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Mama África, cidadania ancestral

Arte urbana sobre a conexão brasil - gana
Arte urbana sobre a conexão Gana-Brasil (Imagem: reprodução)

O caminho de volta literal do povo negro que vive nos quatro cantos do mundo é um sonho de vida inteira – para a maioria, um devaneio. Mas não são poucas as correntes de repatriação dos últimos séculos.

O que o artigo “Mama África, cidadania ancestral responde:
Libertos voltaram para a África?
Quais foram os escravos expulsos do Brasil?
O que é o movimento Blaxit?
O que aconteceu na Revolta dos Malês, na Bahia?
Como foi criada a Libéria?
Como é viver na África?
O que é pan-africanismo?
Os rastafari foram viver na África?

  • Por Tania Regina Pinto

A volta à África faz parte do imaginário do povo negro desde sempre. Os primeiros conseguiram retornar no século XIX. E, de tempos em tempos, acontecem movimentos de repatriação ancestral nas Américas. 

Se pensarmos bem, nada mais natural. Pois uma coisa é escolhermos nosso caminho. Outra, bem diferente, é termos roubado o nosso destino. Talvez por isso, aconteçam esses movimentos de buscar o próprio lugar no berço da humanidade. 

Quando uso o presente do indicativo, a primeira pessoa do plural, para falar do cruel processo de escravização ao qual o povo africano foi submetido, é porque toda a ancestralidade vive em nós. O conceber africano da vida implica coexistência, cosmo percepção, futuro ancestral… A hora é do Ocidente, o tempo é africano, está em nós. Somos corpo e alma em diálogo permanente. 

Não pensamos em dupla cidadania – como os brasileiros que celebram sua ascendência européia em busca de “vida boa” – será mesmo? – na terra dos colonizadores. Nossa ideia é a cidadania ancestral, passível de ser materializada.

Jornada de retorno

Rio de Janeiro, 11 de maio de 1836 – Em uma barca de nome Maria Adelaide, 234 pretos e pretas libertos – o que, no vocabulário da época, significava ‘pessoas africanas’ – rumam em direção à Costa da Mina, litoral ocidental da África. Uma parte do grupo viaja sem acompanhante; outra parte, com a família.

livro da polícia’ da Corte sobre saídas de navios e a relação de passageiros. (Imagem: Reprodução)
livro da polícia’ da Corte sobre saídas de navios e a relação de passageiros. (Imagem: Reprodução)

É o que consta no ‘livro da polícia’ da Corte sobre saídas de navios e a relação de passageiros. Além da referência ao número total de libertos, registra-se o nome do mestre da embarcação e de outro passageiro, um português, que viajava com seu filho menor de idade. A lista de nomes dos homens e mulheres que voltavam para o seu continente de origem consta de uma folha azul solta, à parte

“Encontrar esse documento em uma tarde dedicada à pesquisa no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, em busca de informações sobre a movimentação de mercadorias do Brasil para a África durante o século XIX, foi um daqueles momentos da vida de uma historiadora em que o acaso oferece um presente”, escreve a pesquisadora Isabel Barca.

Movimentos migratórios

A pesquisa iniciada com a descoberta da lista de libertos da Maria Adelaide trouxe alguns outros aspectos sobre esses retornos. Um deles é a existência de fases distintas nos movimentos migratórios, do século XVIII até a década de 1820, mais ou menos.

No início, o retorno, por meio do tráfico atlântico de africanos escravizados, se caracteriza por viagens de pequenos grupos de pessoas sozinhas. Considera-se que os primeiros brasileiros a chegar à área da Costa Ocidental da África desembarcaram antes da década de 1830 e eram traficantes de escravizados ou pessoas próximas.

Aproximadamente 20 pessoas, a foto é visivelmente antiga.
Grupo de brasileiros de descendência africana no convés de um navio a caminho da África Ocidental (Imagem: Coleção da Biblioteca Nacional)

Quem retornava eram os libertos com condições financeiras melhores, seja porque conseguiram reunir dinheiro por meio do trabalho ou porque a família ou conhecidos bancavam a viagem. 

Efeito rebeliões

A partir de 1830, muitos retornos passam a ter relação com as rebeliões e insurgências que aconteciam no Brasil. São grupos maiores que decidem regressar após o endurecimento das formas de controle sobre seus corpos e às punições frente a qualquer sinal de insurgência, incluindo a pena capital, em lei de 1835.

