O brilho do primeiro humorista homossexual e negro na TV, primeiro homem Rainha de Bateria de escola de samba e primeira nudez no Carnaval.
O que este artigo responde: Quem foi Jorge Lafond? Qual era o nome de sua personagem mais famosa? Quem é Vera Verão? Em que contexto Vera Verão era conhecida? Qual foi o impacto de Vera Verão na cultura brasileira? Jorge Lafond era comedfiante? Jorge Lafond era ator de teatro? O trabalho de Jorge Lafond tem a ver com racismo racismo recreativo?
Todos encaramos os holofotes quando nascemos, na hora do parto. E choramos ao ver as luzes, o público formado por médicos e enfermeiras. Com Jorge Luiz de Souza Lima não foi diferente. Ele nasceu de dona Diamantina. E teve uma espécie de renascimento ao encarar os holofotes e se apresentar como o primeiro humorista homossexual e negro para o mundo – via tela da TV. Isso num tempo em que o movimento LGBTQIA+ não existia, homossexualidade era chamada de homossexulismo (leia-se: doença) e sinônimo de perversão.
Vale salientar a informação contida na sigla LGBTQI+:
L de Lésbicas – mulheres que sentem atração afetiva/sexual pelo mesmo gênero, ou seja, outras mulheres.
G de Gays – homens que sentem atração afetiva/sexual pelo mesmo gênero, ou seja, outros homens.
B de Bissexuais – homens e mulheres que sentem atração afetivo/sexual pelos gêneros masculino e feminino.
T de Transexuais – pessoas que não se identificam com o gênero atribuído ao seu sexo biológico, incluindo travestis, que se identificam com a identidade feminina.
Q de Queer – pessoas que transitam entre as noções de gênero, como as drag queens. A teoria queer entende que orientação sexual e identidade de gênero são uma construção social.
I de Intersexo – pessoa com combinações biológicas e desenvolvimento corporal – cromossomos, genitais, hormônios, etc – que não se enquadram no masculino ou feminino.
A de Assexual – pessoas que não sentem atração sexual por outras pessoas, independente do gênero nem entendem relações sexuais como prioridade.
Quanto ao “+” é utilizado para incluir outros grupos e variações de sexualidade e gênero, como os pansexuais, por exemplo, que sentem atração por outras pessoas, independente do gênero.
Voltando a Jorge Luiz de Souza Lima…
Ele se rebatizou Jorge Lafond na adolescência e sempre soube de sua sexualidade, mas por medo de represálias, manteve um comportamento “de homem” – hoje a expressão é “comportamento heteronormativo” – até que decidiu brilhar, sem ter de administrar o racismo e o preconceito dos outros.
“Aos seis anos de idade, eu já sabia que era homossexual. As pessoas falavam que ser gay era uma coisa muito feia, e eu ficava com a cabeça tontinha. Mas o medo de meus pais descobrirem era tão grande que eu procurava andar na linha e estudar bastante”, contou em entrevista à Revista Raça.
A hipersexualização do homem negro era ainda mais viva que nos dias atuais e envaidecia os próprios negros que, se quer, concebiam a possibilidade de amar alguém do mesmo sexo ou ver um outro “homem de cor” – expressão da época – com jeito ou gestos “afeminados”.
Mas ele “pagou para ver” e se integrou à vida dos brasileiros como Vera Verão, a personagem mais famosa do artista Jorge Lafond, uma guerreira contra o preconceito.
Os primeiros holofotes
Jorge Luiz de Souza Lima nasce em 29 de março de 1952, em Nilópolis, pequeno município da Baixada Fluminense, Rio de Janeiro.
Filho único, desde criança, reunia os amiguinhos da vila da Penha, bairro onde foi criado, para brincar de Cassino do Chacrinha, com direito corpo de jurados, figurinos, dublagem de músicas que tocavam em discos na vitrola, tendo os pais como plateia. Lafond era o Chacrinha!
Durante a infância também, nos anos 1960, tem seu primeiro emprego, na verdade dois empregos: durante a semana, em uma oficina mecânica, e aos fins de semana em um parque de diversões, junto com sua mãe.
Nos palcos
Aos 9 anos, inicia aulas de ballet e durante a adolescência se apresenta em cabarés cariocas do Rio de Janeiro, nas boates Flórida, Escandinávia, Barbarela e Kiss, entre outras.
Aos 17 anos, acontece o convite para sair da rota dos cabarés e fazer parte da trupe “Brasil Canta e Dança”, do ator, escritor, produtor e sambista Haroldo Costa um dos responsáveis pela criação do Teatro Experimental do Negro – TEN, junto com Abdias do Nascimento, e com inúmeros trabalhos na televisão e no cinema desde os anos 1950.
