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Mônica Calazans, vacinada

A enfermeira negra, corintiana, da zona leste de São Paulo, foi a primeira a tomar vacina no Brasil para conter a pandemia de coronavírus.

Monica Calanzas (imagem: Grupo União de Jornais)
Mônica Calazans (Imagem: Grupo União de Jornais)

Muitos dos nossos estão morrendo mais. 2020 e 2021 – até agora – são anos marcados por óbitos por conta de joelhos no pescoço, falta de ar ou de oxigênio, balas perdidos, racismo, machismo… Mas uma de nós – uma mulher negra – transformou-se em símbolo de luta pela vida, pioneira na vacinação da pandemia que assolou o mundo no século XXI.

Um domingo

Aquele 17 de janeiro de 2021 parecia um dia normal para Mônica Calazans, enfermeira de 54 anos, moradora de um conjunto habitacional popular em Itaquera, na zona leste da capital paulista, onde nasceu.

Ela saiu de casa de madrugada, por volta de 5h30, embarcou em um trem do Metrô e, minutos depois, completou de ônibus a viagem até o Instituto Emílio Ribas onde, às 7 horas, iniciou mais um plantão de 12 horas. 

Tudo o que a enfermeira esperava naquele dia era realizar bem, e com segurança, a sua missão de ajudar a salvar vidas na Unidade de Terapia Intensiva onde, há nove meses,  atuava na linha de frente, no cuidado a pacientes de Covid 19

Seus planos, no entanto, mudaram no início da tarde quando soube que era a escolhida para ser a primeira pessoa no Brasil a ser vacinada. 

O ato

Às 15h30min – após 11 meses e cerca de 210 mil pessoas mortas desde o início da pandemia no Brasil -, ela recebeu a primeira dose da CoronaVac, vacina produzida pelo laboratório chinês Sinovac em parceria com o Instituto Butantan que, minutos antes havia sido aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), para uso emergencial.

Ao chegar no local de vacinação, o Centro de Convenções do Hospital das Clínicas, Mônica se encontrou com o governador de São Paulo, João Dória, e sob o foco de câmeras fotográficas e de emissoras de televisão, recebeu a primeira dose no país e incentivou a população a não ter medo do imunizante:

“Quantas pessoas têm receio de chegar próximas umas das outras? Eu tomo ônibus, metrô… As pessoas têm receio de chegar perto de você. Então, povo brasileiro, é nossa grande chance. Estou falando agora como brasileira, mulher negra, acredite na vacina. Vamos pensar nas vidas que perdemos”.

Mônica Calazans no dia da vacinação (Foto: Amanda Perobelli/Reuters)
Mônica Calazans exibindo sua carteirinha de vacinação (Foto: Amanda Perobelli/Reuters)

A espetada da agulha em Mônica foi transmitida ao vivo por praticamente toda a mídia. E

Em segundos, a notícia corria o planeta.

Atitude cidadã

“Minutos após eu tomar a vacina minha cara estava em tudo que é lugar, foi um susto”, relembra Mônica – ela saltava do absoluto anonimato de uma mulher negra, periférica, pobre, para um protagonismo improvável. 

Mas não existe acaso. Além de trabalhar no front de combate à pandemia, Mônica tem perfil de alto risco para complicações da Covid-19: ela é obesa, hipertensa e diabética.

E mais: participou como voluntária da fase de testes da CoronaVac e recebeu placebo, substância neutra, sem qualquer efeito no organismo.

“Eu quase perdi um irmão com Covid. Diante disso, tomei coragem e participei da pesquisa. No início, fui muito criticada”, lembra.

“Falaram que eu era cobaia…”. A doença também atingiu seu outro irmão, mas sem gravidade.

Seguimos morrendo

Este artigo foi escrito menos de dois meses depois de Mônica Calazans – a nossa pioneira e negra, voluntária na busca de uma vacina para conter a pandemia – tomar a primeira das duas doses previstas para ser imunizada. E, agora, passados cinco meses, seguimos morrendo – são 488 mil pessoas que perderam a vida – dados de 14 de junho de 2021 – e deixaram seus familiares órfãos. 

Desde a vacinação de Mônica, apenas 11,21% de pessoas foram vacinadas com as duas doses necessárias para a imunização -, exatamente porque o governo federal não contratou a compra de vacinas como os governantes de países do mundo inteiro.

E Mônica ao assumir o protogonismo da importância de todos nos vacinarmos, se viu vítima da parte da sociedade, barulhenta, que dá a entender que o melhor é que pretos, pobres e velhos morram.

Sim. Porque as estatísticas nos contam desta realidade. Ao mesmo tempo em que Estudo da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Estadual Paulista (Unesp) revela que se dois milhões de doses de vacina contra Covid-19 fossem aplicadas por dia, 20 mil vidas seriam salvas por mês.

Façamos a nossa parte.

E Mônica não conseguiu se proteger desses grupos negacionistas que disseminam notícias falsas, que desinformam, confundem e difundem sentimentos na contramão do amor…

Cartaz em manifestação que pede o impeachment do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Foto: Pam Santos/@soupamsantos.
Cartaz em manifestação que pede o impeachment do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Foto: Pam Santos/@soupamsantos.

Um desses grupos, inclusive, encontrou uma foto que a enfermeira havia tirado meses antes na praia e a usou para acusá-la de não respeitar o distanciamento.

Não saciados no desejo de morte, vincularam Mônica a partidos políticos de esquerda e, ao mesmo tempo, contraditoriamente, ao governador de São Paulo, João Dória.

E a ofenderam, ofenderam muito. E criaram perfis falsos no Twitter. E mentiram – afirmaram que ela tomou quatro vacinas…“Eu sei quem eu sou. Por isso, não me preocupo com esses ataques. São pessoas que não me conhecem”, resigna-se. 

