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A felicidade guerreira das rebeliões negras

- Tania Regina Pinto

O movimento abolicionista começa na senzala. Existe desde sempre, se perde no recuo do tempo. Nunca, nem no passado nem no presente, tivemos algo dado, concedido, doado, consentido. Tudo que temos é conquista!

A ideia do Abolicionismo, como movimento, acontece no final do século XVIII, com a proibição do tráfico na Inglaterra, época em que a mesma Inglaterra era o maior país traficante do mundo.  O governo imperial no Brasil não queria abolição alguma.

Isabel, a princesa portuguesa, roubou a nossa história, o nosso protagonismo. Engana-se quem acredita que os africanos e crioulos, a primeira leva de negros nascidos no Brasil, aceitaram passivamente a escravidão.

E, pouco a pouco, tudo que está escondido começa a ser revelado.

Historiadores registram inúmeras formas de resistência  desenvolvidas, ao longo dos séculos XVI a XIX, desde o embarque nos navios negreiros. 

O risco de revoltas dos africanos em alto mar era tão alto que os traficantes racionavam, deliberadamente, as porções de comida para reduzir as possibilidades de motim. E, na tripulação, havia sempre alguém que falava os idiomas dos sequestrados e que poderia alertar sobre qualquer movimentação diferente.

NÃO à escravidão!

“Pai João” não nos representa. “Pai João” é fake news. “Pai João” não é modelo de quem viveu a escravização. Se assim não fosse, não seria preciso pelourinho, chibata, correntes, espingardas, tortura e castigos… Nunca fomos cordatos  – na cozinha, a nossa possibilidade de reparar a fome e uma das armas mais poderosas e silenciosas contra os senhores e feitores, o envenenamento.

O fazendeiro português José Trancoso, aliás, só para dar um exemplo, morreu exatamente assim porque arrematou no Porto da Aldeia de São Matheus, na Capitania do Espírito Santo, a princesa Zacimba Gaba, da nação de Cabinda, na costa oeste da África, em Angola.

Grilhões
Arte: Candido Vinícius sobre foto de Reprodução/Dia Online

Durante anos, Zacimba foi cruelmente castigada por não ceder aos desejos do fazendeiro, até que ele quis saber se era verdade o boato de que ela era uma princesa.

Confirmado o fato, depois de dias e muitas chibatadas, ela foi estuprada e transformada em “garantia de vida” do fazendeiro, que tinha a maioria de seus escravizados vindos de Angola. Ele avisava:  se algo acontecesse a ele ou à sua família, Zacimba seria morta.

Aprisionada na Casa Grande, violentada pelo fazendeiro e pelo capataz, dia a dia, Zacimba crescia e tomava coragem. Proibiu os negros de tentarem libertá-la e passou anos elaborando um plano de fuga e de vingança, até que um dia aconteceu.

O senhor da fazenda caiu envenenado.

A princesa deu a ordem para invadirem a fazenda. Todos os torturadores foram mortos. A família do senhor da fazenda foi poupada. Ela criou seu próprio quilombo e passou a sua vida libertando escravizados, atacando navios negreiros e assim morreu, na luta.

Registre-se que, na época, até pegarem confiança em quem preparava a comida, os senhores obrigavam os escravizados a experimentarem tudo primeiro. Por isso Zacimba levou anos para concluir o seu plano.

Um dos venenos mais utilizados pelos escravos era extraído da cabeça da cobra Preguiçosa, temida pelo seu veneno mortal, muito usado por matar com pequenas doses e não logo que ingerido.

Nossas armas

A escravização no Brasil é também uma história de fugas, individuais e coletivas;  de revoltas violentas e não-violentas, de subversão da ordem, de recusa em trabalhar, de criação de mocambos (esconderijos) e quilombos (acampamentos militarizados)…  O Quilombo dos Palmares é um dos grandes símbolos da resistência negra.
Na luta, transformamos nossos pés, mãos e mentes em armas. Escancaramos nosso desejo de liberdade no sorriso – para espantar, debochar da dor -, na dança, na música, no canto de trabalho

Mas, em tudo, estavam embutidas estratégias: – nas tranças, rotas de fugas de escravizados que buscavam a liberdade; nas comidas do santo, oferendas nas encruzilhadas, a alimentação necessária aos nossos em fuga; nas mãos postas em direção ao céu, a possibilidade de manter a própria religiosidade…

A capoeira – que treinávamos, fingindo dançar, camuflados nas saias rodadas das negras – até hoje nos protege das investidas sórdidas dos que nos querem humilhados. Vale conhecer a história de Madame Satã, nascido em 1900, que viveu mais de 70 anos porque era bom na armada, na cabeçada, na ginga, na meia lua…

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A resistência incluía, ainda, suicídios, abortos (para impedir que os filhos fossem escravizados) e a simples desobediência, como recusar-se a cumprir ordens do feitor –  mesmo sendo punidos com castigos físicos – ou rebelar-se por ter que trabalhar no domingo, dia do descanso.