Considerados potencialmente perigosos por sua liberdade de movimentação, os libertos não tinham os direitos de todo cidadão livre no Brasil e eram obrigados a provar, o tempo todo, sua condição, apresentando a carta de alforria. 

A história desses retornos e das pessoas neles envolvidas está documentada em diversas fontes de época, tais como livros com controle de movimentação portuária, registros de passaporte, notícias de jornal, relatos de viagem, cartas de autoridades e de pessoas comuns, além de contratos entre grupos de retornados e capitães de navio.

Salvador-Rio-África

O Rio de Janeiro foi um importante porto no caminho de volta à África. Mas é no porto de Salvador, na Bahia, que acontece o embarque da maioria. Quanto aos destinos, incluíam a costa ocidental africana e o litoral da região Congo-Angola.

Foto tirada de alguma das janelas do entorno do porto
Atracação do Canavieiras, no Porto de Salvador (Imagem: Prefeitura de Salvador)

Em 1840, o brigue Feliz Animoso parte da cidade do Rio de Janeiro levando 30 pretos minas libertos, passando pela Costa da Mina (África Ocidental) e Benguela. E, em 1851, outro brigue, de nome Robert, leva 63 pessoas africanas libertas, em uma viagem que, antes, passa por Salvador para recolher passageiros. 

Contratos de viagem

Nos contratos, assinados entre os grupos mais numerosos de retornados e os capitães de navio,na época das rebeliões, registram-se as condições da viagem e os motivos dos passageiros, de modo a conseguir solidariedade para a empreitada. Os custos da travessia eram altos e incluíam, além da passagem de navio, contratos para alimentação e segurança.

Com a extinção do comércio escravista para o Brasil, surgem grupos com outras motivações, como o desejo de regresso por motivos religiosos – com a possibilidade de ir e, eventualmente, voltar – e projetos de retorno com estratégias de combate ao tráfico atlântico de escravizados.

Havia, ainda, uma conexão Bahia-Costa da Mina, com grupos interessados na promoção do chamado comércio lícito, que tinham intenção de se instalar na costa africana em posição privilegiada, na qualidade de parceiros dos novos interesses europeus, e com representação nos dois lados do Atlântico.

Ao todo, estima-se que entre 3 mil e 8 mil afro-brasileiros tenham retornado ao continente africano durante o século XIX.

Registre-se que, no Brasil, nunca houve apoio oficial a esses retornos, diferentemente do que houve em outras regiões das Américas. Aqui, a volta era voluntária, à exceção dos rebelados da Revolta dos Malês, expulsos do país.

Leia o artigo Felicidade guerreira das rebeliões negras

“Bricolagem da memória” 

As evidências que chegam aos tempos atuais, da presença das comunidades que se formaram no continente africano a partir dos retornos, contam da construção de uma identidade africana referenciada na cultura brasileira, onde se reconhece:

  • o uso do português do Brasil, 
  • a apropriação de nomes e sobrenomes dados pelos colonizadores,
  • hábitos do cotidiano,
  • religiosidade católica, apesar do batismo na escravização
  • e festividades.

Nessa elaboração, até a memória da escravização é “camuflada”, retirando o sofrimento e a dor do eixo constitutivo da experiência, substituindo-a pela valorização dos conhecimentos acumulados e o que conquistaram, incluindo a chance de voltar.

Nas mais de 900 páginas do livro Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves, é possível perceber esta dinâmica na história de vida da protagonista Kehinde. Ela nasce em Savalu, reino de Daomé. Com sua irmã e sua avó, é arrancada da África ainda criança, mas retorna ao Berço, sozinha, na vida adulta.

É o antropólogo Milton Guran, brasileiro responsável pela mais detalhada pesquisa até hoje existente sobre a comunidade de retornados conhecida como os agudás do Benim, quem chama esse processo de “bricolagem da memória”.

