Ou o estilo impecável, de alfaitaria, no vestir-se do homem negro para ressignificar o próprio existir, do jeitinho que os brancos fazem ou faziam! Moda preta masculina.
O que este artigo responde:
O que é o Dandismo negro? Como os homens negros conseguiam se vestir de modo impecável? Qual é a origem do Dandismo Negro? Como surgiram os dândis negros? Como surgiu o Blackface? Como eram as leis na época do Dandismo? Dandismo é movimento negro? Quanto tempo durou o Dandismo negro? Como a sociedade branca reagiu ao Dandismo Negro? Quem são os dândis negros?
Maio de 2025. O Metropolitan Museum of Art de novas Iorque enegrece e todos os holofotes iluminam o vestir do homem negro, em um dos eventos de moda mais importantes do mundo. É o Met Gala, com o tema “Superfino: Estilo Negro de Alfaiataria”, inspirado no livro Slaves to Fashion: Black Dandyism and the Styling of Black Diasporic Identity – Escravos da Moda: Dandismo Negro e o estilo da identidade negra diaspórica.
A obra de Monica L. Miller, professora e presidente de Estudos Africanos no Barnard College, da Universidade de Columbia, trata da associação entre o estilo adotado por homens negros a partir do século XVIII e o dandismo, um movimento de contracultura na moda masculina do período.
É a história da moda negra na Inglaterra e nos Estados Unidos e como os escravizados se apropriaram de elementos utilizados pelos brancos para impor sua identidade como indivíduos, como grupo e como voz unificada na grande diáspora.
E este artigo é sobre como a moda e a alfaiataria têm sido ferramentas poderosas na construção e expressão da identidade negra, ao mesmo tempo que contribuem para o racista e discriminatório mundo da moda ao longo dos anos.
Qual a diferença entre moda e alfaitaria?
Alfaiataria pode ser entendida como uma arte que remonta a séculos de tradição e habilidade. Consiste em criar peças de vestuário sob medida, de acordo com as necessidades e preferências de cada cliente. Ao contrário das roupas produzidas em massa, as roupas de alfaiataria oferecem um ajuste personalizado e com qualidade excepcional.
A estratégia
Alfaiataria tem a ver com o conceito de dândi negro, que surge entre ex-escravizados, que decidem usar a moda e a alta costura para afirmar suas identidades, como forma de resistência e afirmação social.
O dandismo negro é um movimento cultural e estético, no qual homens negros adotam uma postura de elegância refinada e comportamentos aristocráticos.
Ao longo da história, inclusive, a figura do dândi negro emerge como um modelo libertário para a diáspora africana, o que leva a branquitude a reagir, criando o Blackface – prática em que homens brancos pintam seus rostos de preto para “interpretar” dândis negros em espetáculos teatrais populares.
Dândi negro
O conceito de “dândi negro” é criado por Zora Neale Hurston no ensaio The Characteristics of Negro Expression (As Características da Expressão Negra), de 1934, e se refere a homens negros que, assim como os dândis brancos europeus, adotaram um estilo de vida marcado pela elegância, sofisticação e uma estética altamente refinada.
É fato que o dândi branco – confortável em sua posição de poder e riqueza – representava um certo desapego a limites de gênero e sexualidade ou um “apego à vaidade” considerado feminino demais para a época. Havia rumores de homossexualidade entre os dândis brancos, aliado a um estilo de vida boêmio que, de algum modo, ameaçava o status quo de seus adeptos.
Com os dândis negros, o olhar era outro: eles desafiavam idéias de masculinidade e feminilidade, agressividade, sexualidade e raça. Colocavam em xeque todo e qualquer estereótipo. Confrontavam as normas sociais que os restringiam, bem como as expectativas raciais da época, em dissonância com o passado de escravização.
Vestir-se com elegância e refinamento era uma forma de protesto silencioso contra o racismo, um significado de resistência e de afirmação de identidade, um modo de afirmar a própria humanidade e dignidade.
A moda e a luta
Em 2020, principalmente após a morte de George Floyd, as revistas americanas tiveram mais negros em capas de revista, de forma positiva, do que nos 90 anos anteriores – um total de 126 capas! A informação é do Centro de Inovação de Revistas da Universidade do Mississippi, nos Estados Unidos.