Assim lutaram os que vieram antes. Assim lutam os que vivem agora. Assim lutarão os que virão depois. Temos consciência das muitas revoluções a fazer, das rebeliões – silenciosas ou não – que se impõem em nome da liberdade, hoje contida por grades, balas, joelhos, miséria, deseducação…

Entre a senzala e a casa grande

Mesmo no espaço entre a senzala e a casa grande, muitos dos nossos pegaram em armas, como na Revolta das Carrancas, em 1833, nas fazendas Campo Alegre e Bella Cruz, na Freguesia de Carrancas, em Minas Gerais. A rebelião, liderada por Ventura Mina, atacou a casa grande e as famílias escravistas das duas fazendas.

Outra revolta – que estava se organizando e acabou descoberta e duramente reprimida – aconteceu em Campinas, interior de São Paulo, um ano antes, em 1832 – os escravizados planejavam matar os senhores de 15 grandes propriedades da região e reconquistar a  liberdade.

O grande palco

A região onde ocorreu o maior número de revoltas, entretanto, foi a Bahia – 30 ao todo, só na primeira metade do século XIX. E a lógica para compreender este fato é simples: quanto mais escravizados africanos presentes em uma região, maiores as chances de rebeliões.

De acordo com os historiadores, estes escravizados eram mais combativos porque pertenciam a um povo que tinha um grande  histórico de envolvimento com guerras.

A Revolta de 1807, pela intenção – ela foi sufocada antes de se iniciar -, é um exemplo da garra pela retomada de poder dos africanos que chegaram ao Brasil via tráfico negreiro. O plano era atacar igrejas católicas, queimar imagens e promover a ascensão de um líder muçulmano ao poder em Salvador e, depois, expandi-lo para parte do nordeste brasileiro.

Também na Bahia, em 1814, os revoltosos reunidos em um quilombo destruíram tudo o que encontraram pelo caminho – acabaram reprimidos e, alguns, foram executados.

Revolta dos Malês

Na madrugada de  25 de janeiro de 1835 – no final do Ramadã, mês sagrado para os muçulmanos, dia de Lailat al-Qadr, a festa da Noite da Glória, momento em que o Corão foi revelado a Maomé, o profeta do Islamismo -, na mesma Bahia, acontece  a maior revolta de pessoas escravizadas da história do Brasil, a Revolta dos Malês.

Com a adesão de uma maioria muçulmana de escravizados urbanos, cerca de 600 pessoas mobilizadas marcharam pelas ruas da cidade de Salvador convocando outros escravizados a se rebelarem. Naquela época, a capital possuía apenas 22% de sua população formada por brancos livres.

Revolta dos Malês
Revolta dos Malês (Ilustração: Reprodução/Causa Operária)

A palavra Malês, que dá nome à revolta, é oriunda de imalê, quer dizer, muçulmano, em iorubá. E, para o confronto, eles se vestiram com um abadá branco, traje típico dos muçulmanos e amuletos com passagens do Corão escritas em árabe. Isso porque acreditavam que os amuletos protegiam seus corpos.

A escritora Ana Maria Gonçalves, no prefácio de seu livro Por Um Defeito de Cor, escreve: “Não sei de luta mais bela do que esta do povo malê nem de revolta reprimida com tamanha violência.

“A nação malê não era apenas a mais culta entre quantas forneceram mercadoria humana para o tráfico repugnante – escreve nas páginas 10 e 11. Em verdade, os escravos provindos dessa nação alcançavam os preços mais altos, sendo não só os mais caros, também os mais disputados. Serviam de professores para os filhos dos colonos, estabeleciam as contas dos senhores, escreviam as cartas das iaiás, intelectualmente estavam bem acima da parca instrução dos lusos condes e barões assinalados e analfabetos ou da malta de bandidos degradados à longínqua colônia.”

E prossegue em outro parágrafo: Levantaram-se os escravos, dominaram e ocuparam a cidade. Logo derrotados pelo número de soldados e pela força das armas, a ordem dos senhores furiosos foi matar todos os membros da nação malê, sem deixar nenhum. Homens, mulheres e crianças, para exemplo. Ordens executadas com requintes terríveis, para que o exemplo perdurasse. Assim aconteceu (…)”

De volta à África

A Revolta dos Malês fracassou (?!). Tudo é questão de ponto de vista. Os punidos, que restaram vivos, foram presos, açoitados e condenados à morte – quatro executados por fuzilamento. A repressão sobre a população de escravos e libertos em Salvador aumentou. 

Uma lei, aprovada naquele 1835, determinou que todos os africanos e descendentes suspeitos de envolverem-se com revoltas escravas seriam exilados.

E dados estatísticos apontam que aconteceu a deportação de milhares deles ao continente africano.