Mulher em destaque com festividades ao fundo
Damas “brasileiras” abrem o baile depois da apresentação da burrinha (bourian) – 22 de janeiro de 1995 – Porto Novo, Benim (Imagem: Reprodução)

Damas “brasileiras” abrem o baile depois da apresentação da burrinha (bourian) – 22/01/1995 – Porto Novo, Benim

África do Brasil 

Além do grupo conhecido como agudás no Benin, os tabon de Gana e togo ou brasileiros da Nigéria implantam o único exemplo, até então, de cultura brasileira exportada no mundo, nos processos de formação de suas comunidades. Como se sentissem ‘africanos do Brasil’, celebram o Senhor do Bonfim, o bumba-meu-boi, o Carnaval…

Apesar de terem vivido alguns anos no Brasil, muitos dos primeiros tabon que chegaram em Gana eram muçulmanos. A grande maioria, no entanto, logo se converteu ao cristianismo, em especial ao anglicanismo e ao metodismo, de influência europeia.

Tabon People
Em Acra, Gana, há uma rua chamada Brazil Lane, onde está a primeira casa que abrigou os tabon, a Brazil House, que hoje funciona também como museu e acervo (Imagem: reprodução)

Em Acra, capital de Gana, especialmente, os retornados ficaram conhecidos como tabon por se comunicarem em português e usarem com frequência a expressão “tá bom”, como saudação e forma de saber se a outra pessoa estava bem. 

A partir da década de 1850, uma nova leva de pessoas, motivadas principalmente pelo fim do tráfico de escravizados, retorna à África. Entre elas, alfaiates, pedreiros, carpinteiros, ferreiros, ourives, escavadores de poços de água potável e famílias com dinheiro e habilidades no cultivo agrícola – contam Alcione Meira Amos e Ebenezer Ayesu no livro Sou brasileiro: história dos tabon afro-brasileiros em Acra, Gana. 

Rapidamente, esses recém-chegados constroem casas de alvenaria que passam a contrastar com as residências da população local, cobertas com sapé.

Outra escravização

Os tabon, apesar de suas origens, mantêm escravizados em suas casas e atuam no comércio de cativos. Escreve o governador dinamarquês Edward Carstensen, em 1845: “A Acra holandesa tem sido, há algum tempo, o centro de comerciantes de escravos, especialmente os negros brasileiros emigrados“.

E, passados quase 20 anos, em 1864, ainda é relatado que os afro-brasileiros de Acra controlam “um florescente comércio de escravos do território”.

Mas com uma diferença: em Gana e na África Ocidental em geral, os escravizados eram considerados parte da família e do clã de seus captores. Podiam até mesmo chegar a ocupar posição de autoridade no local onde viviam.

“Regras sociais e costumes […] protegiam muito da dignidade do escravo […] escravidão nativa em Gana não era [racial]” – define Akosua Perbi, professora de história na Universidade de Gana e estudiosa do tema.

Não há estimativa oficial do total de descendentes do povo tabon que vive hoje em Gana – o censo não contempla esta especificidade, mas especula-se que a comunidade esteja em torno de 5 mil pessoas. O que se sabe é que a influência da cultura brasileira não é mais perceptível como antes.

Movimento Rastafari

Passada a escravização, a ideia de retorno à África permanece viva. Quando do terremoto de 12 de janeiro de 2010, que destruiu Porto Príncipe, no Haiti, o presidente do Senegal, Abdoulaye Wade, convidou os haitianos a se repatriarem:

“O que estamos dizendo é que os haitianos foram levados para o Haiti… estão lá devido à escravidão, cinco séculos de escravidão. Temos de lhes oferecer a chance de vir à África. Eles têm tantos direitos na África quanto eu tenho”. 

Leia os artigos Haiti, primeira república preta da história e o preço do pioneirismo.

A proposta do presidente senegalês, feita no século XXI, remete ao surgimento das ideias pan-africanistas, do fim do século XIX, do jamaicano Marcus Garvey (1887-1940). Ideias que são na base do movimento Rastafari.

Garvey, no fim dos anos 1920, fez um discurso e declarou: 

“Quando um negro for coroado rei de uma nação africana, terá iniciado a época de redenção”.

Mais de dez anos depois, em novembro de 1930, o imperador Haile Selassié sobe ao trono da Etiópia, se proclama descendente da Rainha de Sabá e do Rei Salomão e os seguidores de Marcus Garvey, “enxergam” o cumprimento de uma profecia.

Diáspora, inclusive, é um termo fortalecido pelos seguidores de Garvey e que conecta os Rastafari diretamente aos nascidos na Israel do Rei Salomão.