Nós, no primeirosnegros.com, registramos alguns desses pioneirismos, o que só confirma a resistência ao nosso existir além da senzala. Estamos no século XXI! E modelos seguem denunciando o racismo e os detentores do poder no setor resistindo em aceitar a nossa existência, de um lado, e se apropriando de nossas ideias, cultura e modos de ser, do outro.
A revista Vogue, alemã, por exemplo, na sua edição de novembro de 2019, especial sobre a beleza negra, colocou uma modelo branca na capa!!! E na reportagem Black is back (De volta ao preto) troca o nome de uma das modelos negras: uma foto de @naomichinwing é usada no lugar de @iam_janaye.
Na origem
O fato é que atrelar significados a roupas, cores e acessórios, criar uma expressão individual, afastar-se de padrões, enfeitar-se, nunca foi coisa de europeu. É deles, sim, a ideia de vergonha do corpo, de pecado, de “cair em tentação”, de marginalidade, do cobrir-se.
Invenções como os cosméticos, cremes de cabelo, calçar-se… são genuinamente negras. Na nossa história, de sociedade colonizada e escravagista, o vestir-se negro, para além da roupa, é – desde sempre – meio de estabelecer individualidade, poder e laços entre os sequestrados e escravizados.
Vestir-se – embora apropriado e sistematizado como mercado pelos brancos -, ultrapassa barreiras financeiras e culturais e serve, também, como resistência ao próprio sistema que criou a moda. Roupa pode oprimir, reprimir, violentar, mas também libertar, fortalecer, informar.
Dois tempos
O livro Escravos da Moda: Dandismo Negro e o Estilo da Identidade Negra Diaspórica registra a relação do negro com a moda em dois momentos muito importantes da nossa jornada forçada para as Américas e Europa: na escravização e no pós escravização.
Ao atravessar o Atlântico, as pessoas africanas são esvaziadas de referências, de humanidade; espiritualizadas no nada e uniformizadas com roupas destituídas de significados. Assim, se apegam a acessórios e resquícios de suas terras, como colares e pulseiras de contas e miçangas, que seguem usando por cima das roupas ocidentais que foram obrigadas a vestir.
Acessórios, para pessoas de quem tudo foi roubado, são como uma prova física de autonomia cultural e poder de escolha. Colecionar, manter e usar acessórios não convencionais à sociedade ocidental eram, ao mesmo tempo, um resgate da memória de suas terras, um desafio à autoridade branca, uma afirmação de individualidade e um tipo de subversão.
O outro momento – que serve como marcador no livro – é quando o escravizado incorpora símbolos da moda masculina europeia para desmontar estereótipos sobre si mesmo – reproduzindo o mesmo comando estético, as mesmas referências, a mesma elegância e o mesmo refinamento de um homem branco.
Tiro no pé
A inspiração para tal movimento começa a partir de uma imposição dos senhores de escravizados, que os tratavam como objetos, sinônimos de suas riquezas: um escravizado doméstico, bem vestido e educado, era como uma joia no dedo de “seu senhor”, uma casa ricamente decorada, um conjunto de pratos e louças valiosas…
Tudo começa na Europa. Desde o início dos séculos XV e XVI, durante a exploração africana pelos europeus, crianças pequenas da África – principalmente meninos – eram carregadas pelas elites para serem “adestradas” e se tornarem um “tipo especial” de escravizados.
Educados com padrões diferenciados, formados para serem acompanhantes, serviam seus senhores com modos e posturas europeizadas, vestidos com trajes sofisticados da moda europeia clássica.
Nesse tempo, nas Américas, eram poucos os chamados “escravos de luxo” a quem era concedido, inclusive, o direito de participar de eventos como o carnaval ou festividades africanas “fantasiados de senhores”.
Só mais tarde, no século XVIII, nasce o dândi negro, “autônomo”, fruto da vaidade de seus próprios senhores que, sem querer, ofereceram aos escravizados ferramentas de empoderamento através da moda. Mas a escravização era um dado da realidade, ainda.
Códigos negros
Os que fugiam do cativeiro, muitas vezes eram descritos como “levando uma mala de roupas, contendo casacos, botas, camisas e coletes”… Isso em uma época na qual a roupa tinha muito valor. Sem falar das botas de couro, resistentes, confortáveis e importantes para longas caminhadas.
Os casacos ostentavam botões de metal, madeira, pedra ou madrepérola Eram feitos de lã, linho, com forro e camadas internas para garantir aquecimento. Um guarda-roupa que permitiria a qualquer um viver uma vida como homem livre.