Saúde x Política?!

Mas, de verdade, para nós, não deve importar o caráter político que o tema vacina ganhou naquele 17 de janeiro de 2021, com a aparição de Mônica ao lado do governador de São Paulo.

Embora se considere uma pessoa politizada, partidos e o envolvimento em movimentos sociais não estão em seu radar.

Mas mulheres negras – apesar da fama de fortaleza e do sorriso quase sempre estampado no rosto – têm sentimentos. Nem tudo é alegria. Tem coisa que incomoda, machuca.

Ela recorda que horas após ter-se espalhado a notícia da aplicação da vacina, uma fake news dava conta de que sofrera uma reação adversa e estaria internada e entubada.

A informação falsa chegou aos ouvidos de sua mãe Denize, de 72 anos, que entrou em pânico e só se acalmou quando as duas conseguiram conversar pelo celular, dando à sua mãe a certeza de que estava tudo bem: “Minha mãe é meu porto seguro e ela ficou muito chateada com o que aconteceu”. 

Outra dor, aquela que sentem as vítimas de preconceito racial, Mônica diz que só conheceu recentemente, após receber a vacina. Mas evita entrar em detalhes sobre o conteúdo dos ataques. “Eu só digo para as pessoas que estou cuidando disso”.

Rotina desafiadora

Nossa pioneira – quando de sua vacinação -, dia sim, dia não, saía de sua casa e levava cerca de uma hora e meia no deslocamento até a Unidade de Terapia Intensiva – UTI do Instituto de Infectologia Emílio Ribas. 

Na linha de frente no combate ao vírus, no seu dia a dia, vivia a dor de perceber a solidão que toma conta dos pacientes,  que nem visitas podem receber: “Eu tento confortar ao máximo aquela pessoa e cuidar dela como gostaria de ser tratada”

Mônica Calazans em seu ambiente de trabalho (Imagem: Alô alô Bahia)

Apesar da onda de popularidade – inclusive quando está no transporte público e no  supermercado -, ela segue a sua rotina exaustiva e desafiadora.

São dois empregos – além dos plantões no Emílio Ribas, Mônica trabalha em uma unidade de pronto atendimento de Covid no bairro do São Mateus, na zona leste da cidade. 

Sua história

Mais velha de três irmãos, começou cedo a trabalhar para ajudar no sustento de todos. E sempre em hospital: primeiro, aos 19 anos, na área administrativa e, depois, direto no atendimento à saúde – auxiliar de enfermagem e, 26 anos depois, enfermeira.

A formação universitária só aconteceu aos 47 anos porque, quando mais jovem, estudar não era uma prioridade.

“Quando comecei no hospital aos 19 anos eu só queria sair, passear e ir aos bailes. Mas não me arrependo de ter-me formado depois dos 40 anos. Acho até que foi muito bom, pois eu estava bem mais madura”, conta.

Ela se formou na hoje extinta Universidade Bandeirantes. 

Viúva há cerca de cinco anos, ela mora com o filho Felipe, 30, que desde sua exposição pública a tem ajudado a lidar com as redes sociais e com a imprensa. “Meu filho é maravilhoso”.

Equilíbrio

O melhor desta história é que ela faz o que sempre quis: “Atuar com pacientes contaminados com o Covid 19 foi uma escolha. Eu realmente quis e trabalho tomando todos os cuidados necessários” – com a saúde física e com a sua saúde emocional.

Ela se inscreveu em maio de 2020, quando a pandemia atingiu um de seus picos, para vagas de Contrato por Tempo Determinado para atuar exatamente na UTI do Emílio Ribas, que hoje possui 60 leitos e, desde abril, mantém mais de 90% de taxa de ocupação no combate à Covid-19.

Mônica sabe que a falta de equilíbrio emocional pode afetar a qualidade de seu trabalho profissional. Por essa razão,  mesmo diante de tantas tragédias, escolhe se manter otimista, escolhe acreditar que nossa sociedade sairá vitoriosa e melhor:  “Acho que vamos valorizar mais os outros, as amizades, um simples abraço”. 

O caminho a se percorrer indica ser longo, repleto de percalços, mas, como diz ela,  “temos que continuar nos cuidando e cuidando dos outros”.

A onda negacionista em torno da vacinação – acredita a enfermeira –  não terá força para transformar em fracasso o esforço de imunização.

Mônica Calazans recebendo a 2ª dose da Coronavac (Foto: Divulgação)
Mônica Calazans recebendo a 2ª dose da Coronavac (Foto: Divulgação)

Mas, enquanto isso não acontece, registre-se a angústia com o deliberadamente  lento processo  de vacinação do povo brasileiro, por incompetência do atual Ministério da Saúde e do governo Federal.

Como acervo digital, registramos o momento histórico no ato de vacinação de Mônica Calazans, ao mesmo tempo em que as unidades de terapia intensiva dos hospitais públicos e privados, dia a dia, foram ficando com sua capacidade praticamente esgotada, a ponto de pessoas morrerem na porta e dentro dos hospitais por falta de oxigênio ou serem entubadas sem anestesia

Este texto está no ar desde 14 de junho de 2021, quando nos aproximamos dos 500 mil mortos, no que está sendo chamada de a terceira onda da pandemia. O Brasil, proporcionalmente ao número de habitantes, é o país com o maior número de contaminados e mortos do mundo.

A vacina é para todos. Vacinemo-nos. Nós por nós.

Nestes cinco meses, 26,32% da população tomou a primeira dose e 11,21%, a segunda dose, que garante a imunização.

Conheça também a história de Barbara Ross-Lee, primeira reitora negra de uma escola de medicina nos EUA.

Com a Redação

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