País dos libertos

Antes de Garvey, também, muitos americanos negros livres encabeçavam o movimento que defendia o retorno à África. Nos Estados Unidos, entretanto, o movimento branco, por um tempo, tomou as rédeas da repatriação e “criou”, no continente africano, um país chamado Libéria!

A Libéria, aliás, é o único país da África de colonização americana, uma colonização diferente, da “iniciativa privada”, incentivada e patrocinada por proprietários de escravizados, políticos e clérigos, muito bem organizados.

O nome de batismo do país indica a intenção – “país dos libertos”, “terra da liberdade”. A ideia dos brancos? Estimular a volta à África dos recém-libertos e de filhos de escravizados nascidos livres para que tivessem uma vida melhor.

Discurso bacana, mas que embutia o medo de que os libertos colocassem em risco a instituição da escravização, fomentassem rebeliões, aumentassem a criminalidade e naturalizassem a integração, gerando miscigenação… 

Proprietários de escravizados chegavam a oferecer alforria com a condição de que os recém-libertos aceitassem se mudar para a África. E muitos afroamericanos viram nas sociedades de colonização a oportunidade e os recursos financeiros necessários para colocar em prática o antigo projeto de retorno à África – eles acreditavam que só poderiam escapar da discriminação e desfrutar de uma vida livre e próspera se voltassem à terra de seus antepassados.

Na época, início do século XIX, a Coroa Britânica já havia estabelecido uma colônia na Costa Oeste da África, Serra Leoa, para receber ex-escravizados, que haviam fugido dos Estados Unidos para o Canadá após a Revolução Americana.

O sucesso de Serra Leoa contribuiu para que a empreitada branca americana ganhasse popularidade e, em 1818, a organização enviou representantes à África com a missão de encontrar um local para instalar sua colônia – só que os líderes locais não quiseram vender suas terras.

A colônia 

Dois anos depois, três membros da sociedade e 88 americanos negros livres embarcam em Nova York, cruzam o Atlântico e se instalam na ilha Sherbro, na costa de Serra Leoa – enfrentam grandes dificuldades e muitos morrem de malária.

Em 1821, a sociedade consegue comprar uma faixa de terra de cerca de 58 km de comprimento e 5 km de largura na região costeira de Cabo Mesurado. Paga com rum, armas, mantimentos e outras mercadorias no valor de US$300.

A chegada dos colonos americanos acontece em 1822 e não é pacífica. Os moradores locais pertenciam a vários grupos étnicos e viviam em comunidades acostumadas, há séculos, a negociar com europeus, não só o tráfico de pessoas, mas a venda de comida e outras mercadorias.

Libéria atualmente (Imagem: Reprodução)
Libéria atualmente (Imagem: Reprodução)

Além dos ataques de grupos hostis e doenças, os imigrantes eram descendentes de africanos, mas a maioria nascida nos Estados Unidos. Quer dizer, não tinham qualquer familiaridade com a língua ou os costumes locais. 

Mas, que importa? Várias sociedades americanas de colonização surgem nos Estados Unidos, dispostas a arrecadar fundos que garantam a compra de terras na África e pagar a viagem dos negros. 

Assim, é ampliado o território da colônia que, nas décadas seguintes, recebe mais de 13 mil americanos e outros milhares de negros, resgatados de navios que operavam ilegalmente após a proibição do tráfico.

No poder político e econômico do recém-criado país dos libertos, gente branca! Não é por acaso que a capital da Libéria é batizada de Monróvia, em homenagem ao então presidente americano, James Monroe, que financiou o projeto.

Viver junto

Sobre esta situação, o americano William Burke, que embarcou em 1853, com sua mulher, Rosabella e mais os quatro filhos em um navio que partiu da cidade americana de Baltimore, escreve cinco anos depois: 

 “As pessoas vindo para a África devem esperar passar por muitas dificuldades, que são comuns (no primeiro assentamento) em qualquer novo país”.

Burke é treinado como ferreiro, estudou latim e grego no novo lar e se tornou ministro presbiteriano. Suas cartas, guardadas pela Biblioteca do Congresso americano, descrevem não apenas as dificuldades enfrentadas pelos pioneiros, mas a satisfação com a nova vida:

 “Eu esperava e não fiquei decepcionado ou desencorajado com nada (…). O senhor me abençoou abundantemente (…) Nunca poderei ser grato o suficiente.”

