Sem Mordaça • Por Marcos Morcego
E dizem que somos perigosos
Eles que mataram, escravizaram, torturaram na cela
E confinaram na favela (milhões nossos)
Dеpois querem recontar a história
E me negar os fatos
Eu prefiro recontar os corpos
Pra gente medir o estrago
Se quiseram me negar os fatos
‘Magina’ se iriam dividir os pratos
‘Magina’ se iriam dividir a plata
(rapper Don L – música pela boca)
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O título do artigo “brinca” com o título de uma das obras cruciais do sociólogo e jornalista Clóvis Moura – Quilombos. Resistência ao escravismo. Apesar de os Quilombos serem a unidade fundamental de resistência, novos elementos, novas possibilidades de existir eram produzidas. Então, nós não refreamos os passos de Clóvis Moura, mas incorporamos novos, que ele mesmo apresentou.
Com a escravização formam-se duas classes, apontadas pelo autor como “a contradição fundamental”, formada entre os senhores de escravos, a classe dominante, e a classe dos escravos, os dominados.
A classe dominante, enquanto produzia seus meios de dominação, “cristalizou o racismo”, mas, ao mesmo tempo, foi confrontada pelas “várias formas de resistência”, utilizadas pelos dominados “a fim de se salvaguardar, social e biologicamente, do regime que os oprimia”.
As insurreições, as guerrilhas e os quilombos, como estratégias de resistência dos marginalizados, se mostraram bastante interessantes para o combate à sociedade que os colonizadores ambicionavam criar.
Estado paralelo
Os quilombos estavam na base da organização dos escravizados. Quando trazidos à força para o Brasil, os africanos – vindos de diversas partes do continente – se conectaram com as formas de luta já presentes na América do Sul, com as lutas dos povos originários, em sinal de protesto às condições desumanas e alienadas a que estavam submetidos.
O escravizado, no Brasil colonizado, assume esse lugar de complementaridade de conhecimento e atuação nos territórios onde se organizavam as resistências. Mas, como quilombola, tem uma dinâmica própria de conexão e enfrentamento, que se soma às dinâmicas locais.
A contradição
Haiti, Colômbia, Venezuela, Guiana Francesa, Panamá, entre outros países, também faziam contraponto ao sistema colonial, que oprimia os da terra. A diferença é que no Brasil havia uma economia que explorava o tráfico humano e a sua força de trabalho, força de trabalho que consolidava uma estrutura que fortaleceria o desenvolvimento capitalista.
Diante desse quadro contraditório, criado por quem estava no poder, aos dominados e seus descendentes, a única resposta possível era negar o próprio sistema. E foi este o papel que os Quilombos assumiram, de combater o sistema, que previa a existência permanente de dominados e dominadores, e criar algo novo, uma sociedade de iguais.
Entre as estratégias dos quilombolas, uma era fundamental: desgastar os que queriam dominá-los. Por isso, frequentemente, eles tomavam propriedades, fomentavam insurreições, abriam prisões e faziam acordos com marginais do sistema, não importando a cor da pele.
Em minas de ouro e pedras preciosas, por exemplo, o escravo mineiro “ligava-se com muita frequência ao faiscador e ao contrabandista de diamantes e ouro” – todos grupos combatidos pelo Estado – e, ali, firmavam-se alianças. Tais trocas não seriam possíveis, caso não possuíssem uma economia própria, uma vez que o Estado os queria de joelhos. Quer dizer, existia uma espécie de “estado paralelo”.
Outro exemplo é o desenvolvimento de uma indústria de guerra dos próprios quilombolas, com a produção de diversas ferramentas e objetos bélicos de autodefesa, para que pudessem resistir às investidas militares.
Em nome da liberdade
Em sua obra, o sociólogo Clóvis Moura observa a relação entre o Estado e a opressão escravista-colonial e percebe que, de um lado e de outro, existia a tentativa de encontrar uma solução que atendesse aos dominados e aos dominadores, mantendo os segundos subjugados, porém, satisfeitos.
Mas se o sistema buscava a desumanização dos povos oprimidos, aqueles que se rebelavam usavam a violência para se humanizar – como diagnostica o psiquiatra Frantz Fanon, no livro Os Condenados da Terra, “a descolonização é sempre um fenômeno violento”.
Ao meditar sobre os conflitos e opressões coloniais perpetrados no continente africano e continuados nas Américas, Fanon argumenta que o colonialismo, como estrutura político-social, é a violência em estado bruto, e só poderia ruir por ação de uma outra violência maior.
A diferença entre a violência do opressor e a violência do oprimido é a intencionalidade: o opressor quer manter a exploração e a subalternidade; o oprimido quer destruir tudo o que o oprime, humanizar-se.
