Lá, tal prática, conferia a elas  autonomia em relação aos homens e, muitas vezes, o papel de provedoras de suas famílias.

Em território nacional, praticamente nada mudou. Muitas escravizadas conseguiram comprar a própria liberdade e de outros.

A ação das baianas é a volta por cima, o drible nos grilhões. Vendendo nas ruas,  elas iam além da prestação de serviços às “patroas” e se tornam fundamentais na constituição de laços comunitários entre os escravos urbanos e também na criação de irmandades religiosas e terreiros do candomblé.

Muitas filhas-de-santo começam a vender acarajé para cumprir com suas obrigações religiosas que precisam ser renovadas periodicamente.

Poder da fé

Devido a essa liberdade de movimento e a religiosidade destaque-se, ainda, que estas mulheres escravizadas, com seus tabuleiros, conquistaram uma condição especial. Ao mesmo tempo que sustentam suas senhoras, podem lutar por liberdade e  são vistas como elementos perigosos, tornando-se, por isso, alvos de posturas e leis repressivas, mas também de profundo respeito.

Acarajé é comida de santo, oferenda a Xango e Iansã. Sua origem é explicada por um mito sobre a relação do orixá da Justiça com uma de suas esposas, Iansã, deusa dos ventos e das tempestades, dona da alma dos mortos.

E as baianas dizem mais: o ofício não teria a importância que tem não fosse o seu status de comida sagrada.

O mito

Conta a Mitologia Africana que Iansã,também cultuada como Oiá, foi à casa de Ifá – o oráculo, orixá responsável pelo jogo de búzios, o pai dos segredos – buscar um alimento para seu marido. A orientação de Ifá foi que, após comer, Xango falasse ao seu povo.

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Xangô comeu e quando estava falando ao povo, começaram a sair labaredas de fogo da sua boca. O mesmo acontecendo com Iansã quando ela correu para ajudá-lo. Isso porque ela provou do preparo antes de entregá-lo.  Assim, Iansã acabou partilhando do poder de Xangô e os dois foram saudados como deuses do fogo.

“Comer bola de fogo”

Acarajé é uma palavra composta de origem iorubá: acará (bola de fogo) e jé (comer), ou seja, “comer bola de fogo”.

Tudo no acarajé e nas baianas está repleto de simbolismo, do preparo da receita à roupa das cozinheiras.

Quando preparado para Iansã, na forma de oferenda, o acarajé é sempre frito e sem complementos.

Em âmbito sagrado, também, os acarajés grandes e redondos devem ser servidos para os obás (ministros de Xangô) e para os erês (intermediários entre a pessoa e seu orixá); os pequenos para as iabás, como Iansã, a rainha valente.

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Às sextas-feiras, não devem ser feitas comidas de cor, principalmente as com dendê, para não ofender Oxalá, criador dos seres humanos, que só aceita pratos brancos e sem condimentos.

As roupas tradicionais, como a grande saia rodada, o pano da costa usado sobre os ombros, o turbante, a bata, as pulseiras e os fios de contas com as cores dos orixás pessoais fazem parte do ritual que determina que o acarajé só deve ser vendido por mulheres do candomblé, indicadas pelos orixás.

Ancestralidade de conveniência

O ofício das baianas continuou após o fim da escravidão. A profissão foi regulamentada em 1998 e, no século XXI, o ofício das baianas do acarajé é inscrito como Patrimônio Imaterial da Bahia e Patrimônio Cultural Brasileiro.

Baianas do acarajé na Copa Do Mundo de 2014
Baianas do acarajé na Fonte Nova, durante a Copa Do Mundo de 2014 (Foto: Reprodução/Vírgula)

A importância da comida sagrada é tão grande que a FIFA, durante as copas das Confederações e do Mundo, permite que as baianas vendam seus acarajés  dentro da Arena Fonte Nova, em Salvador, exatamente como faziam há décadas.

E há quem defenda que o acarajé seja declarado Patrimônio Mundial da Humanidade, numa petição que seria feita em conjunto por Brasil e Nigéria, onde o alimento é servido no café da manhã.

O Governo da Bahia oferece até curso para “aprimorar o ofício” das que são as primeiras empreendedoras e negras da Bahia e, quiçá, do País. 

A programação inclui palestras sobre empreendedorismo e mercado de trabalho e qualidade no atendimento, além de curso de boas práticas na manipulação de alimentos.

Resistência

O prato continua ligado à fé, é verdade, mas não é mais exclusividade das baianas do acarajé, herdeiras dos escravizados urbanos.

“tombamento  do acarajé” escamoteia a valorização de uma profissão feminina religiosa e historicamente presente no País.

Muitos contestam a religiosidade negra como parte do viver negro e defendem, por conveniência, um respeito relativo às tradições. Em outras palavras, mais economia, mais turismo, menos fé, menos essência negra.

Mesmo ao ser vendido num contexto profano, o acarajé é considerado, pelas baianas, uma comida sagrada: bolinho de feijão-fradinho frito no azeite de dendê é candomblé

Enquanto seguem lutando, as baianas, patrimônio imaterial, sofrem, cada vez mais, com a concorrência da venda do acarajé em bares, supermercados e restaurantes, que divulgam o bolinho como fast-food.  Com os tabuleiros revestidos por paredes de vidro. Com  evangélicos e evangélicas que, de bíblia em punho, vendem acarajé como “bolinho de Jesus”.

Não à-toa Dona Dica, diante do seu tabuleiro no Largo Quincas Berro D Água, no Pelourinho, em Salvador,  pergunta: “Se você tem uma religião que é contrária ao candomblé, por que vender acarajé e não qualquer outro quitute?”

A apropriação do acarajé contraria o seu universo cultural original.

A hóstia está para a igreja católica como o acarajé está para as religiões de matriz africana.” É simples assim, explica Rita Santos, coordenadora da Associação Nacional das Baianas de Acarajé.

A receita não é secreta, mas não pode ser modificada e deve ser preparada apenas por filhas-de-santo.

“O produto comercial a pessoa vai lá, bate a massa e vende. Ela quer é receber o dinheiro dela no fim do dia. Está fazendo é bolinho de feijão frito com azeite de dendê. A baiana, aquela mulher do terreiro, cujo ofício hoje é patrimônio imaterial, tem um ritual enquanto está batendo a massa. E isso sim é o acarajé. No momento em que se torna um produto industrializado, o prato perde todo o significado, de ser uma oferenda.

12 comentários em ““Baiana do acarajé”, pioneirismo e ancestralidade maculada”

  1. Bela reportagem, muito esclarecedora … Necessária para que o candomblé seja respeitado como as demais religiões…

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