A dura realidade da natação, que historicamente afasta negros e negras das piscinas. Nem 6% dos atletas que já representaram o país em Olimpíadas são negros.
Inclusão, zero. Direitos iguais, zero. Igualdade, zero. Atletas de elite negros, quase zero. Este o quadro da Modalidade Natação nas Olimpíadas. Não é foto nem filme. É quadro histórico!
No Brasil, nem 6% dos atletas que já representaram o país em Olimpíadas, em 100 anos, desde a primeira participação em Antuérpia 1920, são negros. Seis por cento é igual a 10, dez nadadores olímpicos.
Segundo o último levantamento do IBGE, feito no primeiro trimestre de 2020, a população negra no Brasil representa 56,4 %, quase 119 milhões de pessoas.
“Acho que esse aspecto do preconceito é explícito. Muitas vezes, quando eu ia competir, os atletas me olhavam de cima a baixo com aquele olhar ‘o que esse neguinho tá fazendo aqui?’”, comenta Edvaldo Valério, estrela solitária da natação brasileira, o primeiro atleta negro a representar o país na modalidade em Olimpíadas e, até hoje, o único medalhista da história – conquistou o bronze no revezamento 4×100 livre em Sydney 2000.
Nosso nadador
Edvaldo é baiano, de um estado onde a capital, Salvador, tem maioria negra que ultrapassa os 82% e onde, também, os índices de pobreza e de desigualdade são altíssimos.
São quase 15 milhões de habitantes para apenas duas piscinas olímpicas em todo o estado:
“Quando eu ia competir o atleta branco me olhava de cima abaixo. Aquilo me intimidava, me deixava acuado, e eu tinha medo… e, pra mim, ele já ganhava a prova ali”.
Para Edvaldo, isso explica por que não temos tantos atletas negros praticando a natação. Romper este padrão – de pensar que não podemos ocupar este ou aquele lugar – é duro.
Que o diga Etiene Medeiros, exceção da exceção – ela faz parte dos 0,6% de mulheres brasileiras negras em Olimpíadas na modalidade, é a única negra da história a disputar os Jogos pela delegação do país. Feito realizado só na última edição, na Rio 2016!
“São assuntos que doem” – afirma a atleta. Doem desde sempre porque fazem parte da história do povo preto. Até o fim da década de 1950, negros sequer tinham o direito de entrar em clubes no país. Eram barrados na porta. E sem acesso à piscina.
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Prodígio às avessas
Nos anos 1960, os racistas falavam dos malefícios do cloro para a pele negra. Mas o racismo é pródigo em desculpas, com vistas a desencorajar nossos potenciais atletas.
Edvaldo e Etiene já ouviram “pérolas da ignorância” para desistirem da modalidade, tais como: “Negros não flutuam“, “Negros têm ossos mais pesados“… A branquitude insiste na tentativa de validação científica sem lastro.
“Eu ouvi isso minha carreira toda. De que o negro tinha o osso mais pesado o que dificultaria o deslocamento dele na água. Eu cresci tendo essa referência mesmo, de que o negro não tinha o biotipo específico para natação. Por que eu continuei? Porque eu acreditava que se fosse o caso, eu poderia vencer também a questão genética e fui medalhista com 22 anos”, contou Edvaldo.
Registre-se que é mentira.
Estudo realizado pelo departamento de Educação Física da Universidade de São Paulo (USP) analisou características físicas de todos os recordistas mundiais dos 100 metros livres e os comparou aos padrões corporais de negras e brancos.
Resultado:
“A natação é uma modalidade extremamente dinâmica, que envolve movimentos complexos, movimentos de trabalho submerso, então a capacidade de flutuação não é um fator determinante para o sucesso”, conforme afirma Marcelo Papoti, professor de Educação Física da USP.
Além-fronteiras
O racismo nas piscinas, entretanto, é globalizado. A natação integra o programa olímpico desde a primeira edição dos Jogos da Era Moderna, em Atenas 1896. Quer dizer, o Brasil entrou em cena mais de 20 anos depois. Mesmo assim, a primeira conquista de uma medalha olímpica nadando contra a maré do racismo só foi conquistada em Montreal 1976.
Conquista de uma mulher, Enith Brigitha, que nasceu em 1955, em Curaçao, ilha que pertence à Holanda, e aprendeu a nadar no mar azul do Caribe ainda criança e, aos 17 anos, disputou cinco provas, sendo dois revezamentos, e chegou à final em todas. Porém, a medalha só viria quatro anos mais tarde.
No ciclo olímpico, conquistou cinco medalhas em campeonatos mundiais e outras cinco no europeu. Não por acaso, em Montreal 1976, tornou-se a primeira negra a conquistar uma medalha na natação olímpica: bronze nos 100m e nos 200m livre.
Século XXI
Quarenta anos se passaram até que outra atleta negra subisse ao pódio para pegar o primeiro ouro negro na natação.
O nome da protagonista do século XXI é Simone Manuel, americana. E ela teve como palco a Olímpíada Rio 2016.
Detalhe importante: Simone Manuel não subiu ao pódio uma, mas duas vezes, conquistou duas medalhas de ouro e se tornou, também, a primeira negra a ser duplamente campeã olímpica na natação nos Jogos.
Entre os rapazes, a quebra do tabu aconteceu nos Jogos Olímpicos de Seul 1988, com Anthony Nesty, do Suriname, ao derrotar por um centésimo o favorito americano Matt Biondi. Nesty ganhou os 100m borboleta e se tornou o primeiro negro medalha de ouro na natação olímpica.
Simone Manuel está super cotada para Tóquio 2021.
Crime de racismo
Tóquio 2021 apresenta a prova do crime para quem pode pensar que ‘gente preta tem mania de perseguição’ quando a Federação Internacional de Natação veta a touca de natação afro para nadadores e nadadoras negros e negras.
O pedido foi feito pela empresa que fabrica as toucas Soul – feitas para se ajustar e proteger dreadlocks, afros, tramas, extensões de cabelo, tranças e cabelos grossos e encaracolados -, para que seus produtos fossem certificados para uso em competições.
Os diretores da Soul Cap, Michael Chapman e Toks Ahmed-Salawudeen, informaram que a Federação – de acordo com a empresa – disse que as toucas são inadequadas porque não seguem “a forma natural da cabeça” e que “os atletas que competem em eventos internacionais nunca usaram, nem requerem o uso, de toucas de tal tamanho e configuração”.
E este é, exatamente, um dos pontos quando o assunto é inclusão e atitude antirracista.
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