Sociedade quilombola
Cada quilombo, cada grupo de resistência, tinha sua particularidade. Estavam organizados em modelos econômicos extrativistas, mercantis, mineradores, pastoris, de serviços e predatórios, mas tinham um único objetivo: fugir do sistema escravista.
Em comum nos variados modelos, ainda, a atividade agrícola na base e o confronto com o regime colonial. Enquanto se organizavam as monoculturas nos latifúndios, por exemplo, os quilombolas criavam o oposto, dinamizando uma agricultura policultural, comunitária, que buscava a autonomia alimentar e hídrica, mas também produzia excedentes para a comercialização.
Para se fazer política, também, havia arranjos variados. Os grupos eram formados por africanos e descendentes, originários de várias regiões, culturas, tradições e sociedades.
Uma história de resistência
A forma mais debatida de prática política, entretanto, é a da República de Palmares, que é obrigada a manter um contingente de defesa militar permanente, a fim de preservar sua integridade territorial.
A República de Palmares é a referência principal para boa parte da estruturação acerca do Quilombo enquanto tecido social que contrariava o sistema. Ela aparece como a maior manifestação de rebeldia contra o escravismo na América Latina nas obras de Clóvis Moura, mas também de Edison Carneiro, Lélia Gonzalez, Décio Freitas, Yeda Pessoa de Castro, entre outros estudiosos.
Palmares compõe uma historiografia que centra o motor da história na luta de classes e dimensiona a importância sociológica e política da revolta humana.
O escritor e etnólogo Édison Carneiro conta que a região do Quilombo de Palmares, na Serra da Barriga (hoje, estado de Alagoas), era constituída por montanhas e rios, um território físico fundamental para a autodefesa, para a produção de alimentos e para a garantia de autonomia de todos os seus habitantes.
Lá, se reuniam africanos, principalmente de origem bantu, originários da África Meridional, bem como indígenas, “fugitivos da Justiça”, pessoas de etnias variadas que se sentiam oprimidas pelo sistema… Muitos dos palmarinos, se aproveitaram da disputa entre Holanda e Portugal, para a colonização de terras naquela região, entre 1645 e 1654, para promover fugas em massa.
Vida no quilombo
Além da plantação de subsistência e sobrevivência em tempos de guerra ou de festas, a propriedade coletiva representava a união de tradições africanas e dos povos originários, onde era possível ainda a caça e a pesca.
Na região de Palmares, havia onças, anta, raposa, veados, pacas, cutias, coelhos, preás, tatus, além de frutas, vegetais medicinais, óleo de palmeira, jenipapo e outras plantas nativas, que serviam para alimentação.
Palmares era a negação do sistema. Palmares era a construção do novo, muito antes de o capitalismo atingir novos desenvolvimentos. E, por isso, ao longo de mais de 100 anos tentaram destruí-lo, como verdade e possibilidade.
A força do medo
A internacionalização das lutas sempre gerou um grande choque na classe dominante. Durante certo período houve um medo da revolução haitiana se espalhar pela América Latina, posteriormente houve o medo de uma aliança entre comunistas e os povos que lutavam para se libertar. O que faz com que esses grupos tremam é o que demonstra uma nova possibilidade de superação real.
Havia um horizonte estratégico, que refletia não só a união entre os povos, mas o estabelecimento de múltiplas formas de se viver, extrapolando a dominação do Estado, as definições territoriais e a economia política – antes latifundiária-escravista e hoje capitalista.
Por mais difícil que fosse, a possibilidade estava posta desde o primeiro movimento de resistência, que embute uma tarefa urgente por não apenas sobreviver, mas também resgatar a memória e reconstruir a história.
Se hoje relembramos Palmares e resgatamos a obra de Clóvis Moura é porque acreditamos ser uma nova chance de produzir o novo, não copiando e colando, mas aprendendo com as experiências.
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Hoje eles que morrem pela boca
Que se foda seus dólares na bolsa
Suas empresas agora são do povo
Suas terras são floresta de novo
Suas mansões, escolas, seus soldados mortos pelos nossos
Quero ver cê falar com o gogó na forca agora
(rapper Don L – música pela boca)
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Saiba mais sobre os mais de 100 anos de luta negra, política, existencial por liberdade, uma pequena África, autônoma, na América, no artigo Quilombo dos Palmares.
Fontes: Quilombos: resistência ao escravismo, de Clóvis Moura, São Paulo: Expresso Popular, 2020; Os condenados da Terra, de Frantz Omar Fanon. Feira de Santana, Bahia: Editorial Adandé, 2022
Escrito em 23 de outubro de 2024
Marcos Morcego é estudante de ciências sociais e pesquisador de Identidade, Território e Organização Política pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH – USP), autor do livro Por uma Implosão da Sociologia, editor e articulista na revista Clio Operária e podcaster no projeto Caverna do Morcego, que discute Sociologia, Marxismo, teoria política e revoltas latino-americanas e do Sul Global.