A possibilidade de novas revoltas atemorizou os senhores devido, principalmente, ao ocorrido na Ilha de São Domingos, colônia francesa que se tornou a primeira república governada por pessoas de ascendência africana.

Medo do exemplo

Lá, negros libertos e escravizados, motivados pela grande exploração e violência do sistema colonial escravista na região, se rebelaram e criaram o Haiti, a primeira nação negra pós-colonial independente.

Na época, São Domingos era colonizada pelos franceses e reconhecida como uma das colônias mais prósperas do mundo, a  “pérola das Antilhas”.

Mas o ouro era a mão-de-obra negra que produzia, na base da chibata, 45% do açúcar consumido no planeta.

A população de escravizados, a maioria nascida na África, girava em torno de 450 mil seres humanos.

Liberdade no balanço do mar

O mesmo Atlântico rota do tráfico serviu de palco na luta pelo direito de existir, que o digam o “Dragão do Mar” e o “Almirante Negro”.

Francisco José do Nascimento (1839-1914), cearense, filho de pescadores, marinheiro e ativista político, conhecido como “Dragão do Mar”, liderou jangadeiros e paralisou o comércio de escravizados para o sul do país, em 1881.

Todos se negaram a transportar pessoas negras para viver em correntes e, passados três anos, em 1884,  o Ceará torna-se a primeira província do Brasil a abolir a escravidão.

Mas mesmo extinto oficialmente o sistema escravocrata, o modus operandi com o povo negro permaneceu igual no pós-1888.

Ele esteve à frente de um motim naval no Rio de Janeiro, que durou exatos quatro dias, de 22 a 26 de novembro de 1910, que aparece nos livros de história como a Revolta da Chibata – a rebelião foi um basta ao açoite por oficiais navais brancos ao punir marinheiros negros.  

Terminado o motim,  18 dos revoltosos foram enviados para a uma minúscula solitária. Passaram três dias e três noites amontoados, sem comer nem beber. Apenas dois, dos 18, sobreviveram – João Cândido e João Avelino Lira.

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No ano seguinte, 1911, o Almirante Negro foi enviado para o Hospital Nacional dos Alienados. Lá, foi avaliado por outra figura marcante da nossa história preta brasileira, o psiquiatra Juliano Moreira que, o devolveu à prisão – João Candido não era “louco”, como havia sido diagnosticado.

De volta para atrás das grades, viu chegar o ano de 1912. E  depois de interrogado, julgado e absolvido, pelo Conselho de Guerra, foi expulso da Marinha.

Fugas, mocambos e quilombos

As fugas individuais, estratégia de resistência muito comum nas décadas de 1870 e 1880 – por conta do fortalecimento do movimento abolicionista – representavam uma possibilidade de se sentir livre, mesmo sem carta de alforria.

Havia motivação, incentivo de militantes da causa, que ofereciam suporte para a vida nos grandes centros, onde era possível se passar por liberto. 

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Outros buscavam os quilombos – estrutura que surgiu no Brasil, em meados do século XVI, e se popularizou depois do Quilombo dos Palmares, embora o primeiro mocambo que se notícia, de acordo com o historiador Flávio dos Santos Gomes, tenha surgido em 1575 na Bahia.

A diferença é que os quilombos mantinham relações comerciais importantes entre eles e também com pessoas livres. 

A sobrevivência se dava pelo cultivo, do que era retirado das matas, de assaltos contra a população livre em estradas e de ataques a engenhos.

Instalados em locais isolados e de difícil acesso, eram formados por uma maioria de escravizados fugidos de uma mesma região ou de um mesmo senhor.

Dias atuais

Não se sabe ao certo quantos quilombolas existiram e existem no Brasil. Segundo um levantamento da Fundação Cultural Palmares são 3.524 grupos remanescentes, vivos e atuantes, lutando pelo direito de propriedade de suas terras consagrado pela Constituição Federal de 1988. 

E seguimos, como população preta, como população negra, criando estratégias para re-conquistar, conquistar de novo mesmo, a liberdade, usando nossa felicidade guerreira  como arma, como diz a música de Gilberto Gil.

Para encerrar, lembro algumas palavras de Conceição Evaristo, no livro “Becos da Memória”, página 111:

“Todos aqueles que morreram sem se realizar, todos os negros escravizados de ontem, os supostamente livres de hoje, se libertam na vida de cada um de nós, que consegue viver, que consegue se realizar.”

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Tania Regina Perfil PB

 Escrever, para mim, é um ato político. Não por acaso, desde os 11 anos, queria ser Jornalista. Depois de muitos anos somei ao jornalismo a Educomunicação, com especialização em Gênero e Sexualidade. Idealizadora do primeirosnegros.com, cresço, dia a dia, gestando edições, artigos, pensares. Em essência, sou alguém que busca conexões espirituais, vivências…Leitora voraz, amante da escrita própria e da escrita alheia, louca por palavras e seus significados mais profundos. Assim estou na vida, gota, escorrendo livre pelos caminhos.

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