“Eu amo a África e não trocaria pela América” , escreve Rosabella em 1859.

Esses primeiros imigrantes recriaram na Libéria muitos aspectos da sociedade americana, mantendo a língua inglesa, os costumes, vestimentas e estilo arquitetônico a que estavam acostumados.

Apesar dos conflitos, houve integração entre os nativos e os recém-chegados, que construíram escolas, igrejas e criaram laços com os habitantes locais.

O estímulo para que os libertos fossem para a África, com tudo pago, foi vitoriosa até a virada do século XX, quando as sociedades brancas perderam importância.

Entre a população negra, porém, o movimento de retorno à África continua a ganhar adeptos. A Libéria e outras nações africanas recebem novas ondas de afro americanos durante várias décadas, inclusive nos anos 1960, auge do movimento de defesa dos direitos civis nos Estados Unidos.

Blaxit, saída negra

Neste século XXI, nos Estados Unidos está acontecendo um movimento chamado Blaxit – neologismo que surge da junção das palavras inglesas black” (preto) e exit (saída), que é a saída espontânea de pessoas negras para viver na África.

Reportagem do jornal The New York Times, de 16 de fevereiro de 2024, informa que o que deflagrou o movimento foram a pandemia de Covid e o acerto de contas racial depois do assassinato de George Floyd, em maio de 2020.

Mapa da áfrica e, em baixo, escrito "#Blaxit"
Blaxit (Imagem: Reprodução)

Cansados ​​do racismo, negros americanos – que representam 14% da população – tentam viver na África. A pergunta da alma deles, dos afro americanos do norte, é: 

“Como seria fazer parte de uma maioria?”

Nossa reposta, como negros vivendo no Brasil, não é nada boa. Mas eles não pensam em uma maioria “minorizada”, mas em maioria natural, de origem, de berço. A somar-se, ainda, o custo de vida mais barato e a busca por uma ligação ancestral.

O movimento é fortalecido por programas governamentais como o Caminho da Serra Leoa para a cidadania e a campanha Beyond the Return, de Gana. Pelo menos 1.500 afro-americanos – de acordo com o Gabinete de Assuntos da Diáspora do Gana – chegaram ao país entre 2019 e 2023.

Leveza, um sentimento

Entre os entrevistados pelo NYT para a reportagem, estão Marlene, de 69 anos, e Mark Bradley, de 63, que partiu de Los Angeles rumo a Ruanda em 2021 e, depois, para Zanzibar. O casal conta que foi como tirar um peso das costas

Nos Estados Unidos, tanto Mark quanto dois de seus quatro filhos tiveram momentos difíceis com a polícia. Ele disse ao NYT que nunca esquecerá o “sentimento alegre” que teve quando abordou um oficial armado em Kigali para pedir informações e o oficial o cumprimentou com um sorriso.

Jes’ka Washington mora com a mãe, de 76 anos, em uma casa de seis quartos em uma colina, não muito longe da fazenda de coelhos que administra, e está maravilhada com a sua nova vida em Ruanda:

 “Nunca pensei que uma mulher solteira, com salário de professora (ela dá aulas on-line para estudantes da Carolina do Sul), pudesse viver em um lugar como este”.

Com a mudança, ela sente que ganhou mais espaço, física e emocionalmente:

 “Eu queria era me afastar da expectativa de ter que ser forte porque, na América, as mulheres negras têm de ser fortes… Eu só queria um espaço para ser eu”.

Ashley Cleveland, 39 anos, diretora de uma empresa que ajuda estrangeiros a investir e a expandir os negócios em África, mudou de Atlanta para Dar es Salaam, na Tanzânia, em 2020. Agora, na África do Sul, com seus filhos de 6 e 13 anos: 

“Ver africanos na nota de dinheiro, nos outdoors, elimina imediatamente a negritude. Em grande parte da África, raça é um conceito abstrato. Sua filha mais velha, cujo tom de pele é castanho escuro, não sofre mais intimidação”.

“Estamos em casa”

R.J. Mahdi, 38 anos, consultor do Exodus Club – coletivo internacional de membros da Diáspora repatriados para o continente africano -, saiu de Ohio, há 10 anos, vive no Senegal e percebe um aumento no número de negros americanos chegando na África: “Há 10 vezes mais pessoas vindo agora do que há cinco, seis anos”.