Com a companhia de teatro de Haroldo Costa, a qual integra por dez anos, viaja pelo mundo, em turnês pela Europa e Estados Unidos.
O visual Lafond e a universidade
Aos 18 anos, Jorge Luiz entra para o curso de Educação Física na Universidade Castelo Branco no Rio de Janeiro. E, pela primeira vez, tem a cabeça raspada. Ao passar no vestibular, os vizinhos lhe aplicaram o trote e cortaram o seu black power. Ele gostou do resultado e adotou o visual até o final da vida.
Ninguém pode repetir o trote, mas ele voltou à faculdade para um segundo curso: Teatro na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
E seguiu estudando balé clássico e dança africana. Trabalhando, inclusive, com Mercedes Baptista, a primeira bailarina negra a integrar o corpo de baile do Theatro Municipal do Rio de Janeiro que criou o balé afro-brasileiro inspirada nos terreiros de candomblé .
Jorge também se formou na Escola de Dança do Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
Durante sua época de estudante universitário é que surge seu nome artístico “Lafond”, emprestado da atriz e modelo Monique Lafond, musa nos anos 1970 e 1980.
Fantástica!
Aos 22 anos, em 1974, Jorge Lafond faz parte do corpo de baile do programa “Fantástico” e, na mesma Rede Globo, acontece sua primeira experiência com o humor televisivo, sete anos depois, em 1981, como parte do elenco do programa “Viva o Gordo”, de Jô Soares.
E ele segue na TV-Plim-Plim vivendo novos personagens como o Zé dos Diamantes na novela “Voltei pra Você”; o dançarino do espaço no especial infantil “Plunct, Plact, Zuuum”; Bob Bacall na novela “Sassaricando”, e , na Rede Manchete, Madame Satã na novela “Kananga do Japão”.
Seu retorno aos programas humorísticos acontece em 1990, quando volta para a Globo a convite de Renato Aragão para participar dos “Trapalhões”, interpretando o Soldado Divino, também conhecido como Soldado 24, primo de Mussum.
“Epa! Bicha não!”
Vera Lucia Verão “nasce” em 1992 em “A Praça é Nossa”. Carlos Alberto de Nóbrega, apresentador e cocriador do programa, quer que Lafond dê vida a uma travesti agressiva. Mas não é isso que ele entrega.
Com 1,93 de altura e muitos escândalos na bagagem, Vera Verão chega com um humor inteligente, malicioso e imponente. E faz a plateia delirar.
Em entrevista à jornalista Marília Gabriela, em 1999, Lafond conta que Vera Verão não era uma simples personagem, era uma entidade baseada em sua vivência no candomblé.
E todos – preconceituosos ou não – entoavam seu bordão: “Epa! Bicha não! ”.
Pioneiro no asfalto
Fora da tela da TV, seu outro palco era o asfalto, a passarela do samba, sempre marcando presença como destaque em carros alegóricos de escolas do Rio de Janeiro e de São Paulo. Na maioria das vezes, seminu. Mas éi totalmente nu, em cima de um carro alegórico da Beija Flor de Nilópolis, que Lafond conquista outro de seus pioneirismos, como o primeiro homem e negro a realizar tal feito. O enredo da escola era “Todo Homem Nasce Nu”.
Em 2002, em seu último Carnaval, em São Paulo, conquista mais uma primeira vez, desfilando como o primeiro homem a ser rainha de bateria na Unidos de São Lucas.
Um ano depois, após sua morte, ele permanece na avenida, com a criação do Troféu Jorge Lafond, para premiar os destaques do Carnaval carioca, pela escola de samba Acadêmicos do Cubango, de Niterói.
Papo de gay
Jorge Lafond nunca foi unanimidade. Em 1999, durante o lançamento da sua autobiografia “Vera Verão: Bofes & Babados”, ameaçou dizer os nomes de personalidades – inclusive de um jogador da seleção brasileira de futebol – com quem teria mantido relações.
Em 2001, aceita o convite para participar da campanha de prevenção a DST – Doenças Sexualmnte Transmissíveis, do Ministério da Saúde, apesar de os militantes do Grupo Gay da Bahia e do Grupo de Gays Negros da Bahia considerarem a personagem Vera Verão um estereótipo pejorativo de gay.
No mesmo 2001, Lafond é campeão em uma votação popular para integrar o elenco do reality show “Casa dos Artistas” do SBT. Mas seu nome é vetado sem que tenha sido dada qualquer explicação.