Não por acaso, em 1865, no Mississipi – grande centro agrário caracterizado pela exploração de escravizados –, se estabelece os chamados Códigos Negros, que impõem diversas sanções judiciais a “escravos de luxo”, em casos de fuga ou transgressão, como penas de prisão e constrangimento.
Em algumas regiões dos Estados Unidos, a lei determinava, em detalhes, que tipo de roupas os escravizados podiam usar, proibindo-os de estar com qualquer tipo de vestimenta que demonstrasse posição social superior. Sobre os tecidos, só os mais baratos e nas cores bege, cinza ou amarelado.
Blackface show!
A figura do dândi negro constrói-se como modelo libertário após vigorarem as leis de abolição na Europa (entre 1761 e 1848) e nos Estados Unidos, em 1865, mas a figura do homem negro elegante passa a ser ridicularizada em pastelões promovidos no final do século XIX pelos espetáculos teatrais blackface.
Tais espetáculos eram uma reação para deslegitimar qualquer subjetivação positiva da imagem do novo homem negro livre, criando uma diferenciação acintosa entre ele e os homens brancos tidos como padrões “verdadeiros” de elegância.
O show de menestrel blackface era um teatro grotesco, em que homens brancos de baixas classes sociais, indignados por sua inferioridade mesmo não sendo negros, satirizavam os dândis negros, ridicularizando-os, deesumanizando-os.
Pintando-se de preto, esses atores imitavam, de forma depreciativa, os “escravos de luxo”, ostentando ricas vestes em performances que caracterizavam homens negros como preguiçosos, ignorantes, místicos, sexualmente promíscuos e propensos a golpes financeiros.
O ator Thomas Dartmouth Rice celebrizou-se como o “Pai dos Menestreis”, criando seu personagem “Jim Crow” em 1830. Tal personagem deu nome às leis de segregação racial adotadas pelos estados americanos em 1965 – as Jim Crow Laws, que se tornaram tema de um dos quadros do pintor afro-americano Jean-Michel Basquiat na década de 1980
Do lado do povo negro, quanto mais se familiariza com os signos de vestimenta do homem branco, mais consegue utilizá-los em beneficio próprio, transformando-os em símbolos de sua própria individualidade e liberdade.
A semente e o fruto
A pesquisadora Helen Bradley Foster relata que esses “negros dandificados”, com consciência da posição conquistada, como os primeiros membros da comunidade negra britânica livre, construíram uma cultura literária e visual, sobretudo após a definitiva abolição da escravatura.
Eles fizeram circular suas imagens por meio de pinturas, gravuras e caricaturas que alternavam momentos em que se auto-exaltavam e momentos em que criticavam brancos ricos que tentavam domesticar os negros por meio de um vestuário elaborado. E este foi só um dos movimentos.
Leia Moda e Poder e viaje na Linha do tempo: O dandismo negro atravessa os séculos!
O Met Gala 2025 reverencia os que vieram antes com a primeira exposição do Costume Institute que tem a figura masculina como ponto de partida. Isso, desde 2003, quando o tema foi “Men in Skirts” (em livre tradução, homens de saia).
Em cena, no baile beneficente que abre o evento, como co-anfitriões, o automobilista Lewis Hamilton, o cantor Pharrell Williams, o ator Colman Domingo, o rapper A$AP Rocky e o jogador de basquete LeBron James, o primeiro negro, e terceiro homem na história, a ser capa da revista Vogue.
Quanto a Lewis Hamilton, vale destacar que além de embaixador global da Dior, ele é reconhecido por suas homenagens a pessoas negras no Met Gala. Em 2021, por exemplo, ele comprou uma mesa para designers e estilistas negros participárem do baile. Em 2024, que teve como tema Jardim do Tempo, o piloto homenageou um dos primeiros jardineiros negros com um look temático.
“Para os negros em toda a diáspora, moda é autopreservação, moda é resiliência, e mal posso esperar para explorar e amplificar as nossas vozes sub-representadas.”
– Lewis Hamilton
• • • • •
Fontes: GV Cult – Origens; GV Cult – Harlem, Mundo de Amanhã, FFW, Steel the Look, Eolor, Medium, Vestoj, Dapper Dan, Terra, GE – Globo
Escrito em 13 de janeiro de 2025