Tornar-se um “repat” pareceu fortalecedor para Mahdi, muçulmano negro. Nos EUA, dos 14% da população negra, apenas 2% são muçulmanos. Já no Senegal, quase todos são negros e mulçumanos: “Por mais de um motivo, estamos em casa”.

Kirya-Ziraba, 40 anos, judia, conta que quando mudou para Uganda, deixou de ser “uma minoria dentro de uma minoria” e passou a estar rodeada pelos que partilham a sua raça e fé. Ela trabalhava em uma imobiliária no Texas. Agora, dirige uma fundação que apoia mulheres e crianças deficientes, mora em uma pequena cidade que abriga a comunidade judaica e, em Uganda, sente que pode ser quem é:

“Não tenho que me adaptar para controlar as percepções das pessoas: sorrir para não parecer ‘ameaçadora’, comprar roupas caras para evitar ser confundida com a empregada, alisar o cabelo para ser vista como boa profissional…”

Sem romantismo

Mas nem tudo são flores, como salienta a professora Jes’ka Washington, que mora em Ruanda. Há uma grande disparidade de riqueza entre os imigrantes americanos e a maioria dos africanos, o que leva a fricções, embora muitos governos cortejem a diáspora exatamente pela infusão de dinheiro. 

“Em Ruanda, estamos no estágio em que precisamos que mais pessoas venham fazer aposentadoria ativa. Precisamos de investidores, de talentos”, explica Justin Ngoga, 39 anos, fundador da Impact Route, empresa de serviços de relocalização. 

Na avaliação de Justin, o país ainda não tem recém-chegados suficientes para produzir um impacto econômico negativo entre expatriados e os locais, como em Gana, por exemplo, onde o afluxo de estrangeiros aumentou o custo de vida. 

Rashad McCrorey, 44 anos, que trocou o Harlem por Gana em 2020, reconhece que deixou para trás as suas origens humildes em um conjunto habitacional e mudou de vida. “Aqui, somos ricos”, afirma. E, para retribuir, criou um fundo de bolsas de estudo e construiu um campo de futebol para as crianças do bairro. Rashad publica um guia para pessoas que se mudam para a África. 

Mas ainda relembra as injustiças que sofreu em Nova Iorque: 

“O que mais incomodava eram as frequentes paradas e revistas. Toda vez que a polícia me apalpava, era como se me violasse e, muitas vezes, eu ficava em lágrimas… Prefiro ter o dilema moral de pertencer a uma classe superior no sistema de classismo, em vez de ser marginalizado em um sistema de opressão e racismo”.

Para o terapeuta afroamericano Adwoa Yeboah Asantewaa Davis, 52, que se mudou de Washington para Acra, em Gana, em 2020, os negros americanos deveriam tentar a terapia antes de considerar a mudança para escapar do racismo: 

“Um trauma de anos de discriminação não desaparece com uma mudança de ambiente… Você vem para a África e espera que, só por todos serem negros, vai ficar bem. Mas então você chega aqui e é visto como o ‘outro’, diferente e separado”.

“Alguns ganenses sentem discriminação por parte dos negros americanos”, comenta Ekua Otoo, 36 anos, ganês de Acra. “As comunidades e empresas negras americanas preferem contratar negros americanos, ou indianos e libaneses, para cargos de chefia, enquanto ganenses qualificados são excluídos ou mal pagos”. 

Não é para todos

A África não é refúgio, sinônimo de acolhimento, para todo mundo. A homofobia é um sentimento presente no continente. Em Uganda, a Lei Anti-Homossexualidade pune com prisão perpétua e até com a morte!

Erieka Bennett, 73 anos, fundadora do Fórum Africano da Diáspora, sem fins lucrativos, na África há 40 anos, comenta que os negros americanos vieram para Gana “em massa” em 2020 – e ainda estão vindo. Mas muitos não estão preparados para a vida no continente. Ela sugere a quem está pensando em mudar que visite o país onde quer viver primeiro: “África não é para todos”.

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Fontes: BBC – Revolta dos Malês, New York Times – Blaxit, BBC – Libéria, Rede Brasil Atual, Ciência Hoje

Artigo “Mama África, cidadania ancestral” Escrito em abril 2024

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