Em 10 de novembro de 2002, Lafond é retirado do palco quando participa do quadro “Homens vs. Mulheres”, do lado feminino, no programa “Domingo Legal”, do SBT – a produção do programa pede que ele vista roupas masculinas durante a apresentação musical do padre Marcelo Rossi. Ele se recusa e não retorna ao palco.
Depois de sua morte, em agosto de 2005, a Vera Verão de Jorge Lafond é reconhecida como personalidade homossexual negra e uma pequena biografia sua integra o relatório sobre grupos gays negros do Brasil, entregue por representantes de grupos homossexuais ao baiano Gilberto Gil, então ministro da Cultura.
Desconstrução de um “ícone”
Lafond amava Clodovil como referência, mas o estilista/apresentador/político não fez jus à reverência. Hoje, Lafond é visto como uma figura representativa dentro do movimento LGBTQIA+. Mas a figura representativa da sua época era o Clodovil.
O apresentador era envolto de branquitude, era representativo na questão da sexualidade, mas não na questão racial. Questões que dialogam até com a hipersexualização do homem negro. Hipersexualização que “esvazia” a intelectualidade do corpo negro.
Leia o artigo Racismo Recreativo
Ambos eram gays, ambos muito inteligentes que utilizavam da ironia, o deboche. Mas só um era “exemplo de gay” para a sociedade.
A quebra dessa imagem positiva que Lafond tinha do Clodovil acontece em 1992, durante uma entrevista que nunca foi ao ar.
Clodovil, o gay “comportado” e bem-sucedido que Jorge idolatrava e mostrava para a sua família como exemplo, para que desconstruíssem preconceitos homofóbicos, durante a gravação do programa, fez perguntas irônicas a Lafond, às quais o ator respondeu com ironia, surpreendendo o apresentador que cortou a sua participação do programa, alegando problemas técnicos.
Saúde em declínio
Uma semana depois do incidente no SBT, foi internado em estado grave, com problemas cardíacos e pressão alta. Nas semanas seguintes, foram diversas as suas internações até que faleceu.
Além do problema no coração e complicações renais, Lafond estava com depressão. Mas a sua morte teve como causa um infarto fulminante seguido de falência de múltiplos órgãos no dia 11 de janeiro de 2003, aos 50 anos de idade e 33 de profissão.
Pegada na história
Havia, pelo menos, duas versões de Jorge: a da TV e a da vida real, presente no filme “Bete Balanço”, de 1984. E era ele quem dizia isso.
Mesmo sem muitos amigos, ele deixa sua pegada na história do Brasil e da TV brasileira: abriu caminho para milhares de humoristas que fogem de um padrão heteronormativo e branco.
Em 1993, para Elke Maravilha, Lafond revela que seu grande sonho era a cura para a AIDS.
Em entrevista para “De frente com Gabi”, em 1999, afirma não levantar bandeira racia, pois não considerava sérias as pautas debatidas e acreditava que somente a nível político as coisas mudariam em relação ao preconceito.
Sua forma de combater o preconceito e a discriminação era através do humor.
Racismo recreativo
Para Adilson Moreira, doutor em Direito Constitucional Comparado pela Universidade Harvard, nos Estados Unidos, autor do livro O que é Racismo Recreativo?, da coleção Feminismos Plurais, Vera Verão é um exemplo perfeito de como o humor racista reproduz estereótipos negativos sobre minorias raciais de todas as maneiras possíveis.
Em outras palavras, para ele, Vera Verão não combatia o preconceito e a discriminação, ao contrário, o alimentava: “Primeiro, a partir da degradação sexual de minorias sexuais. Toda a sua personalidade girava em torno da sua sexualidade. Encontrar parceiros sexuais era o único propósito de sua vida. Sempre fazia questão de enfatizar suas habilidades sexuais. Segundo, o personagem reproduzia a ideia do homem branco como único parceiro sexual socialmente aceitável porque ela só se interessava por homens brancos. Terceiro, ela também expressava a noção de que todos homossexuais são efeminados e que todos os homens negros homossexuais estão à procura de homens brancos. Quarto, ela também reproduzia a imagem hipersexualizada da mulher negra porque ela se apresentava como uma mulher”.
…
Fontes: Carta Capital, Wikipédia, Folha Online
Atualizado em abril de 2023
Fantástico essa reunião de elementos do universo do Laffond. Eu fui uma criança gay dos anos 90 e era uma explosão de afetos sempre que via aquela bicha tão grandona ocupando as telas dos programas. Hoje, aos 30, consigo refletir um pouco do impacto disso. Mais que um personagem, Viva Vera Verão! Gratidão pelo post!
Gratidão pelo comentário, Zeca! É sobre isso.
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